O contato com o André
Caramuru Albert, para esta EntreVista, me veio através do Lúcio Autran, que o citou como um dos
poetas contemporâneos de sua admiração. Aliás como bem frisou Linaldo Guedes,
conversa puxa conversa. As coisas boas muitas vezes nos passam despercebidas no
face, dado ao turbilhão de inutilidades que despejam nessa rede. De uma certa
forma, esse tempo em que estamos con-finados, como bem me disse Igor Fagundes, tem nos permitido um
olhar mais calmo e profundo para quem realmente tem muito a nos dizer. E hoje
mais uma vez tenho certeza de re-afirmar, (pois nunca duvidei), o face está
repleto de pérolas, de jóias raras, só precisamos mesmo é filtrar e aperfeiçoar a nossa rede, para que
na varanda possamos desfrutar de leituras como essa que segue.
André
Caramuru Aubert - nasceu
em São Paulo em 1961. É bacharel e mestre em História pela USP. Já colaborou
com publicações como os jornais O Estado de S. Paulo e Jornal do
Brasil, e revistas como Trip e InfoExame. Desde janeiro de
2014, seleciona e traduz mensalmente, para o jornal Rascunho, poemas de
algum poeta estrangeiro, muitos dos quais inéditos no Brasil, em número que já
está chegando a oitenta.
Publicou cinco romances (Cemitérios, A Vida nas
Montanhas, A cultura dos Sambaquis, Só uma estranha luz como
pensamento e Poesia Chinesa) e três volumes de poemas (outubro/dezembro,
As cores refletidas nas lentes dos seus óculos escuros e Se/o que eu
vi). André ainda tem um romance inédito aguardando publicação (Estevão)
enquanto trabalha em outro (Pés Negros), além de preparar, para publicar
em 2021, mais um volume de poemas.
Entre os projetos em que se envolveu, destacaria, entre os que o deixaram mais feliz: a participação no resgate das obras do romancista José Geraldo Vieira, para as quais escreveu uma série de prefácios; o trabalho de tradução, introdução e notas de o Diário de um Desesperado, de Friedrich Reck-Malleczewen o relato de um intelectual anti-nazista na Alemanha de Hitler; a tradução do livro de contos Areias Movediças, de Octavio Paz. A coordenação, com escrita de prefácios,da edição facsimilar de cinco volumes de quadrinhos de seu antepassado Rodolphe Töpffer, o inventor das Histórias em Quadrinhos, sendo o mais antigo deles o Monsieur Jabot, de 1833.
Artur
Gomes - Como se processa o seu estado de poesia?
André Caramuru Aubert– Eu gosto muito daquela história do Ferreira
Gullar, que dizia que os poemas dele nasciam sempre de um susto. É mais ou
menos isso, no sentido de que não dá para forçar um poema, ele tem que vir,
precisa se impor. Posso passar um mês sem escrever um poema, posso escrever
dois no mesmo dia. Minha inspiração (meu susto) pode vir de muitos lugares, mas
o mais comum é que nasça da própria leitura de poemas. Estou lendo, começo a viajar
dentro do poema, começo a rever cenas de minha vida, ou de outros poemas, ou de
filmes, ou de romances, e um poema começa a se desenhar na minha cabeça. Mas
acontece também de as ideias virem enquanto eu caminho, coisa que faço bem
cedo, todos os dias, ou mesmo em sonhos.
Mas o que vem à mente não é, de imediato, um poema. Nunca. O
que aparece é uma ideia, uma sensação, uma lembrança. Aí eu tento anotar alguma
coisa, e mais tarde, ou num outro dia, volto àquilo, e começo a dar forma.
Jamais uma emoção se transforma, sem filtros, num poema. O sentimento original
precisa ser mediado pela estrutura, pela estética, pelo trabalho rigoroso com a
forma. Como disse Flaubert, boas intenções não bastam para fazer arte.
No fim, o poema (ou a tela, a escultura, o romance...) precisa ficar universal. Não importa se o ponto de partida é a lembrança de algo que senti, há quarenta anos, na varanda da casa de minha avó. As pessoas não precisam me conhecer, não precisam saber quem foi minha avó. Aquilo, para virar um poema, precisa se universalizar, precisa ganhar vida própria, independente do autor.
