sábado, 23 de maio de 2020

Maria Mendes - EntreVistas



Sabemos que dentro de uma ostra , mora uma pérola, escondidinha lá dentro, um tesouro, mas só podemos conhecê-la,  por desejo ou curiosidade, se abrirmos a ostra, assim mesmo só temos ali uma imagem, uma pedra. Agora, será preciso que tenhamos uma imensa vontade de conhecer o que mora ali dentro, não mais da ostra, mas da pedra que acabamos de tirar da sua moradia.


Maria Mendes, me leva a um caldeirão de metáforas,  nessa pérola, que mora escondidinha, também, lá pelas bandas das minas geraes de Montes Claros, (onde também se esconde Aroldo Pereira). Maria me vem como Água Viva,  água de fogo, numa turbulência de imagens,  que acabam de me deixar emocionado com a leitura, não apenas dos fragmentos do seu livro: A Casa da Ressurreição, mas também, pelo seu relato de vida. Me senti ali dentro, fazendo uma viagem de volta, um vôo em direção a minha tapera , a fazenda cacomanga -  matagal onde nasci.

Não faz mais de um mês, que entramos em contato pelo face, e devo mais este presente ao Lúcio Autran, porque foi através de um comentário dela, no posta sobre a entrevista que fiz dele, que a encontrei. 


Maria Mendes  - Nasci em 26 de dezembro de 1971, num sítio dos meus pais. Parte da Fazenda do meu avô. Naquela época a maioria das pessoas desta região ainda criavam seus filhos na roça até que completassem  idade de ir para a escola. Ainda fazíamos parte da grande família do senhor Major Alexandre Rodrigues, meu pai, Neto, e minha mãe, bisneta. Naquela época era comum casarem primos com primos.

Meu pai faleceu cinco meses após o meu nascimento. Eu era caçula numa família de sete irmãos. Meu pai era lavrador,  plantador de algodão. Desde o seu falecimento minha mãe passou a tomar conta de tudo sozinha, mas não conseguiu evitar a venda das terras para pagar as carteiras ao Banco. Ficamos com apenas um pequeno sítio de onde minha mãe tirava a nossa sobrevivência.

Aos dezoito anos quando terminei o ensino médio tive que interromper os meus estudos. Início da década de 1990, tudo era muito difícil.  Não tínhamos como pagar cursinho pré-vestibular , e o acesso a uma universidade sem essa preparação era para mim, quase impossível,  já que tinha estudado em escola pública e com poucos recursos, para alcançar o curso que desejava. Era necessário uma preparação mais intensa.

Três dos meus irmãos estavam morando em São Paulo, assim começou também minhas intermináveis idas e voltas de Minas para São Paulo. Não me adaptei na terra da garoa, nem consegui tempo para estudar como eu queria. Assim, no ano 2000, eu retornei definitivamente para Mirabela;  um dos meus irmãos também havia  retornado  e era proprietário de uma lanchonete e restaurante. Fui trabalhar com ele, e nas horas vagas eu apanhava os pacotes de cigarro, arrumava as caixinhas no mostrador. Então abria o verso branco dos pacotes sobre o balcão, e escrevia, sem imaginar que um dia, aqueles escritos se tornariam livro. 

Os escritos acumularam e eu resolvi passá-los  a limpo em um caderno. Ao passar meus escritos a limpo, ficava encantada com eles. Mas era um encanto meu, como se não tivesse necessidade alguma que alguém os lessem. Porém, não sabia onde aquela história ia ter fim,  por isso, enviei meu escritos ao professor Dr em literatura, Osmar Oliva, professor na Universidade estadual de Montes. Este ficou muito surpreso ao encontrar semelhanças da escritura de Clarice Lispector em meus escritos, assim me convidou para ir à sua  casa, conversamos muito, ele me emprestou o livro Água Viva. E como ele próprio relata em seu prefacio: não encontrou nenhuma cópia de Clarice.  Eu, porém, ao reencontrar a nova Clarice em Água Viva, ainda que não me lembrasse que ela teria passado pela minha infância, fiquei deslumbrada com a comparação.

