segunda-feira, 22 de junho de 2020

Rubervam Du Nascimento - EntreVistas


Conheci Rubervam Du Nascimento, em tempos de Mostra Visual de Poesia Brasileira lá pelos idos dos anos 80. Em 1993 nas comemorações de 10 anos do projeto, a MVPB foi realizada em Edição Especial patrocinada pelo SESC-SP em homenagem ao centenário de Mário de Andrade, graças a uma parceria com o Grupo Livre Espaço de Poesia, composto por poetas de Santo André, tendo como parceira na empreitada a querida amiga e poeta Dalila Teles Veras.

Multi atividades desta edição da MVPB foram relizadas na unidade do SESC em São Caetano, e em outros espaço culturais, como: em Santo André: Alpharrabio Livraria e Espaço Cultural, Colégio Objetivo, Porto das Garrafas. E em  São Paulo, na UBE. A MVPB tece também a parceria do centro Cultural da LIGHT.  

Nessa edição conheci o Rubervam Du Nascimento, pessoalmente, na noite da sua performance com poemas do livro A Profissão dos Peixes, no Alpharrabio Livraria e Espaço Cultural. Terminada a MVPB em 1993, começamos uma intensa troca de correspondência, pois Rubervam Du Nascimento, me desafiou a fazer uma edição da MVPB em Teresina, o que aconteceu em 1994, tendo a poesia de Torquato Neto e Mário Faustino, como temáticas para as atividades que fizeram parte do repertório da 11ª Edição da MVPB enquanto projeto físico. 

Rubervam Du Nascimento, da Ilha de São Luis do Maranhão, viveu e trabalhou em Teresina, capital do Piauí, por mais de trinta anos, reside atualmente em Santo André/SP. Poeta de vertente imagística, advogado, professor de Literatura Portuguesa; participa de debates sobre arte literária, Saraus e Festivais, com a Leitura Poética: O Prazer da Língua-diálogo de poetas Moçambicanos e poetas do local onde é apresentada, cuja inauguração deu-se em agosto de 2011, no anfiteatro do Centro Cultural Brasil-Moçambique, em Maputo. Livros de poemas editados: A Profissão dos Peixes (2ª edição, revista e diminuída- Editora Códice/DF-(1993); MARCO –Lusbel Desce ao Inferno-1º lugar-Concurso Nacional Blocos/RJ-(1997); Os Cavalos de Dom Ruffato-Premio Literário Cidade do Recife-(2004) e Espólio- Premio Literário Livraria Asabeça-Scorteci Editora/SP- 7ª edição(2017); Plaquete de poemas: Dandaras-Sangre Editorial-coleção 32-MG(2019). Acaba de vencer o Prêmio Literário de Poesia Francisco Rodrigues Lôbo-2019, de Leria/Portugal, com o livro inédito: “De Dentro de Mim Partiu a Última Caravela”, que será editado em Portugal, com o selo da coleção de poesia, da Livraria Arquivo.
https://revistaacrobata.com.br/acrobata/poesia/3-poemas-de-rubervam-du-nascimento/

Artur Gomes - Como se processa o seu estado de poesia?

Rubervam Du Nascimento- Há mais de três décadas desenvolvo um projeto de Poesia que chamei de “Vidapalavra”, cujo arcabouço está riscado à mão, em cinco folhas de cartolinas, azuis, vermelhas, pretas, contendo referenciais poéticos, colagens de postais, pedaços de versos, de cartas, datações, gráficos, nomes, palavras-chaves, etc. É desse projeto que retiro as linhas gerais de tudo que publico. Como acredito que a inspiração seja traiçoeira, alguns toques sobre esse projeto, pode responder ao que você está chamando de “estado de poesia” que interpreto como uma pergunta sobre a inspiração. 

O Projeto parte da palavra “Peixe”, para construir o moto-contínuo do restante do poema, ganha força no conjunto de matéria-prima extraída da rigorosa seleção do que acontece à minha volta, devidamente anotada, que pode resultar em poesia.  Parte do apoio referencial veio do ensaio do Harold Bloom, crítico norte-americano, morto recentemente, que tive acesso, à época, no original: ‘A Map of Misreading”, de 1975, ou “Um Mapa da Desleitura”, da Imago,1995:

“não existem textos, apenas relações entre os textos. Estas relações dependem de um ato crítico, uma desleitura ou desapropriação, que um poema exerce sobre outro”.

O Projeto começou com o meu primeiro livro “A Profissão dos Peixes”, 1ª edição de 1987, pago com o saque do meu FGTS, aproveitando transferência do regime celetista para o estatutário, concursado que sou do extinto Ministério do Trabalho e Emprego, onde exerci como Advogado Trabalhista, a Auditoria Fiscal do Trabalho, por 39 anos, combatendo o trabalho escravo, infantil; coordenando oficinas de Economia Popular Solidária, na periferias, assentamentos de trabalhadores rurais, e comunidades rurais; mediando Mesas de Negociação de Acordos e Convenções Coletivas de Trabalho, entre sindicatos patronais e de empregados.

O “vidapalavra” trabalha com a proposta de cinco edições, sempre revistas e diminuídas do “A Profissão dos Peixes”, uma espécie de círculo giratório lingüístico que se propõe terminar num cartaz, na quinta e última edição prevista.

A 2ª edição é de 1993, feita em Brasília pelo escritor Nilto Maciel, que manteve por dez anos a revista “Literatura”. Acabo de dar por concluída a 3ª edição e espero editá-la no próximo ano, por uma editora de São Paulo.

O Projeto tem despertado interesse daqueles que conhecem ou tiveram dele alguma notícia. Antes, tentava timidamente dar algumas explicações, muitas vezes, apenas sorria, puxava por outra conversa, ou me calava.

No fundo, existia de minha parte, a esperança de que alguém, exercitando quem sabe a curiosidade, fosse atrás das edições anteriores, e discutisse a questão, acrescentando algo de interessante ao Projeto,
que escrevesse sobre “revisar e diminuir” um livro de poema, quando muitos autores, em nome de uma revisão melhorada ou aumentada, acabam apenas engordando o volume da obra. Houve até quem tentasse escrever e publicar alguma coisa a respeito, mas nada que realmente valesse a pena. De uns tempos para cá venho expondo com mais frequencia o resumo do “vidapalavra”. Inclusive a abertura da 3ª edição, traz o resumo do Projeto.

Uma proposta, no mínimo ambiciosa, cujo exercício, tem a ver com o entendimento de que a poesia exige ao poeta trabalhar com o menos. É a única criação artística que aceita retirar parte sua, sem sentir falta. O “vidapalavra” não se resume, como pode pensar o menos avisado, em diminuição do número de páginas, retirada de poemas, tamanho do livro, nada disso,
implica muito mais, em ressignificação no tempo do poema, uma busca constante de restauração de memória, sobretudo, a potencialização das estruturas significativas da linguagem.

Artur Gomes - Livros ou livro, cuja leitura contribuiu para a elaboração de sua obra de poeta?

Rubervam Du Nascimento – Na adolescência, dois livros me levaram literalmente à lona. Leio bastante andando pela casa, tropecei no batente de uma porta enquanto lia. Por muito pouco não fui parar no hospital. Os livros: ‘Os Lusiadas”, de Camões e o “Guesa Errante", do Sousândrade, presente do meu professor de Português Hildegardes. 

Na hora do recreio ia para a Biblioteca do Ginásio, onde estudava, numa cidade do interior do Maranhão, chamada Coroatá, beira-linha São Luis/Teresina, próximo a Caxias, terra do Gonçalves Dias e do meu amigo poeta Salgado Maranhão. O meu professor Hildegardes da Silva, nunca esqueci o nome dele, encontrou-me lendo poesia e, no outro dia, me entregou dois livros, de sua biblioteca particular. 

Livros aparentemente inacessíveis ao meu pouco estudo sobre poesia, mas que insisti na leitura, por despertar em mim algo que não sabia bem o que era, mas que me trazia um desassossego sem igual, diferente do que havia sentido até aquela data, ao conviver com outros autores, na sala de aula, nos compêndios escolares que, confesso, não me despertavam tanta atenção: Olavo Bilac, Casimiro de Abreu, Gonçalves Dias, Castro Alves, exceto o poema negreiro do Castro Alves, e o histórico “Os Timbiras” de Gonçalves Dias. Então ficava sem fôlego, lendo e relendo as partes que mais me provocavam. O Canto que descreve a “guerra dos deuses” n’Os Lusíadas, a sublime sedução de Vênus, interessavam-me muito mais do que a própria viagem de Vasco da Gama à Índia, que constitui o núcleo do poema de Camões.

