Já disse várias vezes que não acredito em acaso. Mas por acaso, será que foi? O primeiro contato com Ovídio Poli Junior veio em função do XXI FestCampos de Poesia Falada, em 29019, sua poesia Alma Cigana esteve entre as finalistas interpretada pela atriz e minha grande amiga Thereza Cristina Cruz. A partir daí temos travado uma interlocução constante pelo zap, e temos um encontro prometido, que poderá acontecer em Campos dos Goytacazes ou em Paraty, ou quem sabe até no Rio de Janeiro na próxima Balbúrdia Poética.
Ovídio Poli Junior - é graduado em Filosofia (USP) e doutor em Literatura Brasileira (USP). Foi um dos finalistas do Prêmio Guimarães Rosa/RFI (Paris) e teve destaque em concursos e prêmios literários brasileiros. Foi curador da programação literária da Off Flip em Paraty durante dez anos e é editor do Selo Off Flip. Publicou vários livros, entre os quais a narrativa satírica O caso do cavalo probo, o livro de contos Sobre homens e bestas e o infantojuvenil A rebelião dos peixes. Escreveu resenhas para o Jornal Rascunho e integra o Conselho Municipal de Política Cultural de Paraty no segmento ligado ao livro, leitura, literatura e bibliotecas.
Artur Gomes - Como se processa o seu estado de poesia?
Ovídio Poli Junior - Escrevi poesia aos 16 anos e nunca mais me aventurei nesse terreno durante muito tempo. Somente há dois anos me arrisquei, estimulado por um prêmio literário do Ministério da Cultura (hoje extinto) em alusão aos 200 anos da independência do Brasil.
Tinha pouco tempo: comprei papel especial (casca de ovo), caneta especial (escrita fina com tinta nanquim) e saí pela cidade com uma pasta na mão. Escrevi um livro com 80 poemas em uma semana e tirei o primeiro lugar. O livro foi escrito em um estado de encantamento que nunca vivenciei e é ambientado em Lisboa, Salvador, Vila Rica (Ouro Preto), Moçambique, Paraty e Rio de Janeiro.
Eu andava pela cidade e a poesia estava impregnada em tudo: nas pedras, no casario colonial, nos cavalos com os cascos escalavrados, nos velhos canhões de cobre, nas montanhas, no antigo forte, no mar e nos engenhos que envolvem Paraty, por onde passou quase todo o ouro enviado a Portugal.
Artur Gomes - Seu poema preferido?
Ovídio Poli Junior - O navio negreiro, de Castro Alves. Ainda não li um poema que o supere na eloquência, na beleza da forma e na denúncia da escravidão.
Artur Gomes - Qual o seu poeta de cabeceira?
Ovídio Poli Junior - Li bastante Fernando Pessoa quando era mais jovem, mas fui poucas vezes para a cama com ele (risos). Gosto também de Ferreira Gullar, Cecília Meireles, Drummond, Quintana.
O Brasil tem grandes poetas e entre eles aprecio muito Caetano Veloso (pela temática, pelo repertório, pela poética e pelo irreverente e refinado tratamento que dá à linguagem, que parece sempre viva em suas canções).
Artur Gomes - Em seu instante de criação existe alguma pedra de toque, algo que o impulsione para escrever?
Ovídio Poli Junior - Quando escrevo prosa (sobretudo contos) parto de uma imagem, de uma ideia, de algo que me lembro ou me incomoda. Quando escrevo poesia, parto da palavra em estado bruto - daí é ter papel especial e caneta especial, o resto se resolve: escrevo sempre à mão em um papel de seda comum, depois transcrevo para o papel casca de ovo e somente depois vou para o computador.
Acho uma heresia escrever poesia direto no computador, preciso desse ritual de sentir o atrito da caneta com o papel, isso me impulsiona de forma inconsciente talvez, me sinto como um garoto brincando.
Artur Gomes - Livro que considera definitivo em sua obra?
Ovídio Poli Junior - Tenho dois livros que considero definitivos: O caso do cavalo probo (narrativa satírica) e Na varanda: artigos e ensaios de crítica literária. Nos outros livros sempre estou a mover alguma coisa (já passei anos sem publicar um conto por causa de um pronome reflexivo, besta que sou).
Artur Gomes - Além da poesia em verso, já exercitou ou exercita outra forma de linguagem com poesia?
Ovídio Poli Junior - Ando trabalhando bastante a disposição visual do poema, mas a estrutura original ainda é o verso. Prosa poética escrevo pouco: a minha prosa carrega uma poética nas entrelinhas. Talvez comece a experimentar de várias maneiras a forma, como começo a fazer com a prosa: gosto de explorar sonoridades, ritmos, aliterações, rimas, jogos vocabulares, paralelismos, acasos, o que vier.
Artur Gomes - Qual poema escreveu quando teve uma pedra no meio do caminho?
Ovídio Poli Junior - Poemas sentimentais de adolescente, escrevi vários. E um poema-protesto escrito no dia da posse do Bolsonaro: ainda estamos com esse osso de frango atravessado na garganta.
Artur Gomes - Revisitando Quintana: você acha que depois dessa crise virótica pandêmica, quem passará e quem passarinho?
Ovídio Poli Junior - Nós passaremos e eles passarão – o mundo é dos pósteros. E o vírus vai de algum modo despertar o que temos de bom para podermos sobreviver com dignidade sobre a face da Terra.
Artur Gomes - Escrevendo sobre o livro Pátria A(r)mada, o poeta e jornalista Ademir Assunção afirma que cada poeta tem a sua tribo, de onde ele traz as suas referências. Você de onde vem, qual é a sua tribo?
Ovídio Poli Junior - Nasci em Campinas (SP), apanhava toda semana de minha mãe (nada que me aleijasse), era gago e tímido. Sou apenas um caipira que fez graduação em Filosofia e doutorado em literatura brasileira na USP (mas que deveria estudar Antropologia e viver entre os índios). Nunca me senti à vontade em lugar nenhum, pra dizer a verdade. Minha tribo são os livros: nasci entre os livros e espero morrer entre eles).
Artur Gomes - Nos dias atuais o que é ser um poeta, militante de poesia?
Ovídio Poli Junior - Ser poeta é algo raro: é sofrer com a realidade e transpor essa dor para o papel. É ser feliz e transbordar esse sentimento sem encontrar palavras. É perceber constantemente a dimensão sublime e transitória da vida e querer revelar isso aos demais. É escrever e disseminar versos em todos os cantos possíveis: na rua, nos muros, no papel de pão, nas escolas, nas cadeias, nos saraus, nos portais da internet e redes virtuais.
A poesia está em todos os lugares: em todas as coisas e em todos nós. Só precisamos cultivá-la e perceber que está à nossa frente, como se fosse uma miragem ou um oásis no deserto. O importante é caminhar com dignidade, mesmo que nos tirem o cantil.
Artur Gomes - Que pergunta não fiz que você gostaria de responder?
Ovídio Poli Junior - Gostei muito das perguntas e adorei a conversa: saiu do banal, enveredou pelos meandros da vida e das letras. Os entrevistadores estão de parabéns! Melhor que isso só mesmo em um boteco, num sábado à tarde. E por que não? Em Campos de Goytacazes ou em Paraty, fica desde já combinado. Com essa pandemia, descobri algo que para mim coloca fim à polêmica: o melhor lugar de fala ainda é o boteco.
Um grande abraço!
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