domingo, 14 de junho de 2020

Nayara Valle - EntreVistas


Conheci Nayara Valle, ao vivo, no XXI FestCampos de Poesia Falada. Foi uma noite de muita chuva quase tempestade, mas a poesia aqueceu  corações e mentes das pessoas que desfrutaram da magia  daquela noite  8 de novembro de 2019. Hoje estamos conectados no zap e no face, dando continuação a uma amizade que aflorou, desde o momento que ela entrou apressada e molhada de chuva no anfiteatro do Liceu de Humanidade de Campos.

Nayara Valle nasceu dia 13 de setembro de 1979. Cresceu em Barra do Cuieté/MG – um vale entre o rio e o mar. Formada em Letras – Português e pós-graduada em Jornalismo Cinematográfico. Trabalha como funcionária pública. É tia da Bel e feminista. Em 2019 lançou pela Editora Urutau seu livro de poesias Esmeril


Artur Gomes -  Como se processa o seu estado de poesia?

Nayara Valle - Eu vivo muito interiormente, como se eu me fechasse em pensamentos e sensações. Contudo, o de fora me toca profundamente. Então essa distinção é até desnecessária, já que o meu movimento é convergir tudo para um único lugar que não é nem fora nem dentro, uma espécie de amálgama dos dois – um acolhimento contínuo do mundo em mim, de forma que ambos somos tocados pelo movimento do outro.

A poesia chega até mim nos meus momentos de trânsito: andando pela cidade e, agora na quarentena, olhando pela janela. É um processo de corpo em movimento, mesmo que só através do olhar. Acontece a poesia em qualquer tempo-lugar: uma sombra no poste, um lixo sendo varrido, sensações que se assemelham a lembranças, qualquer estilhaço de vida que de repente brilha mais em algum instante e insiste. Esse arrebatamento anda sempre em diálogo com minhas memórias de infância e com livros/textos que me tocam. E assim como minhas errâncias pela cidade, o estado de poesia é para mim também transitório. Há momentos de nada em que me sinto abandonada pela poesia. Isso me angustia. Da sensação de vazio vem o receio de não mais ser convocada por um tipo de assombro que resignifica absolutamente tudo, a ponto de sentir saudade do futuro e ansiar o passado, para te dar um exemplo.

Há uma história interessante sobre Rilke contada por Augusto de Campos no prefácio de Coisas e Anjos. Ele diz que por uma espécie de mística, como se possuído por um espírito, em pouco mais que duas semanas, Rilke concluiu os Sonetos a Orfeu e grande parte das elegias que compõe as Elegias de Duíno, começadas dez anos antes. Esta história diz muito sobre o processo de escrita poética para mim. O próprio Rilke, em uma de suas correspondências, aconselhou deixar que aconteça o tempo da poesia para, então, ser possível acontecer o poema.

Nos meus momentos sem poesia busco consolo e apaziguamento no conselho de Rilke e mantenho-me à espera do tempo que for preciso para que os meus poemas caiam em cima de mim, pois é assim que nos encontramos.

E quando isso acontece, quando sequer espero, me pego catando versos, palavras soltas no bloco de notas ou gravador do celular, ou em qualquer folha de qualquer caderno mais próximo.

Além de tentar me apaziguar aceitando que a poesia tem seu tempo e seus caprichos, e que, talvez por isso, um estado poético nem sempre produz poemas, como a gente espera, também me oriento exercitando Drummond: Penetra surdamente no reino das palavras./Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Não sei se isso responde a sua pergunta (risos).

Artur Gomes - Seu poema preferido?

Nayara Valle - Não consigo te dizer um poema preferido, acharia injusto. Tenho vários. Às vezes dependendo da estação ou do humor, me surpreendo alterando a lista.
De todo modo, escolhi alguns versos que me acompanham há muito tempo porque insistem na minha memória afetiva. Não posso dizer que são meus preferidos, mas são aqueles que com certeza marcaram muito muitas travessias da minha vida, por isso, tenho um carinho todo especial.

Carlos Drummond de Andrade:
Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.