Artur
Gomes - Seu poema preferido? Próprio. Ou de outro poeta de sua
admiração.
André Caramuru Aubert – Evito reler o que já publiquei. Nem poemas, nem
romances, nem mesmo artigos para a imprensa. Enquanto não está impresso, volto
e volto ao texto, num interminável processo de reescrita. Assim, publicar é, de
certa forma, me libertar de um texto, é poder parar de reescrevê-lo. No máximo,
em esforço de divulgação, reproduzo um ou outro poema em algum lugar. Assim,
como você me pediu, pego, meio ao acaso, “a
essência das coisas”, o poema que
abre meu penúltimo livro:
“a
essência das coisas, de tudo,
sentida, sem que uma única frase
fosse pronunciada, a infinita tristeza,
compartilhada, sem que qualquer som
fosse emitido. no espaço aberto, no
infinito do tempo, poeira, apenas. e
a intensidade dos seus olhos, do seu
olhar.”
sentida, sem que uma única frase
fosse pronunciada, a infinita tristeza,
compartilhada, sem que qualquer som
fosse emitido. no espaço aberto, no
infinito do tempo, poeira, apenas. e
a intensidade dos seus olhos, do seu
olhar.”
Escolher um poema de algum poeta que admire é complicado,
porque são muitos, muitos e muitos. Mas me lembrei de um aqui, os versos
iniciais e finais de um poema de Vladimir Nabokov, um grande poeta que, muito
mais conhecido por seus romances, é pouco lembrado em sua poesia.
“I have no
need, for my nocturnal travels,
of ships, I have no need of trains.
The moon’s above the checkerboard-like garden.
The window’s open. I am set.
of ships, I have no need of trains.
The moon’s above the checkerboard-like garden.
The window’s open. I am set.
(...)
Now I approach an unfamiliar building,
the place alone I recognize…
There, in the darkened rooms, everything’s altered,
and everything upsets my shade.
There, children sleep. Above the pillow’s corner
I stoop, and they begin to dream
about the toys that, long ago, I played with,
about my ships, about my trains.
I stoop, and they begin to dream
about the toys that, long ago, I played with,
about my ships, about my trains.
%
“Eu não preciso, para minhas viagens noturnas,
de navios, não preciso de trens.
A lua ilumina o jardim com-jeito-de-tabuleiro.
A janela está aberta. Estou pronto.
(...)
Agora me aproximo de uma construção estranha,
o lugar, em si, eu reconheço…
Lá, nos quartos escurecidos, tudo está mudado,
e tudo irrita a minha sombra.
Lá, crianças dormem. Sobre o canto
das almofadas
eu me inclino, e elas começam a sonhar
com brinquedos com os quais, há muito tempo, eu brincava,
com meus navios, com meus trens.”
eu me inclino, e elas começam a sonhar
com brinquedos com os quais, há muito tempo, eu brincava,
com meus navios, com meus trens.”
Gosto muito deste poema porque ele dá vazão, de uma forma ao mesmo tempo lírica e contida, à sensação de exílio, de alguém que, embora tenha alcançado, na vida adulta, todo o sucesso (inclusive material) que um escritor pode almejar, jamais pôde voltar à casa paterna, na Rússia, ao aconchego daquele lar primordial, ao colo da mãe, aos brinquedos, aos almoços nos jardins em domingos ensolarados de verão... que, no caso particular de Nabokov, por conta da Revolução Russa, que lhe impôs um exílio absoluto e definitivo, implicava mais do que as perdas que todos nós, quando adultos, sentem com relação ao que ficou para trás na infância.
Artur
Gomes - Qual o seu poeta de cabeceira?
André Caramuru Aubert – Naturalmente há mais de um. Não existem, para
mim, os “maiores poetas”; existem
aqueles que, por um motivo ou por outro, incluindo a fase da vida em que os “conheci”, me marcaram mais
decisivamente. E também há, claro, as diferentes fases da vida, em que “preferimos” uns em detrimento de
outros.
