sábado, 4 de abril de 2020

entre/vista com Tchello d ´Barros



Quando em 2003, lá em Bento Gonçalves-RS numa das edições do Congresso Brasileiro de Poesia, fui apresentado ao Tchello d`Barros por Jiddu Saldanha, não fazia ideia do parceiraço que ele iria se tornar na minha trajetória anárquico poética (uso aqui um termo do Ademir Assunção falando sobre o livro Pátria A(r)mada). Em 2003 éramos, e ainda somos, os lunáticos sonhadores com uma arte que possa de alguma forma ter o objetivo de transformar alguma coisa, romper, desconstruir, revelar novas fronteiras, sempre num caminho aberto para novas descobertas.
No momento em que estamos envolvidos num projeto de resgate da memória do Congresso Brasileiro de Poesia, inicio uma série de entrevistas, com poetas, amigos e parceiros, nesta que foi uma estrada percorrida por longos 20 anos de 1996 a 2016, e continuam juntos nessa mesma luta.

Tchello d’Barros, em Rio de Janeiro (RJ), entrevistado via rede social pelo poeta e ativista cultural Artur Gomes, de Campos dos Goytacazes (RJ), p/ a Mostra Visual de Poesia Brasileira
Fulinaíma Multiprojetos.
Mar.2020
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Artur Gomes: Fulinaíma Multiprojetos:
Você lembra quando criou seu primeiro poema visual?

Tchello d’Barros: O primeiro poema visual a gente nunca esquece... Corria 1.993 d.C, ano da graça de nosso senhor, eu na época trabalhava como desenhista têxtil em SC e no paralelo estudava e praticava artes plásticas (já fui pintor de ateliê). E, eventualmente, de forma lúdica e desinteressada, eu criava umas colagens gráficas, bem experimentais, com reprografia, fotografia, recortes de jornais antigos, usando tipografias variadas, fontes de letras em estilos contrastantes e com diagramações propositalmente desequilibradas. Isso, creio, tinha a ver com meus estudos de composição dos quadros do Renascimento e também com as criações gráficas do Dadaísmo e Futurismo, mas fazia por fazer, sem qualquer pretensão de expor ou publicar. As pessoas viam aquelas montagens e me diziam que eram poemas visuais, embora eu desconhecesse a Poesia Visual, esse campo híbrido entre a Literatura e as Artes Visuais. De tanto me encherem a paciência, resolvi conhecer o cânone deste campo e percebi ali uma possibilidade de criar numa linguagem desafiante e expansiva. Assim nasceu naquele ano meu primeiro trabalho, “Preconceito”, e por aí já se vê que não é de hoje o fato de as injustiças sociais aparecerem como tema em minhas criações.

 

(FOTO: A. ZIPT)


O autor em início de carreira e o poema visual “Preconceito” (1.993)  

A. G.: Quando o verbo deixa de ser essencial para o seu discurso poético?

T. d’B.: Quando a imagem dá conta do recado, quando a figura criada tem potência de comunicação suficiente para fazer emergir nas pessoas o enlevo, a estesia e o alumbramento. No entanto isto sempre será uma escolha de autor, por mais que o Concretismo (essa derivação da Poesia Visual) tenha tentado abolir o verso convencional, as “unidades rítmicas formais”. Isto quer dizer que são cometas diferentes a vagar por aí, mas a Via Láctea é a mesma. Existem as possibilidades de se criar poemas totalmente imagéticos, outros de viés mais híbrido, como poemas visuais que ora tendem mais para a figura, ora equilibram palavra e imagem e outros tem lá sua propensão a privilegiar mais a palavra mesmo. E, por fim, há esse caminho inesgotável do verso como o conhecemos, seja em poemas de formas fixas, versos brancos, versos livres etc. E não esqueçamos que o discurso poético atravessa linguagens, podendo ora estar num poema declamado (vez em quando solto o verbo nos saraus da vida), ora nas mais diversificadas mídias digitais, numa letra musical, numa dramaturgia, num roteiro etc... O melhor discurso poético é aquele que é plural.