Outra figura que mexeu bastante comigo em “Os Lusíadas”, foi o Velho de Restelo, a reprovação às aventuras marítimas, num roteiro que à primeira vista, apenas exalta as conquistas portuguesas.

Com “O Guesa” o susto foi mais surpreendente, deixou-me com um nó pulando na garganta. As colagens utilizadas em "O Guesa”, entremeadas de línguas estrangeiras que sequer tinha ouvido falar, a não ser alguma coisa de inglês e latim, que constava na grade escolar do Ginásio, pertencente aos católicos, o primado do mito nativo do poema, o imbricamento de palavras, a harmonia de imagens, até hoje soam harmonicamente ao meu ouvido como desafios. Mais tarde entendi que a dificuldade encontrada de início na leitura do poema do Sousândrade, tinha a ver com o “sismo de vibração acima da curva acústica da época”, conforme registro no “Re visão de Sousândrade”, do Augusto e Haroldo de Campos, Perspectiva-2002. 

Foi com esses dois livros que aprendi a sublinhar as minhas leituras, a riscar os livros, a fazer anotações em cadernos. De lá para cá me tornei um leitor voraz de tudo o que é épico.  Ao reunir o que escrevo, pensando em livro de poema, acredito estar compondo, nem que seja um pequeno épico.

Artur Gomes - Um poema preferido, seu ou de outro poeta? 

Rubervam Du Nascimento – Complicado escolher um poema isolado. Costumo dizer que não sou autor de poemas. Escrevo livros de “poema” com algarismos numéricos, não títulos, em seu conjunto. Jamais reunirei uma seleta de meus poemas preferidos. Inclusive não recomendo ninguém pegar um livro meu, abrir no meio, ou em uma página qualquer, ler uma página em separado, na tentativa de decidir se gostará ou não do livro. Todo mundo está a costumado a ler um livro de poesia assim, como se um livro de poesia, obrigatoriamente, fosse constituído de vários poemas. Não pudesse ser acompanhado de um roteiro. Nos anos 70, nunca aceitei essa “história” de fazer livros jogando papéis para o alto, as folhas que caíssem ao avesso entrariam no livro, as demais ficariam de fora. Ao ver esse processo acontecer com outros poetas, desconfiança que não estavam sabendo o que fazer com o que escreviam, pensava ser uma forma irresponsável de compor algo muito precioso que não poderia ficar, digamos, a cargo apenas do acaso. 

Para responder a sua pergunta, prefiro, citar um texto que encontrei datilografado, marcando página de um livro, na biblioteca da então Escola Técnica Federal do Piauí, onde fazia o curso de Estradas, pelos idos de 1975. Praticamente havia chegado para residir na distanter-e-sina, como chamo a capital do Piauí, onde permaneci por 45 anos. É o “Pessoal intransferível” do Torquato Neto, que me intrigou bastante, a tal ponto que o levei para casa, li e reli várias vezes, e o tenho decorado.

Digo pela primeira vez que esse texto de Torquato me fez trilhar por outros caminhos, e só a partir de então passei a escrever alguma coisa que acreditava ser aproveitável, eu que carregava naquele tempo, um livro encadernado horroroso: Rastros de Estros, catatau com quase duzentas páginas, composto de sonetos com rimas frouxas, irregulares, alguns versos marcados por batidas de matracas de Bumba Meu Boi, como contagem de sílabas, tentativa que, salvo engano, tinha lá alguma validade, pois continuo até hoje a buscar essa sonoridade rítmica. Um tijolão que acabei mais tarde jogando fora. A partir da leitura desse e outros textos do Torquato Neto, passei a considerá-lo um poeta essencial. Eu e os poetas da minha geração nunca aceitamos que Torquato não fosse visto como poeta.

Os antigos avalistas da história literária do Piauí, incluídos os chamados “imortais” piauienses da academia de letras, achavam que Torquato não era poeta.

Por nossa causa, depois de muitos debates da sua obra, de sua luta pela invenção, felizmente, mudaram de ideia. Hoje facilmente se encontra a poesia de Torquato nos ensaios que publicam. Lembra desse texto, Arthur, está no “Os Últimos dias de Paupéria”, organizado por Waly Sailormoon, 1973:

escute meu chapa: um poeta não se faz com versos. É o risco, é estar sempre a perigo sem medo, é inventar o perigo e estar sempre recriando dificuldades pelo menos maiores, é destruir a linguagem e explodir com ela. Nada no bolso e nas mãos. Sabendo: perigoso, divino, maravilhoso. Poetar é simples, como dois e dois são quatro sei que a vida vale a pena etc. Difícil é não correr com os versos debaixo do braço. Difícil é não cortar o cabelo quando a barra pesa. Difícil, pra quem não é poeta, é não trair a sua poesia, que, pensando bem, não é nada, se você estar sempre pronto a temer tudo; menos o ridículo de declamar versinhos sorridentes. E sair por aí, ainda por cima sorridente mestre de cerimônias, “herdeiro” da poesia dos que levaram a coisa até o fim e continuam levando, graças a Deus. E fique sabendo: quem não se arrisca não pode berrar. Citação: leve um homem e um boi ao matadouro. O que berrar mais na hora do perigo é o homem, nem que seja o boi. Adeusão”.

Artur Gomes - Qual o poeta de cabeceira? Continua sendo o Torquato Neto?

Rubervam Du Nascimento- Claro que é necessário sempre retirar da prateleira escritores da qualidade do Torquato.

Posso destacar poetas do Piauí que já foram embora para Pasárgada, mas que é recomendável retornar ao que escreveram: Mário Faustino, H. Dobal, Leonardo da Senhora das Dores Castelo Branco.

O Leonardo é um dos poetas mais interessantes que conheço, participou ativamente de movimentos libertários no Piauí e no Brasil. Um dos precursores da Batalha do Jenipapo, em prol da independência do Brasil, ocorrido às margens do riacho Jenipapo, em Campo Maior Piauí, tendo à frente lavradores, vaqueiros, indígenas que, com suas armas artesanais da madeira da jurema, deixaram literalmente sem roupa, sem munição, a tropa portuguesa do Major Fidié, defensor do Império, "pois além de matarem muito deles, roubaram as bagagens dos soldados, enquanto dormiam". 

Preso em cadeia de Portugal, depois de solto, muito tempo depois, retornou ao Brasil e envolveu-se com a Confederação do Equador. Em 1856 editou um livro de discurso livre, com 4.247 versos “brancos”, à moda dos grandes épicos, e deixou os ensaístas provincianos de então sem saber o que dizer, e quando disseram foi de forma desatualizada, escondido viés de preconceito político-comportamental, na tentativa de desqualificação da sua obra. O livro chama-se: “A Criação Universal”. Dialogo com esse livro do Leonardo, no “MARCO- Lusbel Desce ao Inferno”, meu segundo poema editado.

Porém é preciso dizer que o meu poeta ou poeta de cabeceira, que ficam comigo o tempo todo, é o poeta ou a poeta que estou lendo, e que conseguem me envolver, me invadir, me tomar por inteiro. Passo noites com esses poetas, e essas poetas, sonho com elas e com eles, durmo e acordo embalado por suas palavras.

No momento em que respondo as suas perguntas, releio uma poeta e um poeta de Portugal: “Poemas Escolhidos” da minha amiga de “...todas as mulheres de Modigliani”, um dos livros da Graça Pires, de quem estou a decorar os poemas, dominado pelo ritmo da beleza de seus versos, “Poemas Completos”, do insuperável Herberto Helder, um dos poucos que soube expressar o lírico, com tamanha força poética, que todo o universo íntimo, vira mundo, se universaliza.