Mário de Sá-Carneiro:
Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.

Maiakóvski:
Por cima do abismo
estende-se minh’alma!
tensa como um cabo
onde me equilibro,
malabarista das palavras.

Hilda Hilst:
Tempo do corpo este tempo, da fome
Do de dentro. Corpo se conhecendo, lento,
Um sol de diamante alimentando o ventre,
O leite da tua carne, a minha
Fugidia.
E sobre nós este tempo futuro urdindo
Urdindo a grande teia. Sobre nós a vida
A vida se derramando. Cíclica. Escorrendo.

Artur Gomes - Qual o seu poeta de cabeceira?

Nayara Valle - O meu poeta de cabeceira é o que está lá neste instante:

Walt Whitman e seu Folhas de Relva.
Acho que nunca vou conseguir ler o livro por completo. Então pode ser que ele se torne meu livro de cabeceira.

Primeiro porque eu tomei o prazer por abri-lo em qualquer página e por este motivo quase sempre leio o mesmo poema várias vezes.

O segundo motivo é que a cada nova leitura sou levada para fora do livro, porque outro mundo se descortina pra mim, como se eu tirasse um véu que cobre meu olhar, continuamente.

Artur Gomes - Em seu instante de criação existe alguma pedra de toque, algo que o impulsione para escrever?

Nayara Valle - Eu disse um pouco sobre isso na primeira pergunta.

Absolutamente tudo pode ser uma pedra de toque que me impulsiona.

Apesar de serem tão plurais os meus impulsos de escrita, um mote que é quase uma constante é a memória. Ela perpassa quase todas as minhas sensações e afetos. E como me acompanha em decisões diversas, temas diversos, sonhos, é impossível não tê-la também presente nos meus poemas. Não saberia dizer se a memória pode ser considerada a minha pedra de toque ou um tema muito recorrente. Talvez sejam as duas coisas.

Recentemente, tive um sonho muito triste com a minha avó. Acordei no meio da noite e fiquei andando pela casa e vieram alguns versos. Senti uma vontade muito grande de escrevê-los para não os esquecer caso voltasse a dormir. Então peguei a caneta e um caderno e fiquei rabiscando praticamente no escuro, para não acordar ninguém. Eram quatro versos, a princípio, que se desdobraram em três páginas. Ainda estão lá no caderno, consegui reler só uma vez.

Geralmente, por uma sensação, uma imagem, uma associação qualquer vem alguns versos e logo imagino um quadro. Como disse, eu registro no primeiro objeto que tenho à mão. E é muito comum eu deixá-los lá por muito tempo. Raramente eu sento no mesmo dia e trabalho neles. Como não acho essa prática muito boa, tenho me esforçado bastante para terminar o poema em menos tempo. Acontece que meus poemas nunca terminam. Acho que sou muito obsessiva (risos).

Artur Gomes -  Livro que considera definitivo em sua obra?

Nayara Valle - Só tenho o Esmeril (Urutau, 2019) e não o considero definitivo de forma alguma. Ele é um passinho de um grande baile.

Artur Gomes - Além da poesia em verso,  já exercitou ou exercita outra forma de linguagem com poesia?

Nayara Valle - Nunca exercitei outro tipo de escrita. Mas tenho pensado em prosa para um tipo de leitor bem específico, o infanto-juvenil. Será, quem sabe? um projeto futuro que por enquanto é puro afeto.

Artur Gomes - Qual poema escreveu quando teve uma pedra no meio do caminho?

Nayara Valle  - O meu caminho é um pedregulho só.
Então eu não sei o que é viver sobre mil platôs, tem sempre algo no qual eu tropeço.

Diria que todos os meus poemas são pedras no meu próprio caminho. O nome Esmeril vem exatamente disso, ao afiar à exaustão todo tipo de dureza que me circunda e constitui.

Um fato curioso é que conheci o esmeril na minha infância. Era uma bolinha azul que caia dos vagões de trem cheios de pó de minério que vinham de Belo Horizonte/MG rumo ao Porto de tubarão, em Vitória/MG. Eu catava aquelas bolinhas nos trilhos de ferro para brincar. Achava à época que aquilo deveria ser um tipo de dejeto, já que ninguém importava que caíssem dos vagões.

