Faz bem pouco tempo
que adicionei o Lúcio Autran no facebook, e tenho
lido quase que diariamente suas impressões sobre esses dias em que o vírus e o verme tem nos atormentado da
medula ao osso. Conhecia pouco dele, apenas poemas do seu livro Soda Cáustica, que tinha lido no site da Editora Patuá lançado em 2019. Hoje tenho o prazer
de conhecê-lo mas um pouco, bem como
apresentá-lo aos meus queridos amigos
leitores, através desse bate papo que segue abaixo.
Lúcio Autran - nasceu em 1957, no Rio
de Janeiro. Seu livro de estreia, em 1985, “O
Piloto Anônimo” (Global Ed.) recebeu a Menção Especial do Prêmio Guararapes
da União Brasileira de Escritores. Desde então, publicou inúmeros livros de
poesia: “Um Nome (Taurus/Timbre, 1987); Anima(l),
(Ed. Seis, 1993); “Exíliosamares”
(Impressões do Brasil Editores, 1996); “Excertos
dos Exílios” (com Alexei Bueno,
Impressões do Brasil Editores, 1996); “Centro”
(Ed. Francisco Alves, 1999); “Fragmentos
do Sonho e Outros Ciclos Menores” (Ed. Bookess, 2012) e “Fragmentos de um Exílio Voluntário” (Ed. Bookess, 2016) que foi indicado como o “melhor livro de poesia do ano”, pelo
crítico Alfredo Monte, do Jornal a Tribuna (SP).
É também autor do livro de ensaios “Uma Iniciativa Pessoal?
Novos Meios, sua Democratização e os Direitos Autorais vistos da Terra de Santa
Cruz” (Ed. Bookess, 2013), tendo colaborado com o jornal "VERVE",
o Suplemento Literário do Estado de Minas, a Revista Galeria e a Sandmann Und
Haak Galery, Hannover, EUA.
Publicou, dentre outros, pela Ed. Artes e Ofícios (1991), do Museu
de Arte Moderna de São Paulo e para a Revista Poesia Sempre (1995), da Fundação Biblioteca Nacional e
para Planetaria Edizioni Universum – Testi Scelti da Renza Agnellli, Trento,
Itália (1997); além de participar de várias antologias e escrever para revistas
de poesia e literatura brasileira. Publicou também o livro "Soda Cáustica" pela Editora Patuá,
link abaixo para ler 4 poemas do livro.
Artur
Gomes - Como se processa o seu estado de poesia?
Lúcio
Autran - “Estado de Poesia”... gosto disso, não por acaso, e
coincidentemente, é parte de um verso do meu último livro, “Soda Cáustica Soda” (Editora Patuá, 2019)
“(...)
afinal aponta a leste um sol que estala / no mesmo ponto do pequeno horizonte /
do rio. Contrário a mim, não tem pressa, / sabe, como sei, um dia
anoiteceremos, / levando conosco os restos de uma tarde. // Por isso tem calma
em trazer o pesado / fardo do dia. Caio em estado de
poesia”.
Isso define bem (parte d)o meu
processo criador, e esse estado se dá como água minando da terra, até transbordar
e depois secar. Então, cabe aproveitar os períodos mananciais.
Claro que isso varia de época
para época e de livro para livro, mas há outra característica em meu poetar: sempre
gostei de trabalhar com a ideia do “tema”
na poesia, num determinado livro, isso já foi mais marcante, mas busco dar uma
unidade a cada livro, por isso, me fosse dado escolher, prefiro que meu hipotético
leitor siga a ordem da organização dos poemas, por uma questão de organicidade.
Tal forma de trabalhar, ao
contrário do que possa inicialmente parecer, não limita, pelo contrário,
liberta, dentro do conceito de Schelling,
em Filosofia da Arte, para quem a única forma de o artista chegar ao absoluto é
escravizando-se ao que o limita (a meu ver, uma vertente filosófica, com menos
beleza metafórica, da famosa frase de Tolstoi: “se
queres ser universal, comece por pintar a tua aldeia”). E assim penso que também funciona o enredo, no
romance.
Uma vez posto o “tema” sobre o qual vou trabalhar,
aquilo que será a única ponte entre mim e mim mesmo, entre mim e um suposto
leitor, no qual não penso quando escrevo, naquele momento inexistente. Esse “tema” me servirá como um guia, um
Virgílio, um “suporte”, como é a
tela para o artista plástico e a harmonia para o músico, preso a ele me sinto
livre para tratar de outras questões que o ultrapassam, tais como questões
estéticas, experimentos, e outras, sempre
tendo em vista a lição de Corneille: "A
Arte é algo, sem dúvida, com regras, mas não se sabe quais”.