A poeta daqui de São Paulo que conheço pessoalmente, a Camila Assad, pelos rastros poderosos de sublime poesia, que vai deixando no leitor, ao caminhar pelos seus dois livros: ‘Desterro’, “eu não consigo parar de morrer”, das Editoras Macondo,  e Uruatu, respectivamente. Acabei de reler “Eu não consigo parar de morrer” e agora estou com a poeta em seu “Desterro”. Poeta que dá vontade de riscar o livro e anotar observações sobre a sua escrita. O poeta mineiro Edimilson de Almeida Pereira, que acaba de editar pela Editora 34: “poesia +”, poética de considerável realização, resultante de pesquisa estético-histórico, com ênfase na busca de vozes identitárias, há muito sufocadas.

Uma poeta do Rio, que reside atualmente em Sampa, a Marília Garcia, que acompanho desde que residia na distante-e-sina, autora dentre outros do extraordinário “engano geográfico”, que tive o prazer de recebê-lo pelos correios, com uma generosa dedicatória.

A Marília, cujas obras nos reservam agradáveis surpresas, à medida que mapeiam ângulos singulares em visita que, somente o olhar curioso de poeta, o olhar-fleche refinado, é capaz de captá-los e reordená-los no poema. Impressiona o domínio de diálogo com as escolhas de vozes, imagens, vivências humanas circundantes, de seus livros. A Marília encara com invejável resultado o chamado poema longo.  

Outro que está me fazendo ir atrás, inclusive, de outros poetas que aponta em suas anotações críticas, a exemplo do francês de “a Rosa das Línguas”, Michael Deguy, é o Marcos Siscar, e seu livro: “de volta ao fim- o “fim das vanguardas” como questão da poesia contemporânea”, 7 Letras. Leitura urgente e obrigatória a quem escreve hoje a poesia.

Posso acrescentar mais dois livros que acabo de receber pelos correios, em adiantada leitura: “Fliperama” de Fabiano Calixto, da Corsário-Satã, de Sampa, e “poesia contemporânea- refigurações do sensível”- coletânea de texto organizada por Gustavo Silveira Ribeiro, Eduardo Horta Nassif  Veras e Tiago Guilherme Pinheiro, para a Quixote+Editoras Associadas, de Belô.

A leitura de mais esses dois livros, pode nos levar a conhecer o que se escreve e se publica de melhor na poesia contemporânea brasileira, e à discussão de pontos críticos, necessários a quem escreve poesia, no momento.

Artur Gomes - Em seu instante de criação existe alguma pedra de toque, algo que o impulsione para escrever?

Rubervam Du Nascimento –Para mim, como já demonstrei acima, com o  “vidapalavra”, poesia não vem do nada. Sou um incorrigível cortador de jornais e revistas lidos que, depois, ponho em caixas e sacolas, na expectativa de serem aproveitados em algum poema. Agora com a internet, complemento com colagens de partes de matéria que leio, e guardo em pasta especial do comput.

O que mais provoca a minha escrita é a leitura. Além de resultar em escolhas e recolhas, auxilia o despertar dos cinco sentidos, e dos demais que, por desuso, por simples desconhecimento, os descartamos.

Esses sentidos esquecidos, digamos, são fundamentais para o impulso das conexões neurais do cérebro, ativação dos sensores de capitação de imagem, e podem transformar o que capto, em novas percepções de mundo, as mais diversas, as mais significativas. Depois, costumo ir até a exaustão para juntar o que restou de vivo, com o devido cuidado para não utilizar o excesso. Uma coisa que a poesia não tolera é o excesso. A companhia preferida da expressão poética chama-se “compacidade”.

Não quer dizer que essa particularidade só atenda o poema curto, pode pertencer a um poema mais extenso, a um discurso mais longo. Concisão que eu falo é, sobretudo, de ideia formal, de precisão de linguagem.

Artur Gomes - Livro que considera definitivo em sua obra?

Rubervam Du Nascimento- “A Profissão dos Peixes”. No início, a minha intenção era ser autor apenas dessa obra, a ideia ganhou desdobramentos, depois de muitos anos, quando resolvi, participar de concursos literários de livros inéditos, submeter a minha poesia ao crivo de um julgador que acreditava ter convivência com a poesia, lembrando que não foi deixado de lado o “vidapalavra”. 

Todos os livros editados posteriormente tiveram como ponto de partida versos copiados ou recriados do “A Profissão dos Peixes”. A experiência acabou dando certo: tenho mais três livros em circulação, oriundos de prêmios examinados por banca constituída, como depois fico sabendo, por pessoas de comprovado conhecimento e prestígio na área da literatura. Quatro livros ganharam concursos a nível nacional, e um premiado internacionalmente, com direito a recebimento  de boa quantia em  euros, escultura de cerâmica de conhecido artista português, e a edição do livro com o selo da Livraria Arquivo: “De Dentro de Mim Partiu a Última Caravela”- Prêmio de Poesia “Francisco Rodrigues Lobo-2019”- Leiria/Portugal.

Conforme a coordenadoria do prêmio, o meu livro foi selecionado entre quatrocentos e oitenta e sete originais, encaminhados de praticamente todos os países de língua portuguesa. Seria apresentado, como chamam por lá lançamento, em 28 de março último, não fosse o corona atrapalhar tudo.

Canceladas as passagens, hospedagem, adiada a apresentação, não se sabe quando será marcada nova data. Inclusive, a confecção do livro foi interrompida. Quero continuar participando de Concursos Literários. É uma maneira que escolhi para tentar que a minha poesia chegue a lugares e pessoas que jamais chegaria, não fosse através de premiação literária desse tipo.

Artur Gomes - Além do verso, já exercitou ou exercita outra forma de linguagem, além da poesia?

Rubervam Du Nascimento – Andei escrevendo e editando nos anos 70, em jornais e coletâneas, contos, pequenos ensaios, e peças teatrais, algumas encenadas por grupos de teatros amadores do Piauí. Cheguei a rascunhar umas quarenta páginas de um romance que acabei deixando de lado, e não pretendo retomá-lo. Uma vez ou outra rascunho “notas” sobre leituras de livros e/ou poemas, prefácios, que pretendo, futuramente, editar em livro. Sou fiel ao compromisso que assumi com a poesia.

Um belo dia disse a mim mesmo o seguinte: se é para fazer bem feito alguma dessas coisas que escrevo, tenho que aproveitar o meu tempo de vida na terra, para fazer apenas uma. Optei pela poesia.

A partir de então passei a trabalhar com a poesia não como hoby, como passatempo, tampouco como “cadeira de divã”, para jogar com meus problemas, mas como algo que se soltasse dos meus dedos e fosse parar muito além de mim, trabalhasse com a coleta que fosse capaz de atingir muito mais o outro, do que a mim mesmo. Entreguei-me com afinco à tarefa da poesia, com extrema dedicação, como se estivesse diante de um ofício. Acreditei que somente assim seria possível tentar viver de maneira visceral a poesia, antes de repassá-la ao papel. É fácil assimilar isto? Não é, mas é fundamento precioso pra se entender o que significa a poesia e o seu processo criativo. Há quem afirme que Pound trabalhou certa vez por seis meses para fixar uma emoção complexa e instantânea em um poema de quatorze palavras. Intrigante, não?

Artur Gomes - Qual poema escreveu quando teve uma pedra no meio do caminho?

Rubervam Du Nascimento – todo poema que escrevo tem uma pedra no meio do caminho. O que já disse sobre o “vidapalavra”, não deixa de ser uma espécie de pedra, que tenho de esmiuçá-la, para abrir caminho às palavras, toda vez que me envolvo com a criação.

A pedra de Drumond foi a sua matéria de susto. Penso que a pedra nunca deixou de existir nos poemas seguintes de Drumond. Seguiu com ele na construção de todos os poemas, particularmente os mais prospectantes, de “Claro Enigma”, por exemplo.

Caminho de poesia fácil, pode ser um caminho enganoso. Todo poeta deveria agradecer à poesia, por colocar uma pedra no caminho da construção do  poema. Neste instante da minha vida, depois de mais de quatro décadas de exercício com a escrita poética, garanto que já cheguei a um grau considerável de convivência com essa pedra drumondiana, sabendo que se trata não de uma simples pedra, mas uma pedra de poesia, pedra de cantaria, pedra polida, a minha muiraquitã, de encanto e poesia.

Artur Gomes - Escrevendo sobre o livro Pátria A(r)mada, o poeta e jornalista Ademir Assunção, afirma que cada poeta tem a sua tribo, de onde ele traz as suas referências. Você de onde vem, qual é a sua tribo?