Tentando fazer um balanço de longo prazo, contudo, eu
destacaria, entre os brasileiros que ajudaram a me formar, Mário de Andrade,
Manuel Bandeira e Ruy Espinheira Filho. Hoje tenho a sorte de ser amigo de Ruy,
mas admiro a poesia dele há anos, até mesmo usei um de seus poemas, “A chuva, uma história,” em um romance,
quando nem sonhava em conhecê-lo pessoalmente.
Dentre os, por assim dizer, mais jovens, tenho lido bastante
dois poetas que tive a alegria de prefaciar, Alberto Bresciani e Lúcio Autran.
Alberto escreve uma poesia intrigante, que com frequência dialoga com o
absurdo, com o surreal. E a produção de Lúcio consegue a proeza de ser, ao
mesmo tempo, lírica e áspera. É uma poesia diante da qual o leitor às vezes não
sabe se sente consolado ou desanimado.
Em língua espanhola, descobrir a poesia de Roberto Bolaño,
de quem já gostava da prosa, foi um susto. Veja este poema, que eu adoraria ter
escrito (em tradução que fiz para o jornal Rascunho):
“Esperas que desapareça a angústia
Enquanto cai a chuva sobre a desconhecida estrada
Onde te encontras
Enquanto cai a chuva sobre a desconhecida estrada
Onde te encontras
Chuva: apenas espero
Que desapareça a angústia
Estou dando tudo de mim”
Que desapareça a angústia
Estou dando tudo de mim”
Entre os de língua alemã, o suíço Robert Walser, também mais conhecido pela prosa, é outro de tirar o fôlego. Veja este poema, chamado “Unter Grauem Himmel/Sob um cinzento céu”, em tradução minha:
“Sob um cinzento céu
sob um pesado céu
há uma casinha branca.
Dentro da casinha branca,
dentro de sua pequena sala,
eu estou sentado, triste.
sob um pesado céu
há uma casinha branca.
Dentro da casinha branca,
dentro de sua pequena sala,
eu estou sentado, triste.
Através das árvores desfolhadas,
através das árvores molhadas,
meu olho procura, vê,
e descobre pobres campinas.
Em nome destas campinas
Eu choro amargamente.”
através das árvores molhadas,
meu olho procura, vê,
e descobre pobres campinas.
Em nome destas campinas
Eu choro amargamente.”
Pensando nos norte-americanos, destacaria Edgar Allan Poe
(minha filha se chama Anna por causa do poema “Annabel Lee”), William Carlos Williams, Wallace Stevens, Denise
Levertov, W.S. Merwin e finalmente um gigante, relativamente pouco conhecido no
Brasil, chamado Donald Hall. Veja este poema dele, “Chuva”, em tradução minha, que fala da mulher dele, a também poeta
(aliás, excelente) Jane Kenyon, que estava morrendo de câncer:
“Enrolada no sofá
em posição fetal, Jane chorou dia
e noite, noite e dia.
Eu não podia encostar nela; eu não podia fazer nada.
A melancolia desabou
como a chuva sobre a Irlanda, por semanas
sem parar.
Eu nunca
fiz pouco de suas tristezas ou brinquei com
seus medos e seu sofrimento.
Quão admirável eu me achava.”
Finalmente, há os chineses clássicos, mestres absolutos, um
manancial infinito de técnica, beleza e inspiração. Tu Fu, Li Po, Wang Wei, Li
Ho... Vejam este, “Campina dos Cervos”,
de Wang Wei, também em tradução minha:
“Montanhas vazias, ninguém à vista,
apenas o eco de uma voz ao longe;
o sol da tarde penetra a mata fechada
fazendo brilhar o verde musgo.”
apenas o eco de uma voz ao longe;
o sol da tarde penetra a mata fechada
fazendo brilhar o verde musgo.”
Enfim, eu poderia passar dias falando dos meus poetas de
cabeceira, mas vamos em frente...
Artur
Gomes - Em seu instante de criação existe alguma pedra de toque,
algo que o impulsione para escrever?