De um modo geral,esse “estado de poesia” vem num lampejo,
muitas vezes de madrugada, sendo responsável por memoráveis noites de insônia.
Anoto rapidamente algumas
palavras soltas num pequeno bloco, que trago sempre comigo. Volto a ele no dia
seguinte, ou dois ou três dias depois, a depender da sedução que o poema me
provoque. Como tenho a letra muito ruim, detestável mesmo, é comum que nem eu
entenda o que ali escrevi, é quando verifico se aquela “ideia súbita”, como chamava meu pai, tinha força suficiente para
libertar-se de mim, dela mesma, e tornar-se poema. Se não entendo o que ali está
anotado, nem me lembro do que se tratava, e isso se tornar um obstáculo
intransponível, é que merecia ser esquecido, não valia o esforço de um poema.
Ultrapassada essa fase inicial,
para mim a mais dolorosa, quase desagradável, uma vez posta no papel em forma
de palavras, digitado, é hora de lapidar o poema, burilar as palavras,conviver
com elas, cortar, cortar e cortar, até que sobre apenas o essencial à forma (e
à ideia), e olhe que por vezes nada sobra, senão a lata do lixo (sou livre, até
a publicação) e deixar que algumas renitentes, que ainda se movimentem no
inconsciente, aflorem, mas já submetidas à forma que tomou o poema, enfim, a
palavra (quase) exata. E me impressiona que, tanta vez, aquilo que me parecia
sedutor, um belo verso, uma vez cristalizado no papel, na forma escrita, forma
com a qual concebo minha poesia, que boa m!
É hora de reescrever,
reescrever, reescrever, uma, duas, dez, cem vezes, até desistir. Ou abandonar.
Ou atirar ao lixo. Sou um perfeccionista neurótico, escrevo, me afasto do que
escrevi, deixo “a massa descansar” por um tempo, e volto
a um poema inúmeras vezes.
Cheguei a passar quatro anos em
torno de um só poema de três páginas. Se ficam prontos? Jamais! Apenas me canso
deles, por isso, para ceder passo a outros poemas, outros “estados de poesia”, e apenas por isso, publico, e, a partir de
então, o poema, sob forma de um livro, não
mais me pertence, mas ao hipotético leitor, que finalmente surge no horizonte,
não poucas vezes com uma interpretação completamente distinta de minha intenção
inicial, e é justo esse o leitor que me interessa: o que se torna coautor de
mim mesmo.
E esse distanciamento imutável
que a publicação me dá é o principal motivo de eu nunca reler o que publicado
está, pois, além de não mais me pertencer, me causa desconforto, tenho medo de achar
detestável, experiência tão comum quanto desagradável. O que fazer com aquilo
que está cristalizado num livro? É desesperador.
Enfim, não sei que poeta
espanhol que disse: “um poema não acaba,
é abandonado”.
Artur
Gomes - Seu poema preferido? Próprio. Ou de outro poeta de sua
admiração.
Lúcio
Autran - Meu? Sempre o que está em processo de criação, ou o
último... mas há, se tenho que destacar, dois ou três versos dos quais se me
arrependi não foi tanto, do último livro,
“Respira em azul este
sol que te cega / nega o pântano que te paralisa, seca, / que a safra da vida é única, vai, e sega” (Manhã)
ou do penúltimo,
“Fragmentos de um Exílio Voluntário”:
“O tempo
// com suas garras de rapina // deita raízes // no chão rasteiro de nossas
vidas. /// E ele mesmo as arranca" (Tempo Estilhaçado).
Se fosse citar de outro autor,
seria, pela sua difícil, quase impossível e invejável simplicidade, pois não é
qualquer um que transforma uma rega do jardim em versos tão poderosos, estes
versos de Guillén (o Jorge, o espanhol, que o cubano, Nicolás, não ouço bem):
“Sacude el agua a la hoja / Con un chorro
de rumor, / Alumbra el verde y lo moja / Dentro de un fulgor. / ¡Qué olor / A
brusca tierra inmediata! / Así me arroja y me ata / Lo tan soleadamente /
Despejado a este retiro / Fresquísimo que respiro / Con mi Adán más inocente.”
(Paraíso Regado).
“Brusca tierra imediata!” e “(...) respiro / com mi Adán más inocente” são versos que
invejo por não os ter escrito.
Artur
Gomes - Qual o seu poeta de cabeceira?