Rubervam Du Nascimento- Venho de uma época de intensa movimentação poética. Época em que poetas e poesia me fizeram entender que o mundo é uma construção coletiva; época de rescaldo da explosão da cultura pós-68; época dos anos de chumbo, de cavalos desembestados, espalhando espuma de suas bocas raivosas, ardidas, envenenadas, pelas ruas, nos gramados dos palácios, nos bares, nos locais de reuniões, de conversa entre amigos.

Em contrapartida, época que parecia que todo mundo, principalmente os jovens, estavam juntos para abrir algum caminho que nos levasse a outro mundo, em que fosse possível viver sem amarras em nossa voz, sem desrespeito à nossa palavra, sem correntes em nossos passos.

Ao final do ciclo, essa mobilização nos legou uma boa dose de liberdade que, infelizmente, a juventude de hoje não está sabendo utilizá-la. Não atirei bolinhas de gude para derrubar cavalos endiabrados, para testemunhar jovens vestindo roupa do exército, carregando bandeiras com quadrados de estrelas com metáforas de bombas, tatuando na pele símbolos de arbítrios, de condutas genocidas, condenadas pela história.

Pior, tudo em nome da lógica bestial de um consenso reinante chamado neoliberalismo, que ensina com um cinismo repugnante, a disputa do empurra-empurra, do “salve-se quem puder” do “se lixe” do “e daí?”.

São muitos aqueles que não querem saber da máxima bastante utilizada por minha geração, hoje irresponsavelmente utilizada pela propaganda de produtos comerciais, de que corações que tocam juntos, batem no mesmo ritmo. O que assistimos hoje é um verdadeiro descompasso de tudo. Um bater de corações desgastados, não importa estejam no peito de gente muito jovem. As batidas que mais ouvimos, e muita gente segue, são batidas ensurdecedoras, de horror, que invadem as nossas janelas, abrem buracos nas paredes de nossas casas, derramam sangue na farda de nossas crianças que conseguem ir à escola.

Aos poetas da minha geração, a poesia, há milênios expulsa da República, por questionar a planificação da vida insuportável que as cidades ofereciam e continuam a nos oferecer, mais uma vez deu o mote para romper com esse círculo vicioso de regras danosas à vida em sociedade, e seguimos o seu chamado: ou colocaríamos a arte e as arte(manhas) em geral à serviço de algo melhor para todos nós,

ou o poeta entendia, que a arte, que a literatura, que a poesia, são capazes, de invadir com o seu encanto e beleza, as entranhas da realidade, devassá-la por dentro, tornando ridícula, por exemplo, a pobre verborragia oficialesca;

ou colocaríamos a bagagem da poesia nas costas para andar, para pedir passagem; ou romperíamos com a atitude dos “imortais” das letras, subservientes ao conservadorismo, à tradição imobilizadora, aos bajuladores de paraísos cadavéricos, ou era melhor ir procurar fazer outra coisa. 

Estávamos conscientes de que as linhas gerais desse chamado já estavam escritas na palma de outras mãos que agitaram outros tempos, antes de nós. As bases dessa possibilidade de rebeldia, já tinham sido riscadas dentre outros por: Mallarmé, Baudelaire, Rimbaud, Lorca, Maiakovski, Vallejo, Gertrude Stein, Rubém Dario, Ginsberg, Huidobro, Anna AkhmátovaGirondo, Lezama, Osvald. Precisávamos ter coragem para reiniciar o ciclo, tentar seguir as linhas curvas por onde caminharam os pioneiros da poética atrevida.

A partir daí entramos na mira daqueles que anteriormente achavam que a poesia não metia medo a ninguém, era incapaz de incomodar uma viva alma. Os representantes dos fardados verde-oliva passaram a desconfiar que poesia não mais era coisa de solitários navegantes de desertos, de jogadores de pedra na lua, em namoro com musas inatingíveis,

anjos sem espadas, que gastavam suas energias, perdiam o tempo contando e acentuando sílabas dos versos, mesmo que atravessados pelo ritmo das matracas do Bumba Meu Boi. Desde então, os poetas entraram definitivamente nos radares daqueles que descobriram por trás do livrinho mal acabado que carregava a palavra de nossa poesia, muito mais do que simples gotas de álcool e um mimeógrafo, mas que fazíamos parte da “Passeata dos 100 mil”, que éramos capazes sim de lutarmos por mais ar para respirarmosPassaram a fazer plantão no lugar onde estávamos, infiltraram agentes à paisana para o registro de nossos passos nos dossiês secretos da PF. Lembro que decorei alguns versos e me punha a dizê-los a todo pulmão, aonde chegávamos. Era a nossa bomba, o nosso foguete explosivo. Um deles era o verso da Cecília Meireles:

“Pusilanimidade o teu nome é covardia”

Por causa desses versos da Cecília, e outros, tive que comparecer, várias vezes à sede da PF. Recebemos intimações para levar nossos poemas para o exame dos censores, antes de serem editados. Guardo comigo alguns poemas com o carimbo de “aprovo” ou ‘proibido” da PF.
A minha geração deu um nó na certeza daqueles que pensavam que os poetas nunca foram perigosos.

Artur Gomes - Nos dias atuais o que é ser um poeta, militante de poesia?

Rubervam Du Nascimento- Observo de perto o que ocorre na periferia dos centros urbanos.  Tenho participado de momentos muito fortes, ocorrido na quebrada, como se chama em Sampa, a comunidade mais distante, cujo eixo central de encontro e aglutinação é a voz da palavra, o batuque da poesia, o pulsar de mentes e corações. As pegadas do happy, do hip-hop, do slam, muito me agradam, lembram as disputas dos repentistas nordestinos que tanto assisti no Nordeste. 

Meu pai, nos anos 30 e 40, foi um dos maiores “botadores” de Bumba Meu Boi, da Ilha de São Luis do Maranhão, onde nasci. O happy, os campeonatos de slams, além de voz, dão vez ao ritmo do poder identitário. E mais: renovam a língua, tiram o cascão de sua ferida. A língua envelhece, cria rugas, e só a arte, a poesia, emprestam vigor ao que nela, com o tempo, se desgasta. Uma pegada rap que considero formidável: “é nós”. Escuto muito o Emicida pronunciar isso. Um dia desses vou arriscar escrevê-lo num poema.

Artur Gomes - Revisitando Quintana: você acha que depois dessa crise virótica pandêmica, quem passará e quem passarinho?

Rubervam Du Nascimento –O filósofo esloveno Slavoj Zizek disse recentemente ao “Público”, jornal português que acompanho: “o resultado mais provável da epidemia é que um novo capitalismo bárbaro prevalecerá”. Não é tão fácil acabar com a sacanagem dos “passarão” que por décadas se colocam como únicos proprietários do mundo. Certamente se unirão ao diabo para impedirem qualquer ameaça à acumulação de seus latifúndios. Não pensam duas vezes quando investem para imobilizarem as asas, quebrarem o bico dos passarinhos que beliscam os seus interesses. Infelizmente eles mexem com as peças do maquinário que faz girar a geringonça enferrujada do mundo,

querendo ou não, tudo isso afeta a arte, a cultura, os artistas, incluídos os poetas, os “passarinhos” que insistem em lutar contra o asfalto e o cimento, louvados e protegidos  pelos “passarão”.

Daí ser muito pouca a minha expectativa. Por isso digo que nem sei se essa coisa medonha vai acabar algum dia. Para mim a tendência é piorar. Duvido que um mundo econômico seja possível, como tentou o movimento da economia popular solidária, que dele participei por mais de três décadas, com outra lógica de convivência, de troca de valores, de valorização da arte, da cultura, da natureza, de “comércio justo e solidário”. O individualismo de nossos dias, torna impossível a vida em sociedade. O que esse vírus trouxe, e poucos estão entendendo o recado, é que há muito tempo fazemos parte de uma sociedade doente. Doença de gravidade tão repetida, tão intensa, tão entranhada em nós, que fica difícil apostar em uma reversão. O que temos feito, ao longo de nossa vida, repassado aos nossos filhos e netos, com raríssimas exceções, é alimentar as causas dessa doença. O coronavirus, assim como as demais enfermidades que nos atormentam, são apenas conseqüências do nosso modo de viver e de morrer, todos os dias.

Acredita Artur que o mundo romperá facilmente com as mágicas perversas dos encantadores de demônios, que promovem, e nos obrigam a formas terríveis de sobrevivência, neste planeta?

