Artur
Gomes - Como se processa o seu estado de poesia?
Alexandra
Vieira de Almeida - Primeiro
vem a inspiração, um arrebatamento, em que sou tomada pelo poder da palavra, a
me conduzir a outros caminhos indizíveis da escrita. Depois vem o burilamento
estético, a artesania linguística, em que lapido a matéria-bruta da inspiração
nas melhores joias a serem desenhadas pelo intelecto mais preciso e fecundo.
Artur
Gomes - Seu poema preferido? Próprio. Ou de outro poeta de sua
admiração.
Alexandra
Vieira de Almeida - Meu poema preferido de minha própria lavra é “Dormindo no verbo”. Nele, revelo, pela força da metalinguagem como a carne da
poesia se adensa na matéria dos salões universais da linguagem. Este poema foi
vencedor, entre cerca de 2.500 poemas, no segundo lugar no Prêmio Vivara. Com
ele, ganhei uma medalha de prata que guardo até hoje, com grande honra e
alegria.
Dormindo no verbo
Dormindo
no verbo
logaritmo
do vazio
espera o
anoitecer em branco
Entre a
verdade e a palavra
escolhe
as letras equilibristas
que
morrem no abismo
Mesmo o
atalho para as pedras
o fez
vacilar entre o gesto e a crença
Saliência
de palavras
que
mancha o papel taciturno
Na noite
esquelética
os livros
dão carne para os outros
ávidos
por dançar no salão da matéria
O verbo
se fez carne
a matéria
se fez palavra
prestes a
preencher a vida dos outros
inimigos
da sombra
que se
desfaz em sonho
Dorme na
coagulação do sangue
corpo que
se move no vazio
da
atmosfera escassa do osso
Carnaliza
os vazios da noite
para se
fazer dia do verbo encarnado
Dorme,
dormee espera
na
entrega do verbo
para os
outros com insônia
O verbo
se preenche de carne
manchando
as páginas em branco
que
esquálidas, tiram a fome
de anos e
anos de espera.
Artur
Gomes - Qual o seu poeta de cabeceira?
Alexandra
Vieira de Almeida - Murilo
Mendes. Ele teve grande influência na minha escrita, não só pela riqueza
metafórica, como pela temática surrealista abordada. Principalmente meus
primeiros poemas na fase adulta. Os livros “40
poemas” e “Painel” são reflexos
deste poeta magistral. Há um transbordamento de imagens, com versos
predominantemente longos e jogos de linguagem inusitados nestes dois livros.
Murilo Mendes tem uma poesia que realça o trabalho com as figuras de linguagem.
Artur
Gomes - Em seu instante de criação existe alguma pedra de toque,
algo que o impulsione para escrever?
Alexandra
Vieira de Almeida - Sim.
Dois fatores que mais impulsionam a minha criação são a leitura de outros
livros e a minha relação com a existência. Com a leitura de outros autores,
novas ideias surgem, reconstruindo-as, ressignificando-as ou destruindo-as, com
minha dicção particular. A existência também é um fator preponderante, pois
retiro o tecido, a matéria-prima dos meus textos a partir da minha relação e
interação com a realidade e com os outros. A outridade é também o espelho no
qual me miro.
Artur
Gomes - Livro que considera definitivo em sua obra?
Alexandra
Vieira de Almeida - Meu
livro que considero mais importante e que tem todo o aval da crítica é “A serenidade do zero”. Marcos Pasche,
prefaciador da obra, crítico literário e professor da Universidade Federal
Rural do Rio de Janeiro, disse-me que amadureci mais com esse livro de 2017,
lançado pela grande Editora Penalux. Igor Fagundes, grande poeta, ensaísta e
professor da UFRJ, disse-me que nesse livro eu equilibro o voo e o pouso, pois
minha poesia anterior tinha muito o voo, com a imaginação muito aberta. Nesse
livro, tenho mais um processo de conscientização da escrita.
Artur
Gomes - Além da poesia em verso já exercitou ou exercita outra
forma de linguagem com poesia?
Alexandra
Vieira de Almeida - Desde
o meu primeiro livro, “40 poemas”,
faço poemas em prosa ou prosa poética. Também escrevi alguns contos e crônicas
com uma linguagem mais poética. Pretendo escrever futuramente, novelas e
romances, expandindo meu trabalho literário.
Artur
Gomes - Qual poema escreveu quando teve uma pedra no meio do
caminho?
Alexandra
Vieira de Almeida - O poema “A
serenidade do zero”. A escrita desse
texto se deu numa época de grande adversidade, em que tive que transpor
obstáculos. O resultado após essa tempestade foi a calmaria, a tranquilidade,
em que reflito sobre o zero após o caos interior.
A serenidade do zero
Deus não está somente na esquerda
e nem na direita
Do zero proveio a multiplicidade
dos outros números
Na confusão das formas
Das línguas das religiões
Precisamos voltar à fonte
A origem sem nome
Ao vazio primordial
Sem o dualismo do bem e do mal
Sem som sem sabor
Sem perfumes ou cor
O sol clarifica as formas
Nos faz ver a ilusão da dor
Como voltar à nulificação da cor
Sem transparência ou escuridão
Nem luz nem trevas
O caminho é o sem caminho
O vagar nem no ponto nem na linha
Nem no círculo, circunferência ou
centro
Ser sem teto bordas e tintas
Nem céu nem inferno
Nem em cima nem embaixo
Nem cá nem lá
O zero em sua solidão não se
identifica
O grau zero da serenidade
O divino em pleno despertar.
Artur
Gomes - Revisitando Quintana: você acha que depois dessa crise
virótica pandêmica, quem passará e quem passarinho?
Alexandra
Vieira de Almeida - Acredito
que a solidariedade falará mais alto, deixando o processo de desumanização de
lado. As pessoas se tornarão mais amorosas e aqueles que não estiverem afinados
com a nova lei do amor passarão. Os pássaros da beleza e de nossa verdadeira
humanidade se refletirão em textos e atitudes cada vez mais sublimes.
Artur
Gomes - Escrevendo sobre o livro Pátria A(r)mada, o poeta e
jornalista Ademir Assunção, afirma
que cada poeta tem a sua tribo, de onde ele traz as suas referências. Você de
onde vem, qual é a sua tribo?
Artur
Gomes - Nos dias atuais o que é ser um poeta, militante de poesia?
Alexandra
Vieira de Almeida - Ser militante hoje para mim é criar uma
ponte entre os diferentes. Não procuro o panfletarismo, a guerra, a oposição
ferrenha, mas a paz que construirá castelos, não de areia, mas de tijolos
sólidos, que não se desmancham no ar. Procuro representar os valores sociais
pela subjetividade estética, dando valorização literária a temas como a
negritude, como podemos ver no meu mais recente livro de poemas, “A negra cor
das palavras”.
Artur
Gomes - Que pergunta não fiz que você gostaria de responder?
Alexandra
Vieira de Almeida - Qual relação do poeta com seu tempo?
Resposta - Acredito que o
escritor deva espelhar o seu tempo na poesia, ao revelar as escolhas que ele
faz com relação à realidade. O autor deve registrar a história de uma época a
partir de uma poesia reflexiva e que apresente um sonho de criar um universo
onde reine a beleza e a delicadeza, apesar da crueldade e insensibilidade
presentes no mundo.
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