“Combustão Espontânea” (2.018) Tchello d’Barros
A. G.: Até que ponto o poema visual pode ser também um lance de dados?

T. d’B.: Prefiro que seja um lance de dardos... Mas creio que esse ‘lance’, talvez um relance, é jogado cada vez que alguém cria um poema, visual, sonoro, performático, escrito que seja, pois ninguém sabe o resultado, os caminhos que um poema percorre, quais corações e mentes o receberão e/ou lhe farão andar ainda mais. Mas também pode ser esse instigante, pungente e transgressor ‘lance de dados’, sempre que causar alguma ruptura, quando desequilibrar o status quo, sempre que rompa conservadorismos ou anuncie novas auroras, ampliando nossa visão de mundo. Quanto mais disruptivo, melhor. Isto pode aludir à Mallarmé, quando em 1897 cria seu célebre poema Um Coup de Dés jamais N’Abolira le Hasard (Um Lance de Dados Jamais Abolirá o acaso), um poema que divide a história ocidental da Poesia em duas partes. Ele fez antes na Poesia o que Duchamp faria depois nas artes plásticas, penso. Talvez, na literatura contemporânea, não necessitamos abolir qualquer tradição poética, o consenso estaria em proteger nossos dados, digo, nossa leitura de dados viciados. Meu lance de dedos é o projeto “Convergências”, focado em Poesia Visual, que apresenta uma retrospectiva de meus mais de 100 poemas visuais em exposição física e virtual, já tendo sido apresentada em 10 Estados e 3 países, além de projeções em
eventos, vídeos na web, palestras, oficinas, mesa-redondas e curadorias de mostras internacionais. E estamos só começando...  

“Outro Lance de Dados” (2.010) Tchello d’Barros
A. G.: Qual o paralelo do Cinema com a sua Poesia Visual? Universos em comum que se complementam?

T. d’B.: A Poesia Visual é uma faceta deste artista multilinguagens que transita pelo Audiovisual, Rádio, TV, Teatro, Fotografia e outras mídias, suportes e linguagens artísticas. Tudo se resume a duas palavrinhas: Comunicação e Arte (em verdade lá no finzinho do infinito tudo converge, e (com)funde-se numa só frequência. Mas o Cinema apesar de suas especificidades não raro é atravessado pela experiência poética, como no filme “O Carteiro e o Poeta”. Estou lembrando neste momento do remake em animação de Alice no País das Maravilhas, na versão de Tim Burton, quando ouve-se o poema The Jabberwookie com legendas na tradução de Haroldo de Campos (O Jaguadarte). Temos o inverso também, quando a sétima arte transita pelos versos dos poetas, como em poemas de Paulo Leminski, Tanussi Cardoso e Sady Bianchin. Minha modesta interferência nessas complementaridades se dá nos roteiros e direções dos videopoemas que tenho produzido. Se em “Devorável” um exercício tipográfico pode aludir à nossa antropofagia cultural, em “Penélope”, trago para a contemporaneidade aspectos do grande poema épico de Homero, ao tempo que em “Partida”, é explorado um dos temas mais frequentes na poesia ocidental, aliado à uma ação caligráfica em contraponto aos tempos cibernéticos em que estamos pixelizados. Cinema e Literatura, ou Audiovisual e Poesia, são linguagens distintas mas que vez em quando flertam libidinosamente.  