Esses encantadores de demônios, perderam a moral para enfrentarem dias tão difíceis, sem causar danos, sem deixar feridas abertas, pro resto da vida. Como se não bastasse, o que é mais lamentável, é que tem gente seguindo esses encantadores de demônios, chegando ao cúmulo de vê-los como “messias”, como “heroís”. Como disse o amigo Luiz Ruffato, em resposta a um e-mail enviando abraços nesses tempos em que a possibilidade de abraço só acontece via online: “é verdade, será que poderemos voltar a dar abraços?”. Realmente a gente fica sem saber pelo que esperar, Arthur.

Atrevo-me a dizer que me apavoro ao imaginar que tudo pode voltar a ser como sempre foi, principalmente para nós no Brasil que o pior já aconteceu.

Antes da pandemia chegar em nós, havia explicitado numa página da revista impressa de grande prestígio, editada no Piauí, a “Revestrés”, que não tenho mais tempo para brincar com a esperança. A afirmação diz muito ao sentir que a minha utopia foi roída pelos dentes do vampiro de um tempo que desaprendeu a lidar com as complexidades da vida, que tenta resolver complicações seculares da vida em sociedade de forma simplória, aceita e prega a violência, a morte besta, com naturalidade. Quem me conhece de perto sabe muito bem que não sou de desistir facilmente do que eu quero; o desânimo nunca me levou a crises duradouras. Sou um cara que aprendi, com certa eficiência, a dar o devido troco aos socos da vida, mas ínsito, estou desanimado com tudo isso. Um exemplo?

Embora seja um sujeito que adora ficar em casa lendo e escrevendo, de vez em quando, procuro as pessoas que quero para estar perto, abraçar, sorrir com elas, ler poesias, e estou sendo violentamente impedido, neste instante, de exercer esse direito.

Em abril último, logo após a minha ida a Portugal, que acabou não acontecendo, seria um dos três convidados pelo Tarso de Melo e pelo Heitor Ferraz, poetas que muito prezo, a ler meu poema no Vozes/Versos, um dos eventos de poesia dos mais prestigiados daqui de São Paulo, foi desmarcado, não ocorreu por conta do isolamento a que estamos submetidos, e sinceramente não sei quando voltaremos a nos reunir de novo na simpática livraria Tapera Taperá, que recebe o evento. 

Fico muito triste quando me dou conta de quantas vidas estão indo embora, de graça, levadas por essa pandemia, por culpa da insensibilidade, da atitude negativa, perversa, genocida das autoridades de plantão. Enquanto respondo as perguntas, dou uma pausa para verificar as chamadas dos e-mails e do face, e fico sabendo, através de um amigo do Rio de Janeiro, que um poeta faleceu, há poucos dias, no corredor de um hospital, à espera de um respirador que nunca veio. Morreu sufocado, sem poder sequer gritar, pedir socorro. Aí vem o coveiro-mor da República, com a cara mais lambida do mundo, e espalha no twitter que ninguém morre de coronavirus no Brasil por falta de respirador. Como sentir-me seguro num país com o “desgoverno” de um sujeito como esse?

Ontem chegou-me a notícia da morte da poeta Tânia Diniz, de Minas, mantive com a Tânia, contato por cartas e poesia, há mais de trinta anos, e a conheci pessoalmente ano passado em Belo Horizonte. Uma pessoa muito viva. Foi levada ao hospital, debilitada por uma doença que enfrentava há anos, e após 48 horas retornou morta para casa. Qual a prova de que não morreu em razão da falência da prestação de serviços médicos, nesses dias terríveis?

A Tânia Diniz manteve por muitas décadas o projeto poético “Mulheres Emergentes”, um projeto de resistência à mediocridade reinante dos mais pertinentes, que não pode ser jogado fora. Como disse o meu amigo poeta Tanussi Cardoso, na entrevista ao seu Fulinaíma: “tanta gente do bem morrendo, parece que o cerco está realmente se fechando”. Sem esse papo de cristão imbecil, de que todo mundo vai morrer um dia, no dia certo escolhido pelo divino, retorno ao Tanussi num poema recente: “morrer é mesmo uma merda”. 

Como explicar que não será mais possível abraçar pessoas tão caras para nós, Artur, pessoas tão caras para a poesia, para as artes cênicas, para a música? Antes da Tânia foram embora, pelo que fiquei sabendo, em período relatividade curto, o Marcos Vinícius Quiroga, o Blanc, a Olga Savary, o Migliaccio, o Fernando Py. Queria muito que estivessem sendo levados pelo covid-19, gente que, sinceramente, não faria falta alguma se fosse para o inferno, e não voltasse nunca mais para “atravancar” a nossa vida.

Artur Gomes – Considero você um poeta da laia dos poetas que o Ezra Pound chama de “Antena de Raça”, um poeta-crítico, no dizer do Haroldo de Campos, sempre atualizado, não só em relação à poesia brasileira, mas universal, já que sei, fazes leitura em algumas outras línguas, como vê a poesia brasileira e de outras partes do mundo, hoje?

Rubervam Du Nascimento – Frequentador assíduo de livrarias, sebos, sítios de compras de livros e revistas, pela internet, tento acompanhar o que está sendo lançado no Brasil, e em outros países, inclusive através de contatos com poetas que acompanho há tempos.

Arrisco a dizer que a poesia brasileira continua a atravessar um período de ruminação das vanguardas. Trabalha com os impasses das propostas desafiadoras, deixadas por esses movimentos, que não creio estejam exauridas, como muitos afirmam.

O limite criativo da poesia contemporânea está justamente em fazer ou não a leitura correta do impacto desses desafios no que hoje se escreve. Sinto que de repente nos colocamos diante de algumas indefinições, quanto a construção estética e de linguagem do poema, e fica por isso mesmo, sem que o poeta pelo menos discuta essa questão. Confesso que me incomodam os livros que dão preferência por mergulhos em espelhos excessivamente narcísicos, em sobras de vertigens urbanas, com clara dificuldade de sair do confessionalismo, das lamúrias domésticas, dos problemas existenciais insolúveis. 

Convivi com poetas que conseguiram muito bem trabalhar com essa questão. Lembro da Ana Cristina César, que conheci pessoalmente. A Ana C conseguiu como poucos, dar um tom diferenciado à sua intimidade de poeta de sabida vivência urbana, através de criativos diálogos interiores fictícios, com personagens carregados de amplitude universal. 

Talvez por isso os diálogos citadinos da Ana C, como preferia ser chamada, sejam tão recorrentes na poética contemporânea. Penso que a poesia exige determinado equilíbrio diante do peso do deslumbramento apoteótico das luzes de neon, dos sinais de trânsitos, das sirenas doentias das metrópoles-catacumbas.

A via de escape da cidade aprisiona o fervor da criatividade dos poetas, de nosso tempo. A maioria dos poetas que leio parece ter saído de uma incubadora citadina, classe média, e dessa incubadora não quer sair nunca.

Quem sabe esteja aí a dificuldade do poema em atingir hoje uma melhor inflexão pública, de adquirir o testemunho mais abrangente do espírito coletivo do seu tempo. Afinal de contas, nem tudo é só cidade, amontoado de asfalto, cimento e ferro-velho, “cortiços enormes”, helicópteros em voo de ferro pelo céu cinza. Temos de visitar outros espaços. Fácil encontrá-los? Claro que não, mas é possível, se entendermos a poesia, como interminável busca por novidade.

Chamo a atenção para a ausência gritante de divulgação de poetas que se equilibram de maneira satisfatória no fio tênue desses impasses, pouco conhecidos, sem circulação por aqui.  Poetas que nunca saíram de seus estados, não trocam correspondência com ninguém. No Norte e Nordeste do país, até mesmo em estados mais próximos do eixo Rio/Sampa, conheço o trabalho de poetas que merecem mais atenção e leitura.

