domingo, 26 de abril de 2020

Ziul Serip - EntreVistas



Nos conhecemos lá pelos idos dos anos 80, e desde os anos de chumbo dialogamos poeticamente, antes por cartas, hoje pelo face, Ziul além de poeta, é um devorador de poesia. As últimas vezes em que nos encontramos fisicamente foi no Congresso Brasileiro de Poesia, em Bento Gonçalves-RS. É um adepto sem dúvida do que podemos chamar de Todo Dia É Dia D Poesia Todo Dia. Muito de seus poemas são verdadeiros quebra-cabeças, um grande lance de dados. Parceiro na busca incessante pela criação da palavra a nova. a que ainda não foi desvirginada no branco do papel.

Ziul Serip é natural de Porto Alegre. Cursou Direito na Universidade de Caxias do Sul ( UCS ). Reside em Tramandaí, RS. Poeta há mais de 30 anos, foi vencedor do 1º. Prêmio Prêmio Mauá de Literatura – Poesia/Porto Alegre - 1988, com “quadrantal”, seu primeiro livro, publicado em 1989 pela Editora Cidade de Porto Alegre. Ali, o poeta se pôs a alçar seus primeiros voos em espaços a um só tempo excitantes e turbulentos, deixando-se encantar pela palavra, dela fazendo escrava sua lírica. Participou de inúmeros encontros literários no RS, SC e SP. Em 2012, 2013 e 2014 participou das Antologias Poesia do Brasil  dos XX,  XXI e XXII - Congresso Brasileiro de Poesia, realizado em Bento Gonçalves/RS. Também participou em 2015, da Antologia “29 de abril – O verso da violência”, pela Patuá. Possui poemas publicados em diversos sites, blogs e revistas literárias, como Zunái, Caqui, Letras Vermelhas, Kazuá, Mallarmargens e Germina. Publicou em 2017, pela Editora Córrego, selo Leonella, a plaquete “um fio de sol medita”.

Artur Gomes - Como se processa o seu estado de poesia?

Ziul Serip - Escrever é uma necessidade funcional, quase fisiológica para mim. Às vezes tento me desvencilhar da poesia, mas é algo impossível, pois a palavra me des[a]fia, como se fosse uma convulsão. Tenho meus métodos de criação. Organizo meus poemas a partir de um tema qualquer, procurando as palavras certas para daí organizá-las em versos com ou sem rimas.

Após, desorganizo, (des)construo e reconstruo os poemas todos. Levo o tempo que for necessário para amadurecê-los. E nas palavras busco suas reentrâncias, seus subterrâneos, as (im)possibilidades, exaurindo os signos, ouvindo suas sonoridades, seus [b]ecos.

Faço isso com poemas processos, poemas diversos, haikus, tankas e toda minha “proesia”. O engraçado nesse processo é que, passado algum tempo, releio-os e quase sempre acrescento ou recolho palavras dos poemas. Creio que nunca finalizo-os. É como se o poema ficasse em “suspensão”, ignorado à própria sorte.

Então, apresento-o ao leitor, mas não explico-o, pois explicar a poesia não faz parte do processo. Não cabe ao poeta explicar o poema. Cabe a ele, criá-lo. De modo geral é assim.

Artur Gomes - Seu poema preferido?

Ziul Serip -  Interessante para mim é imaginar que não há um poema preferido, favorito, seja meu ou de outros poetas. São tantos os poemas que – inclusive poemas teus – seria injusto citar algum. Posso afirmar que o poema preferido é aquele que me causa orgasmo plástico-visual, uma metamorfose-caos. E são muitos!

Artur Gomes - Qual o seu poeta de cabeceira?