Passados quase trinta anos, escolhi a mesma palavra para dar título à minha coletânea de poemas. Hoje eu entendo o porquê, pois nem mesmo quando escolhi o nome esmeril tinha consciência da vastidão simbólica do título. A compreensão a posteriori do título é de que apenas a escrita/leitura sob a perspectiva lúdica poderia dar corpo às minhas palavras-pedregulho, como se a interrogação daquele objeto da minha infância ressignificasse na vida adulta o sentido de assumir o desejo pela escrita poética.

Bem, se você ler o Esmeril é capaz de não rir de nenhum poema, mas te digo que foi rindo, mesmo que de nervoso, e brincando com as palavras que ele aconteceu.

Artur Gomes - Revisitando Quintana: você acha que depois dessa crise virótica pandêmica, quem passará e quem passarinho?

Nayara Valle - São dias difíceis. Cada dia caem vários passarões cheio de passarinhos. E são poucos os que se comovem com a tragédia, porque não veem imagens, veem números.

Não me arrisco a dizer quem passará e quem passarinho. Mas não confio na esperança, até mesmo porque correria o risco de ter a cabeça cortada.

À parte os trocadilhos, pela experiência histórica é certo que os donos das “capitanias hereditárias” continuarão aqui - uns poucos senhores explorando a grande massa de trabalhadores, povos originários e reservas naturais.

Atualmente, muito do que me orienta vem do conceito de fraqueza de Tarkovsky em Stalker. Ele a apresenta como a frescura do ser, aquilo que tem a potência de nos manter mais humanos, flexíveis e tenros, ou seja, ainda mais vivos. Segundo ele, a dureza e a força são atributos daqueles que estão em vias de morrer. Metaforicamente ou não, acho essa inversão muito bonita. Muitos de nós escutamos a vida toda que temos que ser fortes, não lamentar, não chorar e por aí vai. Aprendi a duras penas que ser fraca e chorar me tornava mais forte e menos ressentida. Também por esse motivo pessoal o roteiro de Stalker me toca tanto. Tenho por mim e em consonância com as discussões com amigos, escritores ou não, que a maior resistência é mantermo-nos sãos, como um tipo de frente à política deste desgoverno federal, que é enlouquecedora e deprimente.

Sequer chegamos perto de elaborarmos uma centelha de resposta que sirva como escudo contra o genocídio e a bárbarie diários, sem trégua, e que só aumenta - como disse o Luís Fernando Veríssimo num tuite recente, no Brasil o fundo do poço é apenas uma etapa.

Entretanto, duas ações têm nos fortalecido. A primeira é o cultivo dos círculos de afeto, cada um cuidando de si e do outro, na medida do possível dentro das restrições da quarentena, e através dos dispositivos eletrônicos que nos permitem estarmos em contato visualmente ou pela escrita.

A segunda é o esforço diário no sentindo de ressignificar estes novos dias através da escrita (ou da música ou da pintura, da arte de cada um), para fazermos possível dentro deste mundo destroçado um outro mundo no reino-esconderijo das palavras. Acredito que a poesia é um dos únicos instrumentos que nos oferece amparo e fôlego e uma espécie de trincheira.

Artur Gomes - Escrevendo sobre o livro Pátria A(r)mada, o poeta e jornalista Ademir Assunção, afirma que cada poeta tem a sua tribo, de onde ele traz as suas referências. Você de onde vem, qual é a sua tribo?

Nayara Valle - Eu vim da Barra do Cuieté - mas a gente chama com carinho só de Barra -, um lugar que não existe no mapa, cercado pelo Rio Doce e pelo Rio Caratinga, um tipo de ilha fluvial, com pouco mais de dois mil habitantes. O lugarejo fica à leste do estado de Minas Gerais e quase na divisa do estado do Espírito Santo.