André Caramuru Aubert - – Como disse antes, o que mais me inspira a
escrever é ler. Borges, um dos autores que me formou, que li muito na
adolescência, dizia que ler é mais importante do que escrever, e eu sempre
levei isso a sério. Se pudesse, só leria. Mas, em algum momento, a necessidade
de escrever se impõe. E, aí, faço o que posso...
De qualquer modo, o que me faz escrever é ler. Até porque, como qualquer outra forma de arte, a literatura (tanto faz se prosa ou poesia) é diálogo. Vejo a poesia, especialmente, como mais próxima da pintura do que do romance. E pensemos na pintura. Caberia, hoje, você comprar um pincel, uma paleta de tintas, uma tela, e sair pintando, do nada? Sem ter olhado para o que tantos artistas, de renascentistas a modernos, passando por impressionistas e surrealistas, já pintaram? Há quem diga que sim, mas eu discordo. Algum diálogo precisa haver, alguma conversa. Ninguém mais, especialmente em nossos tempos pós-pós-modernos, pode inventar a roda.
Artur
Gomes - Livro que considera definitivo em sua obra?
André Caramuru
Aubert – Levo meu trabalho de
escrever muito a sério. Escrevo, reescrevo, apago, reviso, posso passar dez
anos em um romance (é o caso de mais de um livro). Mas não tenho como avaliar
minha obra. Ela será levada a sério, ou não, pelos leitores. Não cabe a mim
dizer se já fiz ou não algo definitivo. E cada livro reflete uma época, o que
eu pude realizar naquele determinado momento da minha vida. José Geraldo
Vieira, um dos romancistas de que mais gosto, reescrevia pesadamente seus
livros a cada reedição. Em A Ladeira
da Memória, seu livro de maior sucesso (50.000 exemplares na primeira
tiragem), ele até mesmo alterou radicalmente o desfecho quando preparou a
segunda edição.
Eu jamais faria isso.
Como disse antes, o que sei é que, uma vez publicado, procuro não reler o que
escrevi. Nem poemas, nem romances, nem mesmo colunas ou artigos para a
imprensa. Enquanto a obra não foi publicada, reviso incessantemente. Uma vez
publicada, estou livre dela, posso pensar nas próximas. Por isso, é
reconfortante a sensação de que o que foi publicado não é mais meu, que passou
a pertencer ao mundo, aos leitores.
Respondendo, enfim, à sua pergunta: todos os meus livros
são, para mim, depois de publicados, definitivos. Mas somente os leitores é que
dirão se os livros são definitivos para eles. Se merecerão ser levados para
casa, lidos e, depois, guardados com afeto na estante.
Artur
Gomes - Além da poesia em verso já exercitou ou exercita outra
forma de linguagem com poesia?
André Caramuru Aubert – Escrevo também poema em prosa, e não considero
meus romances como apartados da poesia. Meus romances, além do fato de serem
recheados de poemas e de citações de poemas (“Poesia Chinesa” já tem
isso desde o título), não pretendem ser apenas histórias contadas. A
preocupação com a forma, com a estrutura, com o lírico, é enorme. Para mim,
meus romances e poemas são a mesma coisa, são maneiras diferentes de dizer a
mesma coisa.Houve um período pós-adolescente em que senti uma certa atração por
poesia concreta, por esse tipo de poema que fica no meio do caminho entre o
texto e a imagem, poesia que dá para pendurar na parede. Mas isso passou. Hoje
o que me comove num poema é o texto, é o que está escrito.
Artur
Gomes - Qual poema escreveu quando teve uma pedra no meio do
caminho?
André Caramuru Aubert – Pedras no caminho são parte da vida e,
consequentemente, parte da poesia. A arte, até mesmo os contos de fada, se faz
ao explorar conflitos, angústias e tensões. E isso tanto na forma quanto no conteúdo. Não
quer dizer que precisemos ir atrás disso, ou seja, não estou defendendo a
poesia engajada, muito pelo contrário.O conflito é natural, não precisa ser
perseguido.