Cito a poesia do Djamir Sezostre, mineiro que recentemente passou por São Paulo, e agora reside em Curitiba. Conheço o Djamir desde 1978, e acabo de escrever a apresentação do seu livro: “Óbvio Oblongo”, da editora Laranja Original, São Paulo. Em Teresina, de onde venho, existem poetas interessantes que merecem maior reconhecimento. Só da minha geração: o Paulo Machado, a Graça Vilhena, a Marleide Linz Albuquerque, Carvalho Neto, Rogério Newton, da geração mais nova, Demetrios Galvão, Carmen Gonzalez, Ranieri Ribas, Nathan Sousa, Adriano Lobão, Thiago E, Laís Romero. Fora do Brasil, não acontece a boa poesia apenas nos considerados centros tradicionais de cultura, como França, Itália e Portugal. Em países mais distantes ou próximos ao nosso, Argentina, Peru, Colômbia, México, Cuba, existem poetas exemplares.

Da Venezuela, por exemplo, tento traduzir, há uns três anos, a poeta Yolanda Pantin, premiadíssima poeta, sem edição no Brasil, com quem mantenho contato desde que estive em Caracas, em 2003.

O mesmo ocorre na África, na Ásia, no Leste Europeu, poesia que raramente chega por aqui, citaria o Miodrag Pávlovitch, um dos maiores nomes da poesia sérvia contemporânea, cuja poesia só foi conhecida por nós, devido a edição de um livro seu “Bosque da Maldição”, na coleção “poeta do mundo”, da editora Universidade de Brasília, 2003. Não importa se motivado pelo Nobel de Literatura, temos que comemorar quando cai em nossas mãos, em nossa língua, poeta do tamanho da polonesa Wislawa Szymborska.

Artur Gomes - Que pergunta não fiz que você gostaria de responder?

Rubervam Du Nascimento – Está de bom tamanho a nossa conversa. Agradeço a lembrança, e o convite para essa rodada de conversa com poetas, em meio a tanta gente valorosa que já circula em tua “Fulinaíma”. Brigadão pelo espaço.

Fulinaíma MultiProjetos
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domingo, 21 de junho de 2020

Nic Cardeal - EntreVistas



Conheci Nic Cardeal através do face, lendo sua poesia, em postagens diversas, feitas por ela mesmo, ou compartilhadas por outra poetas do “Mulherio das Letras”. Desde as primeiras me chamou atenção na sua poesia, a leveza, e ao mesmo tempo a força da poética na afirmação do ser mulher, feminina, envolta, não apenas pelo existencial, mas por tudo que a cerca, nesses tempos monstruosos. Convidá-la para esse bate papo  foi apenas uma simples questão de tempo, para dar conta de compromissos anteriores.

Nic Cardeal, catarinense radicada em Curitiba/PR, graduada em Direito, é autora de ‘Sede de céu – poemas’ (Penalux, 2019), e aguarda a publicação de seu próximo livro – uns contos e outras crônicas – em fase de costuras e remendos. Já publicou textos em 29 antologias/coletâneas – 24 no Brasil, 4 em Portugal e 1 na Alemanha. É integrante do movimento Mulherio das Letras desde a sua criação em 2016. Seus escritos estão compilados na página no Facebook “Escrevo porque sou rascunho”. Também faz ‘resenhas afetivas’ de livros de autores amigos, na página do Facebook “Minha lavra do teu livro”. Possui textos publicados em revistas/blogs eletrônicos, tais como: ‘Scenarium Plural’, de Lunna Guedes e Marco Antonio Guedes (https://scenariumplural.wordpress.com); ‘Blog do Menalton – Literatura’, do escritor Menalton Braff (blogdomenalton.blogspot.com); ‘Revista Gueto – Artes Literárias’ (https://revistagueto.com); ‘Germina - Revista de Literatura e Arte’ (https://www.germinaliteratura.com.br); ‘Revista Digital Literatura & Fechadura’ (https://www.literaturaefechadura.com.br); ‘Revista Virtual Cultural Carlos Zemek’, a convite da escritora Isabel Furini (revistacazemek.blogspot.com). Atualmente também publica, como autora/colaboradora, a convite da editora Chris Herrmann, na revista eletrônica ‘Revista Feminina de Arte Contemporânea SerMulherArte’ (www.sermulherarte.com). Além disso, está sempre escrevendo suas insuficiências porque, assim como é imensa a sina das palavras, também é profunda a necessidade de dizê-las.


Artur Gomes – Como se processa o seu estado de poesia?
Nic Cardeal – Tenho a sensação de que o melhor ‘estado de poesia’ é o sonho, ainda que estejamos despertos na consciência do mundo material ao nosso redor. Meu ‘respiro’ no mundo é muito mais interno do que na realidade concreta, então sinto que esse ‘estado de poesia’ acontece justamente depois que eu ultrapasso essa linha tênue da realidade e da fantasia, do sonho, do fantástico, lugar em que me entrego aos devaneios do pensamento, da emoção e do sentimento. Creio que melhor adubo para a poesia não há do que esse ‘estado de devaneio’. Acho que esse estado acontece exatamente na “conjunção entre o instante e a eternidade”, como já explicou Gaston Bachelard, no seu livro ‘A intuição do instante’.
Naquela obra ele finaliza dizendo que “a poesia é uma metafísica instantânea”. Dessa afirmação entendo que a meta do poeta é justamente alcançar esse instante metafísico, e então o esculpir na matéria rara da poesia, dando-lhe eternidade por meio das palavras. Assim, a poesia não deixa de ser uma experiência instantânea do metafísico, ela “recusa os preâmbulos, os princípios, os métodos, as provas. Recusa a dúvida. Quando muito, ela tem necessidade de um prelúdio de silêncio”, como também concluiu Bachelard, no mesmo texto.
Isso não significa, de modo algum, que o mundo ao meu redor não me afete ou não influencie no modo como eu lido com esse ‘estado de poesia’. É impossível viver no mundo físico e não se afetar por ele, em todos os seus âmbitos e nuances. Somos almas vivendo experiências humanas e, sendo assim, nossa humanidade é suscetível às influências do meio. Viver, por si só, é um profundo ‘estado de poesia’, é uma dor, mas também é constante surpresa, embevecimento, desencanto, fascinação, enfim, todos os paradoxos possíveis e imagináveis são cultivados nesse terreno fecundo, mas tantas vezes também inóspito, que é a vida.
Artur Gomes – Seu poema preferido? Próprio. Ou de outro poeta de sua admiração.
Nic Cardeal – Não tenho um único poema preferido. São tantos quantos os(as) poetas preferidos(as). Penso que essa preferência tem todo o direito de ser mutante, alternante, uma vez que nós todos somos mutantes, nunca somos os mesmos. Bem por isso o gosto poético também é alterável com o decorrer do tempo, dos anos. Nesse momento pandêmico, por exemplo, tenho me agarrado (com unhas e dentes!) ao poema ‘Carpe Diem’, de Walt Whitman:

CARPE DIEM (Aproveita o dia)
(Walt Whitman)

“Aproveita o dia,
Não deixes que termine sem teres crescido um pouco.
Sem teres sido feliz, sem teres alimentado teus sonhos.
Não te deixes vencer pelo desalento.
Não permitas que alguém te negue o direito de expressar-te, que é quase um dever.
Não abandones tua ânsia de fazer de tua vida algo extraordinário.
Não deixes de crer que as palavras e as poesias, sim, podem mudar o mundo.
Porque passe o que passar, nossa essência continuará intacta.
Somos seres humanos cheios de paixão.
A vida é deserto e oásis.
Nos derruba, nos lastima, nos ensina, nos converte em protagonistas de nossa própria história.
Ainda que o vento sopre contra, a poderosa obra continua, tu podes trocar uma estrofe.
Não deixes nunca de sonhar, porque só nos sonhos pode ser livre o homem.
Não caias no pior dos erros: o silêncio.
A maioria vive num silêncio espantoso. Não te resignes, nem fujas.
Valorize a beleza das coisas simples, se pode fazer poesia bela, sobre as pequenas coisas.
Não atraiçoes tuas crenças.
Todos necessitamos de aceitação, mas não podemos remar contra nós mesmos.
Isso transforma a vida em um inferno.
Desfruta o pânico que provoca ter a vida toda a diante.
Procures vivê-la intensamente sem mediocridades.
Pensa que em ti está o futuro, e encara a tarefa com orgulho e sem medo.
Aprendes com quem pode ensinar-te as experiências daqueles que nos precederam.
Não permitas que a vida se passe sem teres vivido.”