Sou eternamente grata ao professor Osmar Oliva por ter visto em meus escritos o belo literário.  Assim, graças ao entusiasmo e ao apoio desse ilustre amigo, voltei a estudar em casa, e também cursei um pre- vestibular gratuito da prefeitura de Montes Claros por um período de quatro meses. Logo após, tentei vestibular e fui aprovada pela Universidade Estadual de Montes Claros, no curso de letras português. Terminava um longo período de 15 anos longe dos estudos. Antes disso, porém, fui aprovada em concurso para professora  das séries iniciais, pelo município de Montes Claros. E lá estou até hoje.

Artur Gomes - Como se processa o seu estado de poesia?

Maria Mendes - Escrever, para mim, é uma necessidade essencial; e essa ação acontece muitas vezes por intermédio de uma imagem. As flores do meu quintal falam, o Riachão fala, a serra  fala, as montanhas falam, a estrada fala, os animais falam. Nem sempre a linguagem das rosas, mas muitas vezes a linguagem dos cactos que sobrevivem entre as pedras e resistem oferecendo uma belíssima flor vermelha para ironizar uma vida seca. É  isso que exprime o fluir da minha escrita __ como não falar por eles? Ou como não escrever o que eles falam por mim? A  minha fluência  verbal funda-se em observação e silêncio; assim se processa.

Quando escrevo não tenho medo da gramática com seu esqueleto cheio de regras duras e ossificadas, nem da sua caveira com olhar escuro e sombrio; nem do riso escancarado, irônico, e desafiador. Aceito lutar com ela e lhe atiro palavras. Não palavras de pedras, mas palavras de barro, palavras de lama, palavras de areia colenta... Meu objetivo não é destruí-la, mas recompô-la, apesar de seu aparente rancor.  Assim vou preenchendo os espaços mais complexos desse esqueleto que pouco a pouco vai ganhando um corpo bonito, com formas sinuosas, curvas perigosas que destaco e realço com a mais cara das linguagens que posso alcançar. A matéria encaixa-se pouco a pouco nas lacunas frias da Língua esquelética e formal, convertendo-se em oração nos núcleos mais complexos do seu corpo; a caveira ganha um rosto, minha palavra é  luz que inunda seus olhos, a arcada dentária, agora, sorri.

Quando escrevo não tenho medo da gramática. Confesso: tenho medo das vírgulas.

Escrever me desintoxica.



Artur Gomes - Seu poema preferido? Próprio. Ou de outro poeta de sua admiração.

Maria Mendes - Bom, não é bem um poema. É  uma narrativa poética de minha própria autoria. O primeiro que escrevi: A casa da ressurreição. Inspiração que revelou o meu ser poético e que resultou em livro embora na forma de uma prosa metafórica e poética. Desde criança os livros me encantam, mas não tenho preferência por nenhum poema ou livro em especial, a não ser aquele que os próprios livros ajudaram a brotar de mim, ou seja: A casa da ressurreição.

O desenho no papel das paredes lembra a nota da canção dos pássaros, ou é  própria canção dos pássaros? Parece que me encontro em cada porta, as janelas abertas para o infinito deixam entrar a luz. Depois de olhar as jangadas se perdendo ao longe, desaparecendo com o entardecer, eu virei com o meu coração apertado, como um tinteiro transbordando  e vou -me sentar afundando as mãos numa argila de letras; e como amo este ofício, aqui Deus parece acolher-me...

O que está escrito nas folhas? As folhas que se abrem como algas, como palmas, como estrelas; as folhas como multidões de mãos postas em oração, de mãos expostas para o céu; eu sou como a mamoneira de frente à minha janela. De volta a essa paz, inacreditável é  esse sonho, o amor é como sempre um mistério; trago em um cofre este segredo que se vai revelando pouco a pouco.

Já abri as portas e janelas, deixei entrar o vento,  já revi as flores, jasmins e trepadeiras, admirei a beleza dos arbustos ornamentais, as árvores que cresceram sem medida e essa vontade de ficar é tão grande.

(...)

A silhueta, nessa página de luz, desenha ondas sonoras; a fonética está tatuada, os monossílabos trazem o eco da melodia de uma harpa. A palavra vibra numa eclosão de som e significado. A enorme janela está despida de cortinas, revelando o interior desta  casa...

Será como plena luz do meio dia em minha vida, a luz que entra numa gruta, iluminando-a profundamente e vaza pelas gretas dando um espetáculo de frestas, é como se as paredes fossem matizadas de diamantes e, a noite, o céu viesse abaixo com seus astros. Uma porta de cristal se abre por meio dessa  comunicação e um arco-íris  de luz se faz. Como expressar tanta maravilha?