Ziul Serip -  A lista é extensa: Mallarmé, Bashô, Issa, Buson e tantos outros japoneses; os poetas chineses; Fernando Pessoa, Cruz e Souza, Augusto dos Anjos, Ezra Pound, E. E. Cummings, Murilo Mendes, Herberto Helder, Oliverio Girondo, João Cabral de Melo Neto, Manoel de Barros, Néstor Perlongher, Octávio Paz, Oswald de Andrade, Blanca Varela, Mina Loy, o triunvirato – Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari; Paulo Leminski, Hilda Hilst, Claudio Daniel, e inúmeros poetas brasileiros contemporâneos. Não necessariamente nessa ordem. Mas um poeta sempre está ao meu lado, dia e noite: Maiakóvski…

Artur Gomes - Em seu instante de criação existe alguma pedra de toque, algo que o impulsione para escrever?

Ziul Serip - Bem, creio que sejam meus “fantasmas” sendo libertos para aterrorizar o leitor, o qual cria novos fantasmas dentro de si. Instigá-lo, mesmo com acumulação de metáforas, que podem atrasar sua compreensão do poema, mas impregná-lo de sentidos, sem explicar. Mas que isto, contudo, não deixe e nem o leve a evitar a leitura.

Artur Gomes - Livro que considera definitivo em sua obra?

Ziul Serip - Minha obra editada é curta. São dois livros apenas. Na verdade, um livro, “Quadrantal”, meu primeiro – que você conhece –, o qual tenho imenso carinho, mas que não reflete a minha poesia atual, amadurecida. Ele revela apenas os meus primeiros passos. E uma plaquete: o poema “Um Fio de Sol Medita”.

Possuo outros 25 livros “prontos” [pelo menos não me pertencem mais] para serem editados. Gosto muito de alguns, “Nakba – Flor da Ressurreição [Poemas para a Palestina] que na verdade são 2 em 1: “Êxodo” e “Qiā’ Ġazzah”; “Cabeça-Labirinto”; “Arame Farpado”, “Água Salobra”; “Cidade Exílio” e “Telhado de Vidro {haikus]”. Estes, talvez, se tornem definitivos em minha obra.

Artur Gomes - Além da poesia em verso, já exercitou ou exercita outra forma de linguagem com poesia?

Ziul Serip -  Produzo a prosa poética, que quebra regras. Sou um quebrador de regras dentro da poesia e fora dela, um “nonsense” e “anárquico”. Sou um adepto do neologismo, de uma nova linguagem poética. Houve um momento em que tentei enveredar para a crônica, mas nunca fui um bom contador de histórias. Escrever contos foi outra tentativa frustrada. Embora texto de ficção, ou seja, invenção, tudo nele precisa ser leve e frugal com muito equilíbrio, mas com rigor na sua construção. Resolvi ficar somente com a poesia.



Artur Gomes - Qual poema escreveu quando teve uma pedra no meio do caminho?

Ziul Serip - São vários, até porque são em momentos de crise que eu consigo expressar-me de forma contundente. Há um poema, extenso, que fará parte de uma antologia que o poeta Claudio Daniel está organizando, "80 balas, 80 poemas", e também faz parte de um livro que estou escrevendo, “Crisântemos Vermelhos”. O poema se chama “este é o último poema que escrevo sobre a morte”.

É sobre o fuzilamento pelo exército, de Evaldo dos Santos Rosa e Luciano Macedo, ocorrido 2019 em Guadalupe, bairro do Rio de Janeiro. Aquilo tudo me tocou profundamente, porque me veio à tona todos aqueles anos de barbárie cometida pela ditadura militar, que você também atravessou. Abaixo, um pequeno trecho do poema:


inventário: sete de abril
de dois mil e dezenove
quatorze e quarenta
automóvel branco
subúrbio pobre
família negra “

..."é carro de família. não tinha vidro fumê,foi execução!”
[n]o a (r)[bí] trio: guadalupe
padroeira da américa latina
rio de janeiro brazil
terra inquilina
uma tarde de domingo
milicos em patrulha
arqui-inimigos

máquinas-ferramentas

fagulhas sem regras
famílias negras
disparos de fuzil:

oitenta!