Audiovisual: Curtas, videoartes e videopoemas de Tchello d’Barros



A. G.: Sua Poesia Visual rompe com a palavra de forma proposital?

T. d’B.: Sim e não e talvez e tudo junto e misturado ao mesmo tempo agora! Explico: ocorre que venho perturbando o coreto com minhas criações em Poesia Visual há tanto tempo, que isto acaba meio que sublimando toda uma outra produção poética que venho tecendo no paralelo. Publiquei os livros de poemas (em versificação convencional) “Palavrório”, “Olho Nu”, “Letramorfose”, “Olho Zen” (haicais), “A Flor da Pele” e “Cataclismica”, todos esgotados e atualmente em versão e-book. Entonces, em vez de ruptura, há confluência, seja nos temas abordados, seja na experimentação via diversos meios e suportes, seja na postura em testar os limites da linguagem. Um fio condutor é o conceito de verbivocovisual (Pound via Joyce) em que um poema pode ser fruído em suas possibilidades semânticas (verbi-verbo-mensagem), fonéticas (voco-vocal-sonoro) e visuais (visual-tipografia-diagramação). Outro conceito é o de fenômeno poético, que transcende as limitações de uma mesma linguagem, podendo a criação ser apresentada num poema, mas também numa pintura, numa performance etc. Daí que a palavra – poética inclusive – tem mais é que romper mesmo, mas romper por exemplo o deletério paradigma da necropolítica, a escroque ideologia neofascista e o maquiavélico sistema capitalista.  

Adesivo c/ nanopoema do livro “Letramorfose”


A. G.: Wladimir Dias-Pino dizia que o poema voa. Quando você cria um poema também imagina um voo?

T.d’B.: Cabia bem ao querido Wlad essa metáfora, posto que seu poema-objeto “A Ave” é possivelmente o primeiro poema visual no Brasil, lá nos idos 40/50 do Séc. XX. Naquele milênio, aquele foi o lance de dados dele na poesia brasileira, ruptura total com o que vinha sendo produzido. Depois seguiram-se outras inovações, como o “Poema-processo” e o “Poema Infinito”. Uma vez ele me falou da importância de na literatura se pensar de forma estratégica, mas talvez o melhor legado deste grande designer brasileiro e um dos maiores poetas do continente, tenha sido essa lição de mergulhar profundamente nas palavras e imagens, mas sem esquecer do campo teórico. Quando crio um poema visual, minha imaginação está menos para um voo que para um ovo. Isto porque poema recém criado é embrião, semente, ovo, no máximo um rebento, recém-nascido quando publicado. Não sabemos se vai voar de fato. Aliás, não vejo a menor importância em publicar um poema ou expor um poema visual. Acredito é que se há ali alguma relevância, as pessoas é que espontaneamente farão o trabalho voar.

Tchello d’Barros (E) recebe a visita de Waldimir Dias-Pino (D) em seu painel “Alfabeto Criptográfico” na mostra brasileira de arte contemporânea  Ponto Transição, da Funarte em 201 no. Rio de Janeiro.



A.G.: Uma outra atividade presente em sua produção estética, são projetos gráficos para livros, principalmente capas. Até onde o seu conceito de poema visual está presente nesta criação?

 T. d’B.: Lembro que alguns de meus primeiros livros publicados eram tão feios e comuns que eu tinha vontade de rasgar ou tacar fogo. Aí, para consertar em futuras edições, fiz uma série de cursos de tipografia, diagramação, produção editorial etc e acabei depois me tornando editor, produzindo jornais culturais, revistas, livros e sites. O senso estético desenvolvido em várias oficinas de arte e estudos de computação gráfica resultaram em projetos gráficos instigantes e mesmo estando hoje mais dedicado ao Audiovisual, vivem me pedindo para criar capas de livros. Se o conteúdo é bom, desenvolvo uma identidade visual para o projeto do livro, utilizando na criação da capa alguns elementos presentes em minha produção em Poesia Visual. As pessoas até já esperam isso, geralmente, são os elementos identitários do estilo do artista. Quando topo essas demandas, procuro criar um conceito que dialogue num nível mais profundo com a obra textual em questão. Temos obtido resultados estéticos bem originais. E assim seguimos em frente, com criações interagindo com a obra de outros poetas, e trilhando a senda da arte, espalhando o vírus da poesia pelo mundo.    

Alguns livros c/ textos de Tchello d’Barros


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Tchello d'Barros é escritor e artista visual. Publicou 7 livros e possui crônicas, contos, ensaios e poemas publicados em mais de 60 coletâneas, antologias e didáticos. Suas criações visuais já participaram de mais de 150 exposições no Brasil e exterior. Dedica-se a projetos audiovisuais e à itinerância internacional de seu projeto multimídia de Poesia Visual intitulado “Convergências”. Catarinense de nascimento, cidadão do mundo por sandice e carioca por generosidade do destino.


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