Artur Gomes - Qual o seu poeta de cabeceira?

Maria Mendes - Não tenho. Gosto de muitos como Drumonnd, Vinicius de Moraes, Cora Coralina, Cecília Meirelles, Fernando Pessoa, Mário Quintana, Manoel de Barros,  Manoel Bandeira, Osmar Oliva, e outros tantos que eu poderia continuar citando aqui, mas nenhum é ainda meu poeta de cabeceira.

Conheci recentemente Lúcio Autran e estou encantada com sua poesia, com a sensibilidade e embora não tenha ainda nenhum livro dele, já faz parte do grupo dos que admiro.

Artur Gomes - Em seu instante de criação existe alguma pedra de toque, algo que o impulsione para escrever?

Maria Mendes - O ato de escrever,  para mim, é quase uma questão de “sobrevivência”.  Já que isso me proporciona um indizível bem estar. Eu chamaria de ENTUSIASMO  essa “pedra de toque" algo a que me proponho fazer, e nisso mergulho inteira como se estivesse construindo um castelo, ou fazendo uma viagem pelo mar num belo navio, ou como se estivesse a apreciar a árvore florida que com tanto amor cultivei,  e esta atraísse os pássaros, que fossem os comuns bem-te-vis, eu já estaria arrebatada. Sim, eu preciso estar entusiasmada para escrever, ainda que seja com a própria palavra como me acontece agora enquanto respondo esta entrevista.

Artur Gomes - Livro que considera definitivo em sua obra?

Maria Mendes - Meu histórico de publicação ainda está apenas começando. Mas eu já considero “A casa da ressurreição” como definitivo porque nesta obra eu faço uma casa que a imaginação do leitor pode recriar ou imaginar, mas que no entanto já é uma casa eterna.

Artur Gomes - Além da poesia em verso já exercitou ou exercita outra forma de linguagem com poesia?

Maria Mendes - Eu  gosto das imagens. Então eu tenho tentado fotografar poeticamente. E os meus textos em prosa,muitos deles são poéticos. Tenho um conto que rima do início ao fim. Está em um livro que ainda não foi publicado: O Rio que corre entre pedras. O conto poético é  a história dos meus gatos,onde  curiosamente, de forma não intencional as rimas fluíram até o final do conto.

 Artur Gomes - Qual poema escreveu quando teve uma pedra no meio do caminho?

Maria Mendes - Bom, a função da escrita em minha vida é  remover as pedras do meio do meu caminho. Então o primeiro texto literário que não me lembro qual, foi para remover pedra, e assim, quanto mais pedras, mais escritos.

Artur Gomes - Revisitando Quintana: você acha que depois dessa crise virótica pandêmica, quem passará e quem passarinho?

Maria Mendes - Esta é uma pergunta difícil. Mas, eu, com certeza, passarinho. Ao menos é  o que desejo.

Artur Gomes - Escrevendo sobre o livro Pátria A(r)mada, o poeta e jornalista Ademir Assunção, afirma que cada poeta tem a sua tribo, de onde ele traz as suas referências. Você de onde vem, qual é a sua tribo?

Maria Mendes - Bom, eu venho de tempos distantes, tempo da minha infância. Histórias que ouvi minha mãe contar que o meu avô contou para ela,e que minha bisa contou para o meu avô, por aí afora. Tempos dos primeiros anos da escola em que li todos os livros infantis de Clarice Lispector, e sem saber, injetei no sangue cristalino que corre nas veias de minha literatura o meu deslumbramento por essa estrela que ficou esquecida por um longo tempo em minha  vida depois que me tornei adulta, e que renasceu em meus escritos no verso de papéis brancos de pacotes de cigarros nos momentos vagos em um  balcão de uma  lanchonete. Foi assim que nasceu A Casa da Ressurreição. No que se refere às tribos, me considero peregrina, e todos estão sob minha observação.

Artur Gomes - Nos dias atuais o que é ser um poeta, militante de poesia?

Maria Mendes - É  não ter medo de ser louco. E fazer desses momentos de “loucura" a melhor hora da vida da gente.

Artur Gomes - Que pergunta não fiz que você gostaria de responder?

Maria Mendes - Bom,  para mim você fez todas as perguntas. Inclusive a essencial que está subentendida nas entrelinhas de minhas respostas.

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