Também agora tenho lido muitas vezes o ‘Estatuto do Homem’, de Thiago de Mello:

“(...) Artigo V
Fica decretado que os homens
estão livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar
a couraça do silêncio
nem a armadura de palavras.
O homem se sentará à mesa
com seu olhar limpo
porque a verdade passará a ser servida
Antes da sobremesa (...)”

Artur Gomes – Qual o seu poeta de cabeceira?
Nic Cardeal – O ‘meu poeta de cabeceira’ são os meus poetas de cabeceira. São andantes, alternantes, vão e voltam, substituem-se naturalmente, conforme meu estado de ânimo, meu estado de inspiração, minhas tristezas e alegrias. Nesse momento estou sendo atravessada, mais uma vez, pela poesia de Fernando Pessoa, revisitando Cecília Meireles, Emily Dickinson, revendo Walt Whitman, Thiago de Mello, Manoel de Barros. Descobrindo as maravilhas de Anne Sexton, Silvina Ocampo e Edna St. Vincent Millay, por meio da tradução impecável da também incrível poeta Mariana Basílio. Ando lendo outra vez Carlos Drummond de Andrade, Alejandra Pizarnik, Hilda Hilst, Sophia de Mello Breyner Andresen, João Cabral de Melo Neto, Patti Smith. A minha cabeceira tem sido pequena, tanta é a poesia de que tenho sentido sede!
Artur Gomes – Em seu instante de criação existe alguma pedra de toque, algo que a impulsione para escrever?
Nic Cardeal – A ‘pedra de toque’ de minha produção poética é o próprio instante. Qualquer instante. É tudo muito aleatório, porque a inspiração em mim é aleatória, quase como deitar para dormir, e sonhar. E é sempre repentino esse sonho – tem de haver algo inspirador que me faça ‘acender a luz’.
 Talvez a inspiração seja o grande mistério. A gente nunca sabe quando ela vem, mas é certo, ela sempre vem, se estamos abertos para a palavra. Passo dias, semanas, sem escrever nada. Escrever parece não depender de mim. Acho que a palavra só vem a mim quando está pronta, não importa onde eu esteja.

Muitas vezes percebo somente a ideia, para então, em um tempo futuro, organizar as partes, os elementos, o texto e o contexto. Por isso mesmo não tenho uma meta diária de escrita. Tudo o que me desconcerta também me acrescenta – o estado interno ‘fervente’ da dúvida, do medo, da busca, do desespero, do maravilhamento do amor – tudo isso desconcerta – e acrescenta. Eu sou um punhado de ‘mins’ que se desconcertaram com o passar dos anos. Penso que a escrita é justamente um modo de me organizar diante desse caos interno, acho que é isso o que acaba por me salvar. Tudo é muito confuso em mim, não sou nada organizada no mental. Enfim, acho que a escrita em mim se resume a isso:

NA GARGANTA

Se me perguntares outra vez por que escrevo
gritarei contigo todo o meu poema reduzido:
Escrevo porque preciso
- tenho a alma entalada na garganta
e um coração refém dos meus ouvidos –
isso é tudo.

(Nic Cardeal, in: Sede de céu, Guaratinguetá, SP: Penalux, 2019, pág. 111)

Ou, seguindo Clarice Lispector, “estou escrevendo porque não sei o que fazer de mim” (em ‘Um sopro de vida’).

Quem sabe, então, a ‘pedra de toque’ seja também a própria vida, nos seus cheios e nos seus vazios. Coisas de fora ou de dentro. Às vezes tudo junto. Algo que vejo por aí, algum livro lido, algum pensamento perdido. Ou, um acontecimento social, político, que me cause indignação, comoção, e eu sinta necessidade de expressar minha angústia, minha revolta, tristeza, desolação. 

Artur Gomes – Livro que considera definitivo em sua obra?

Nic Cardeal – Não há um definitivo, mesmo porque, até hoje só publiquei um livro solo (Sede de céu - poemas, Penalux, 2019), apesar de escrever desde muito jovem. Tenho participações em várias antologias, mas somente ano passado encontrei atrevimento suficiente para a primeira publicação individual. ‘Sede de céu’ é apenas a primeira folha de uma árvore que segue teimando em se prolongar por muitos anos. Então, que as estações se renovem e me permitam o florescer da poesia...

Artur Gomes – Além da poesia em verso, já exercitou ou exercita outra forma de linguagem com poesia?

Nic Cardeal – Bem, estou com um livro em prosa poética praticamente pronto, que deveria ter sido publicado também em 2019, porém, devido a alguns contratempos com a finalização da ilustração da capa, acabei optando por colocá-lo para hibernar, e está assim desde janeiro de 2020. Inclusive, tenho a intenção de alterar o título original e substituir alguns textos, pois já os sinto ultrapassados. Ele está composto de crônicas curtas e alguns poucos contos. Também tenho outro livro de poemas já em fase de organização e, além disso, tenho alguns textos infanto juvenis prontos, à espera de coragem para a publicação. Depois da pandemia (esperemos que haja um depois!), é muito provável que eu retome esses projetos.

Artur Gomes – Qual poema escreveu quando teve uma pedra no meio do caminho?

Nic Cardeal – Na verdade, sinto que a maior parte dos meus poemas é escrita a partir de pedras encontradas no caminho, às vezes no meio, outras, na beira, na calçada, nas rotas de fuga do caminho. A pedra que precisa ser ultrapassada, desviada, para evitar o tropeço ou a queda, a pedra no sapato, na garganta, que tranca a passagem do sangue até o coração. Eu diria que os poetas, e os escritores de literatura de um modo geral, são genuínos catadores dessas pedras, depois as lapidam e delas fazem poemas, contos, crônicas, romances.

No meu caso, acho que uma ‘boa’ pedra no meu caminho, e que é constante em muitas das minhas poesias, é o tema da infância, das lembranças da infância. Há também o tema da efemeridade da vida, da curiosidade com o ‘além da morte’, sinto sempre isso muito presente no meu texto, seja na poesia ou na prosa. Não por acaso Clarice Lispector já dizia que “as palavras nada têm a ver com as sensações. Palavras são pedras duras e as sensações delicadíssimas, fugazes, extremas” (in: ‘Para não esquecer’, Rio de Janeiro/RJ: Rocco, 1999).

 Artur Gomes – Revisitando Quintana: você acha que depois dessa crise virótica pandêmica, quem passará e quem passarinho?

Nic Cardeal – Bem, sou uma eterna otimista, apesar de constantemente me debruçar sobre um quase interminável mar de tristezas... Por isso quero crer que ‘quem passará’ serão todos aqueles que não conseguem compreender e exercitar o verdadeiro sentido de humanidade, de inclusão, solidariedade, respeito, ética, honestidade, em todos os âmbitos. Que passem os fascistas, os racistas, os violentos, os coléricos, os odiosos, os excludentes...

‘Quem passarinho’? Todos os que resistem no voo, na liberdade de ser, na pluralidade de viver, ainda que timidamente. Todos aqueles que acreditam no amor, na ternura, na humanidade, num mundo pacífico, solidário e inclusivo. Todos os pequenos – aos olhos brutos do gigantesco monstro do capitalismo!

Artur Gomes – Escrevendo sobre o livro Pátria A(r)mada, o poeta e jornalista Ademir Assunção, afirma que cada poeta tem a sua tribo, de onde ele traz as suas referências. Você de onde vem, qual é a sua tribo?

Nic Cardeal – Eu venho do interior de Santa Catarina (Brusque). Até os cinco anos morei no sítio, casa de madeira despintada, sem energia elétrica, só luz de velas e lampião de querosene, fogão a lenha, banheiro fora de casa, de madeira, atravessando o ribeirão. Penúltima filha de uma tribo de nove, mãe professora e pai topógrafo prático. Depois que nos mudamos para o centro da cidade (por insistência de minha mãe com meu pai), passei a freqüentar a escola e me tornei presença assídua na biblioteca, junto de minhas irmãs mais velhas.

Lia de tudo, desde os clássicos da literatura infantil e juvenil mundial (irmãos Grimm, Hans Christian Andersen, Lewis Carroll, Carlo Collodi, James Barrie, Mark Twain, Robert Louis Stevenson, Laura Ingalls Wilder...), até os nacionais, passando por Monteiro Lobato, Mario Quintana, José Mauro de Vasconcelos, entre tantos outros. A partir da adolescência, encantei-me com Cecília Meireles, Clarice Lispector, Hermann Hesse, J. R. R. Tolkien, Charles Dickens, João Guimarães Rosa, Fernando Pessoa, Virginia Woolf, Florbela Espanca, Carlos Drummond de Andrade, Manoel de Barros, Henry David Thoreau, Walt Whitman. A partir do momento em que comecei a trabalhar, já na adolescência, enquanto cursava o ensino fundamental e depois o médio, assinei o Círculo do Livro, e então eu podia escolher meus próprios tesouros.