A biblioteca da escola só tinha revistas da editora abril e alguns livrinhos da coleção vaga-lume. Cheguei a ler alguns. Na minha casa não tinha livros na estante. Na adolescência comecei a me interessar por livros, mas os únicos livros que podíamos comprar eram os das promoções do Círculo do Livro, que chegavam pelos correios.

Eram best sellers tipo os livros escritos pelo Sidney Sheldon. Foi assim que tomei o gosto pela leitura. Mas nem sempre tinha dinheiro para continuar sócia e escolher livros do catálogo.

Certo dia fui à casa de uma amiga de infância, que também comprava os livros do Círculo do Livro e pedi para mexer na estante de livros. Achei uma coleção de um tal Machado de Assis. Eu tinha doze anos. Foi amor à primeira leitura e início das minhas “noites brancas”.

Mais tarde, depois de ler todo o Machado que encontrei, mexi também nas gavetas da minha mãe e achei o Elogio da Loucura do Erasmo de Roterdã e o Livre Arbítrio de Schopenhauer.

Depois desses acontecimentos, um mundo muito maior do que o mundo que eu conhecia foi para dentro da minha casa.
Um pouco mais velha, ia a cidades vizinhas pegar livros emprestados nas bibliotecas e passava os dias lendo tudo: Shakespeare, Tragédias Gregas, Drummond, Dostoiévski, Leminsk, Stendhal, Goethe... Eu li muita prosa na juventude.

O primeiro grande livro de poemas que li e que me marcou muito foi o Fausto, depois o Inferno de Dante.

Li bastante poesia na faculdade de Letras/Português, mas sobretudo crítica literária de prosa e poesia.

Passado muito tempo, me arrisquei a estudar cinema. No curso, pesquisando o cinema de Wim Wenders, conheci o roteirista de muitos dos seus filmes, o Peter Handke. Especialmente no Asas do Desejo, a poesia inicial me fez querer conhecer mais o seu trabalho. Mas foi a indicação dele de outro livro, o Meus Amigos de Emmanuel Bove, que me levou de volta para a literatura.

Então eu não saberia dizer de que tribo eu sou. Talvez daqueles que leem a partir da referência da referência da referência. A tribo solitária dos curiosos, porque na minha vida adulta toda eu tive apenas uma amiga com quem eu conversava sobre literatura de modo geral, e à distância. 

Talvez, pelas escolhas intuitivas, eu seja da tribo dos acompanhados por espíritos amigos, como Raskolnikóv ou Gregor Samsa.




Artur Gomes - Nos dias atuais o que é ser um poeta, militante de poesia?

Nayara Valle  - Toda poeta milita, parafraseando Ovídio.
Então, para mim, independente do tempo, nós, “malabaristas das palavras” estaremos sempre na linha de frente.

Nos dias atuais vejo os posicionamentos ainda mais acentuados. É quase impossível não ser afetado pela política, pela miséria ideológica e a lista é grande...

Mas apesar de parecer impossível não escrever sobre o que tem nos assolado, o que me incomoda, em alguns casos, não é a temática, mas o uso da poesia como um instrumento político por si só, carente da riqueza linguística, semântica, lírica.

Nós precisamos ser muito cuidadosos com as palavras para que nossa narrativa poética, se obscurecida por uma narrativa fascista, ainda assim possa ser capaz de registrar com rigor para o mundo o que estamos vivendo no Brasil, assim como Brecht, Maiakóvski, Wislawa, Miloz, entre tantos, fizeram em cada época histórica.

Artur Gomes - Que pergunta não fiz que você gostaria de responder?

Nayara Valle  - Eu gostei de todas as perguntas.
Só queria pontuar que as redes sociais podem ser instrumentos valioso que nos põe em contato com poetas contemporâneos, produções artísticas diversas. São canais importantes que nos ajudam a conhecer e ter acesso a muita coisa boa sendo feita nos dias atuais. Porque se a gente dependesse só de livraria, muita coisa maravilhosa e inspiradora se perderia nos vãos das prateleiras.

Fulinaíma MultiProjetos
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