“o sangue espirrou todo no meu filho. e os militares rindo
de mim. eu pedi gritando pra eles socorrerem,
e eles não fizeram nada”

dois mil e dezenove fenece
velhos e duros anos regressam
cessam a construção de alicerces

panorama: dois feridos
– famílias destruídas –
dois corpos caídos
Evaldo dos Santos Rosa
e Luciano Macedo!
Evaldo dos Santos Rosa
e Luciano Macedo!
Evaldo dos Santos Rosa
e Luciano Macedo!
Evaldo dos Santos Rosa
e Luciano Macedo!
Evaldo dos Santos Rosa
e Luciano Macedo!
Evaldo dos Santos Rosa
e Luciano Macedo!
Evaldo dos Santos Rosa
e Luciano Macedo!

o horror!

armas em transporte?
o cavaco a música
a cor da [p] rosa
o papel catador
a morte! “

...o exército acaba de matar duas famílias...”

há um imenso nó na garganta
lágrima que escorre
e se agiganta “

... é morador, porra!”
o sol não brilha mais em seus rostos
o sangue jorra no tapete do asfalto
nesse imenso rio decomposto
 sobre a terra em sobressalto

como nos tempos das masmorras

 cães de guardas sicários
 vestidos de deboches
 de mil estilhaços
fantoches

“...olha o que eles fizeram, esses filhos da puta...”

Artur Gomes - Revisitando Quintana: você acha que depois dessa crise virótica pandêmica, quem passará e quem passarinho¿  

Ziul Serip -  A poesia, esta passará incólume. A crise que o ser humano atravessa não é de agora, é de sempre. O ser humano é o seu próprio vírus. Sua permanência aqui é uma incógnita, mas tudo leva a crer num “autocídio coletivo”. Quanto aos passarinhos, bem, estes atravessarão os caminhos dos mistérios, das trevas, da transmigração.

Artur Gomes - Escrevendo sobre o livro Pátria A(r)mada, o poeta e jornalista Ademir Assunção, afirma que cada poeta tem a sua tribo, de onde ele traz as suas referências. Você de onde vem, qual é a sua tribo?

Ziul Serip - Comecei a escrever em meados dos anos 70 em Porto Alegre. A princípio, inspirei-me no rock psicodélico, no heavy metal, nas letras surrealistas de Bob Dylan, Campos, Pignatari, a poesia concreta, parnasianismo, simbolismo, surrealismo, cubo-futurismo, modernismo, tropicalismo, neo-barroco. Vieram os poetas brasileiros, latinos, russos, franceses, ingleses, irlandeses, americanos, japoneses e toda uma horda de poetas das mais diferentes correntes.

Metáforas, aliterações, assonâncias, sinestesias, alegorias, anagramas passaram a povoar meu[s] [uni]versos. Forma e fundo. Minha tribo é a poesia como um todo, mas confesso: sou um poeta aturdido pela palavra, em confusão, no aguardo da transformação. Estou sempre apto a ver e ouvir a transformação da palavra, sua transposição ao papel, onde o olhar viaja em suas imagens, sua transmigração.

A palavra me causa excitação. Sou um inventor e ao mesmo tempo um poeta mentiroso. Minha poesia é uma mentira!

Artur Gomes - Nos dias atuais o que é ser um poeta, militante de poesia?

Ziul Serip - Um quebrador dessa porra toda que aí está. Não sou o poeta que – como você e tantos outros que muito admiro – sai às ruas e praças para dizer a poesia em alto e bom tom para que todos ouçam. Sou o poeta calado, tímido, que odeia holofotes, que cria em silêncio e destrói o sistema obscuro, através da palavra mais obscura [im]possível. – forjar o ferro polir a pedra desaguar a água – sentir o porvir [d]o que está por vir transmutar incêndios no olhar escolher este lugar céu cinzento entre as lápides dos sepulcros silêncio em folhas semelhantes juncos espantalhos murmúrios olhar as formas das madeiras úmidas ao vento em dobras de luz – lâmpadas extintas explodem escalando-se em ecos –

Artur Gomes - Que pergunta não fiz que você gostaria de responder?

Ziul Serip -Com quantas palavras se faz um poema?

Resposta: Com uma, duas ou algumas palavras em flores-cimento[s], eu responderia: sussurros de uma gaivota exausta transbordando entre céu e mar ***

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