A poesia engajada – aquela que explicitamente abraça as causas políticas e sociais do momento –, devemos reconhecer, tem um papel por vezes importante. Por exemplo, quando Picasso pinta Guernica, quando Brecht escreve o poema “Há homens que lutam um dia, e são bons”, ou Ferreira Gullar cria o “Poema Sujo”, o que há são lutas, para além da arte, nas quais os poetas e os artistas se sentem compelidos a se engajar. Muitas vezes é o momento que se impõe, seja uma guerra, um golpe de estado, denúncias da tortura, o que for. Mas, normalmente, na maior parte dos casos, quando há um engajamento explícito, a arte perde.
Por outro lado, como disse o poeta Stanley Kunitz, a poesia
é mais livre do que as outras artes (mesmo outras formas literárias), porque é
absolutamente (desculpem a expressão horrível) não como ditizável, ou seja, não
tem qualquer valor econômico. A pior aquarela tem mais valor de mercado do que
o melhor poema, pois a aquarela, pelo menos, poderá acabar enfeitando a parede
de alguma sala de espera de dentista, enquanto o poema nem para isso servirá.
Assim, vivendo completamente fora das relações de produção capitalistas, o poema já é, em e por si, revolucionário. Simplesmente por teimar em existir. O poema não precisa denunciar a opressão para ser político. Ele é político por si só, em si mesmo, e talvez com mais força quando simplesmente retrata, com lirismo e beleza, uma cena cotidiana.
Artur
Gomes - Revisitando Quintana: você acha que depois dessa crise
virótica pandêmica, quem passará e quem passarinho?
André Caramuru Aubert – Minha formação acadêmica é de historiador. Ou
seja, tenho razoáveis ferramentas para tentar compreender o passado, mas elas
não servem nem um pouco para prever o futuro. Não sei o que vai acontecer, não
tenho a menor ideia. Muita gente tem dito que o mundo sairá melhor da crise.
Não vejo, pelo menos na história, motivos que justifiquem essa ideia. O mundo
saiu melhor da Gripe Espanhola? Não. Nem melhor, nem pior. Por que seria
diferente agora? É certo que o Capitão Inominável e seus seguidores passarão.
Mas o estrago que eles deixarão é enorme, em inúmeras áreas (ecologia, cultura,
educação, direitos humanos...) chegando
agora às pilhas de cadáveres por conta do Coronavírus.
Artur
Gomes - Escrevendo sobre o livro Pátria A(r)mada, o poeta e
jornalista Ademir Assunção, afirma
que cada poeta tem a sua tribo, de onde ele traz as suas referências. Você de
onde vem, qual é a sua tribo?
André Caramuru Aubert – Não tenho tribos. Sou um franco-atirador. Desde
muito cedo eu me sinto, sempre, em qualquer situação, um outsider. Isso nem
sempre ajuda, pois as tribos tendem a proteger seus membros, mas não tem jeito,
acho que é questão de personalidade, mesmo.
Artur
Gomes - Nos dias atuais o que é ser um poeta, militante de
poesia?
André Caramuru Aubert – Ser poeta é ser teimoso, é beirar a insanidade. A
poesia não tem, no mundo de hoje, qualquer relevância. Ela é revolucionária por
teimar em existir, mas é uma existência melancólica, de pouquíssimos leitores.
Vejam, a poesia já esteve, em outras sociedades e circunstâncias, no centro da
vida. Na antiga China, escrever e conhecer poesia era condição essencial para
entrar e fazer carreira na complexa máquina burocrática do império. Houve mais
de um imperador capaz de escrever boa poesia, e até mesmo Mao Tsé-Tung foi um
poeta razoável. O Império Romano, que teve na “Eneida”, de Virgílio, seu mito criador, mesmo no fim, vivendo a
decadência de seus últimos tempos, ainda reservava um papel central para os
poetas, como contado num belo ensaio de Alan Cameron, “Wandering Poets” (Poetas errantes), que descreve a vida de poetas
profissionais, que iam, de cidade em cidade, vendendo seus serviços líricos a
quem pudesse pagar por eles.