Enfim, lia muito, de tudo. Adorava as aulas de Português, gostava muito de escrever redações. Lembro que no terceiro ano do antigo ‘primário’ fui a primeira colocada em um concurso de redações, e ganhei uma linda coleção de livros ‘clássicos da juventude’. Isso me deu ainda mais motivação para prosseguir com a escrita. Na adolescência escrevia muito mais, mas escondia praticamente todos os escritos, que permaneciam engavetados. Uns e outros eram publicados em jornais mimeografados da cidade natal, nos idos de 1974/78, como o ‘Cogumelo Atômico’, e depois o ‘Flama’. Meu primeiro texto em livro foi publicado em 1983, em uma compilação intitulada ‘Antologia do varal literário’, organizada pelo poeta Alcides Buss (Florianópolis/SC: Ed. da UFSC, 1983).

Depois disso segui escrevendo, mas nunca publicava, continuava deixando tudo escondido. A vontade de publicar foi recuperada depois que encontrei o movimento ‘Mulherio das Letras’, em 2016. A partir daí tenho participado de diversas antologias de poesia e de prosa. Também já participei de quatro antologias em Portugal e uma na Alemanha. Meu primeiro autógrafo foi em 2018, durante a ‘37ª Semana Literária SESC & XVI Feira do Livro Editora UFPR’, em Curitiba/PR, no lançamento da antologia ‘Um girassol nos teus cabelos – poemas para Marielle Franco – 50 vozes por Marielle’ (Belo Horizonte: Quintal Edições/Organização Mulherio das Letras, 2018, Curadoria: Cidinha da Silva, Eliana Mara e Marilia Kubota), da qual faço parte. Dizem que o primeiro autógrafo a gente nunca esquece. De fato, é emocionante e, de igual modo, difícil de esquecer, principalmente para quem, como eu, começou a publicar individualmente assim tão tarde, já depois dos 50!

Por isso eu digo: escrevam! Escrevam muito! Escrevam sempre! O aprendizado da escrita ocorre com a prática. E, claro, com muita leitura. E a gente nunca está, de fato, pronta. Não existe isso de ‘autor perfeito’. A evolução literária é contínua. Eu ainda me sinto no início da caminhada pela palavra, em permanente aprendizado da escrita. Sinto que é a escrita que me exercita e não eu a ela. Às vezes penso em escrever por um caminho e, quando chego ao final, o texto seguiu outro rumo. A bússola não sou eu quem alinha. Existe um mistério nessa coisa de palavras, quem sabe uma espécie de costura, arremate, remendos de sentidos. Vou seguindo a linha. Às vezes os nós são desatados e tudo se descostura. Faz parte desse aprendizado de dizer os sentidos, as emoções, as reações, a vida...

É gratificante o amor pela palavra, pela literatura, pela poesia, porque, como já disse o poeta Alcides Buss, “(...) a poesia nos mostra a nós mesmos, estimulando-nos à autenticidade (...). Vale a pena. Eros contra Tanatos, a poesia mesmo quando fere, fere vitalmente. Por isto, por aquilo e muito mais. Uma imagem do poeta mexicano Octavio Paz: “o poema é um caracol onde ressoa a música do mundo” (...)”.

Artur Gomes – Nos dias atuais o que é ser uma poeta, militante de poesia?

Nic Cardeal – Nos dias atuais, nesses tempos obscuros em que o fascismo volta a se impor no mundo, penso que a arte e a literatura têm papel social importantíssimo! A poesia, a arte como um todo, não só pode, como deve militar causas, defender oprimidos, minorias, ter papel inclusivo em uma sociedade  jamais excludente. Como já disse Desmond Tutu, “se você é neutro em situações de injustiça, você escolhe o lado do opressor”. Acho que esse pensamento diz tudo!

No entanto, em tempos tão sombrios, confesso que até a poesia custa. Mas há que resistir à desolação, ao desespero, à vontade de parar, de abandonar o barco. Ainda bem que escrever é visceral, não se consegue alcançar o estancar da sangria da palavra por vontade própria. Uma vez, perguntada sobre o que é poesia para mim, eu disse isto (num poema que escrevi em 2018):

FERIDA ABERTA

O poeta perguntou ao ‘Divino Deus das Palavras de Dentro’:
– O que é poesia?
– Poesia é uma ferida aberta – as palavras são as linhas que costuram a ferida.
– Como costurar sem agulha?
– Você é a agulha.

(Nic Cardeal, in: Sede de céu, Guaratinguetá, SP: Penalux, 2019, pág. 155)

Quando escrevi esse texto eu pensava justamente nisso, se de fato a criatividade me é inerente ou não, se sou uma genuína militante da poesia. Aí tive essa impressão, como se a poesia fosse a ferida aberta que eu vejo, ou sinto, ou absorvo do mundo, e ela pode, inclusive, estar em mim, na minha alma, em meu coração, ou na minha pele. Então eu preciso, por necessidade de sobrevivência mesmo, pegar a palavra (linha) e costurar essa ferida (poesia). No caso, portanto, eu sou a agulha que, com a linha, costura a ferida. Mas não sem dor – nunca sem dor!


Artur Gomes – Que pergunta não fiz que você gostaria de responder?

Nic Cardeal – Adorei todas as perguntas feitas. Talvez seja apenas importante frisar que, para as mulheres, as dificuldades do caminho na literatura são sempre maiores do que para os homens. Então sempre gosto de lembrar que desde 2016 as mulheres brasileiras têm levantado uma ‘bandeira’ importante, um movimento que só faz crescer – é o Movimento ‘Mulherio das Letras’, que reúne mulheres não somente escritoras, poetas, mas também todas aquelas dedicadas a outras vertentes artísticas, como ilustradoras, designers, pintoras, compositoras e/ou cantoras, editoras, acadêmicas etc.

Além de ser um movimento, é um incrível ‘alimento’ que nos fortalece, não nos deixa enfraquecer diante das agruras destes tempos difíceis, sombrios. É um grupo literário nacional, com intenção de agregar, revelar, auxiliar mulheres ligadas à literatura. Como já disse uma das idealizadoras e organizadoras do grupo, a premiada escritora Maria Valéria Rezende, “a ideia é que seja uma forma de congregação de autoras, completamente livre e sem hierarquia.”

O Mulherio é um “coletivo feminista literário formado por mulheres diretamente interessadas na expressão pela palavra escrita ou oral”, como registrado nas regras e dicas da página no Facebook, e esse “coletivo é apartidário, mas não é apolítico. Somos unidas na luta pela participação ativa da mulher na literatura nacional, levando em conta os momentos políticos e nossa inserção política na sociedade”.

A importância de um movimento como esse é fantástica, e isso já sentimos na pele, nós que estivemos em João Pessoa/PB (Primeiro Encontro Nacional Mulherio das Letras, em 2017), no Guarujá/SP (Segundo Encontro Nacional Mulherio das Letras, em 2018), e/ou em Natal/RN (Terceiro Encontro Nacional Mulherio das Letras, em 2019), de uma forma ou de outra, pois muitas das nossas inquietações, diante da histórica exclusão das mulheres nos tradicionais espaços literários, têm sido sanadas ao longo destes poucos anos de existência do movimento.

Seja por meio de publicações independentes,  exclusivamente de autoria feminina, seja pelo aumento da participação feminina em concursos literários nacionais e/ou estrangeiros, seja nos debates e discussões acerca do papel da mulher escritora no âmbito educacional e político, nestes obscuros tempos.

 Além disso, já temos o movimento ‘Mulherio das Letras’ em Portugal, na Europa e nos Estados Unidos, todos representados por mulheres brasileiras lá residentes, e que têm tomado frente em encontros literários naqueles países. Há uma ideologia aí inerente, mas há também, e principalmente, uma prática constante: queremos alcançar visibilidade e, fundamentalmente, igualdade entre todos nós, mulheres e homens, no meio literário.

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