O mundo islâmico, mostrouTim Mackintosh-Lee em “Arabs,” o erudito livro que escreveu sobre o tema, só pôde nascer porque, antes, nasceu a língua árabe, e esta nasceu com (e da) poesia. A identidade árabe surgiu poética e linguística, muito mais do que étnica. Poetas gozavam de enorme prestígio entre os árabes, e a poesia marcou o islamismo desde o berço. Um exemplo? Veja as primeiras linhas do Alcorão que, se traduzidas, mostram apenas um discurso religioso:
“Alá é supremo
Não há outro deus além de Alá
E Maomé é seu profeta.”
Não há outro deus além de Alá
E Maomé é seu profeta.”
Em árabe, porém, o ritmo e a sonoridade fazem disso um poema
irresistível, quase pedindo para ser cantado:
“Allahu akbar
La illaha illa ‘llah
Muhammadun rasulu ‘llah.”
La illaha illa ‘llah
Muhammadun rasulu ‘llah.”
Da mesma maneira, a Itália, enquanto nação, nasceu com
Dante, muito antes dos fuzis de Garibaldi; a Alemanha surgiu dos poemas de
Goethe, Hölderlin e Schelling, muito antes dos exércitos unificadores da
Prússia. Não se concebe a formação de uma identidade nacional portuguesa sem
Camões. Mesmo no Brasil, quando pensamos na importância que a Semana de 22 teve
na formação de uma autoimagem brasileira, com tantos desdobramentos nas décadas
seguintes, somos obrigados a admitir que, apesar de ter havido, naquele
momento, contribuições das artes-plásticas, da música e do romance, o papel
central coube à poesia de Mário de Andrade, de Oswald de Andrade, de Raul Bopp,
de Ronald de Carvalho, de Manuel Bandeira, isso sem falar na geração
imediatamente posterior, com destaque para Carlos Drummond de Andrade.
Os poemas de Emerson, Poe e, principalmente, Whitman,
tiveram um papel central na formação de uma identidade estadunidense apartada
da Inglaterra. Os exemplos são muitos. E o que forja a nossa sociedade, hoje?
São os grupos de whatsapp movidos a ignorantestiozinhos de churrasco, twitssemianalfabetos
e robôs disseminadores de fake news. Mussolini, um dos antepassados espirituais
de nosso Capitão Inominável, escrevia bem, falava bem, era culto. Era capaz de
se apossar de uma frase de Pompeu, de 70 a.C. e afirmar, num discurso, que “navegar é preciso, viver não é preciso.”
Sim, até para ser fascista era preciso ter cultura, como, aliás, Plínio Salgado
e Miguel Reale, aqui no Brasil, nos mostraram.
O triste Capitão Inominável, por outro lado, não consegue
sequer balbuciar uma frase com começo, meio e fim, não formula uma ideia que
seja, não sabe nada de nada e tem desprezo por quem sabe. Vivemos não só tempos
de barbárie e ignorância, mas de apologia bárbara da ignorância.
O que sobra para a poesia, nesse nosso miserável contexto? Como comparar o que vivemos no Brasil de hoje,
em que livros de poemas têm tiragens típicas de 100 exemplares, e ainda assim
encalham, com realidades como as que descrevi acima, nas quais a poesia ocupou
papeis centrais, essenciais?
Artur
Gomes - Que pergunta não fiz que você gostaria de responder?
André Caramuru
Aubert – Por quê seguir escrevendo? Por que escrever, num país de tão
poucos leitores, em que serei tão pouco lido? André André Caramuru Aubert - Confesso que não sei. Ou, por outra:
escrevo porque preciso, porque não consigo parar de fazê-lo. Não tenho como
controlar o interesse das pessoas pela leitura de um modo geral, e muito menos
pelo que escrevo. Tampouco tenho como controlar os processos de decisão das
editoras, do que, e quando, publicar. Meu último romance, Estevão, está
pronto há quase dois anos, depois de mais de dez anos de trabalho, de escritas
e reescritas. Então, é claro que eu adoraria que já estivesse publicado, mas...
o que posso fazer? Não controlo isso. Então, sigo fazendo o que me resta, que é
ler e escrever, as atividades literárias que só dependem de mim.
Fulinaíma
MultiProjetos
portalfulinaima@gmail.com
(22)99815-1268
- whatsapp
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