Lúcio Autran - Depende da insônia (risos). Sério, isso varia
muito com meu estado de espírito, mas, costumam ocupar lugar cativo: Guillén,
Borges, Dante, Petrarca, Goethe (só o do Fausto), Hölderlin, Bocage, Pessoa e
Baudelaire.
Se
formos falar dos brasileiros, os de minha formação poética, que moldaram minha língua:
Drummond, Bandeira, João Cabral, Tomás Antônio Gonzaga (acho Cartas Chilenas,
até pela clandestinidade, inaugural) e Murilo Mendes, à exceção da fase
metafísica, que gosto menos:
“Mamãe vestida de rendas / Tocava piano no caos. / Uma noite abriu as
asas / Cansada de tanto som, / Equilibrou-se no azul, / De tonta não mais olhou
/ Para mim, para ninguém! / Cai no álbum de retratos”. É um dos poemas mais belos da nossa língua.
Dos
meus contemporâneos é difícil falar, a proximidade embaça um pouco o juízo
crítico, mas dois destacaria, Andre Caramuru Aubert e Oswaldo Martins. Mas são
muitos, é uma geração de bons poetas brasileiros, e sei que omito
inúmeros.
Artur
Gomes - Em seu instante de criação existe alguma pedra de toque,
algo que o impulsione para escrever?
Lúcio
Autran - Não. Há, aquilo que chamei “ideia súbita”, mas que pode se dar dormindo (antigamente deixava
ao lado da cama um caderninho de notas, para anotar os sonhos, mas parei com o
hábito, um dos responsáveis, além da genética, por minha insônia crônica).
Por vezes, essa ideia aflora logo
ao acordar, quando as defesas do consciente ainda estão baixas, e costumam
liberar alguma poesia. Os demônios (“daemons”,
no sentido grego, não no judaico-cristão)
da insônia foram responsáveis por todo um capítulo do último livro.
Entretanto, em geral, a ideia
vem, mas evito escrever imediatamente, convivo, como na lição de Drummond, em “Procura da Poesia”, com eles, até que
tomem forma, e não se percam, pois não é incomum que a pressa em colocá-los antes
da hora no papel perca o poema, aborte-o, escrevo, e quando dele me distancio,
que merda!
Artur
Gomes - Livro que considera definitivo em sua obra?
Lúcio
Autran - Como acho que o tempo ainda não me sacaneou tudo que tem
para me sacanear, e espero que meu corpo morra antes de mim, pois sou minha
lucidez, nada mais, sempre o último, até perder a memória, a capacidade de
escrever, mas aí nada mais me interessará.
Artur
Gomes - Além da poesia em verso já exercitou ou exercita outra
forma de linguagem com poesia?
Lúcio
Autran - Poesia é experimento. É palavra. Quem me lê pode achar
que não experimento muito, que a palavra me vem fácil. Terrível engano, sofro
para pôr no papel, como disse acima, gosto do trabalho, de experimentar, de
recriar significados e dar novos significantes, resgatar palavras mortas,
reinventá-las, gosto desse risco.
Li, há muito anos, uma
entrevista com João Cabral, onde ele fez uma comparação inesquecível, que cito
de memória, e, por memória, reinvento: “o
povo cria a língua, os escritores a
solidificam e os gramáticos a estudam. A poesia é o laboratório da língua”. É
aqui, na poesia,que se dá a (re)invenção da língua.
Artur
Gomes - Qual poema escreveu quando teve uma pedra no meio do
caminho?
Lúcio
Autran - Pedras no meio do caminho não bastam e não costumam dar
bons poemas, e é quase certo que o poeta nelas tropece, esborrachando-se no
sentimentalismo confessional, que detesto, ou na casca de banana da “ideia genial”, ou, pior, bem
intencionada.
Ou nos esquecemos do delicioso diálogo
entre Mallarmé e Degas, quando o último manifestou seu espanto de ter “ótimas ideias e não fazer boa poesia”?
“Mas
poesia, caro Degas, não se faz de ideias, mas com palavras”.
Embora eu acredite firmemente
que o autor tem muito pouca importância ante a obra, sendo apenas um leitor de
si mesmo, e hoje há uma enervante fixação no autor, o que pensa, seu
posicionamento político (ora, levar isso em conta é me privar da leitura de
Borges, Ezra Pound, Nelson Rodrigues, reacionários larvares, ou descambar para
a estupidez de não ler um poeta por ele ter sido ladrão, escroque, proxeneta,o
que seria ridícul0.
A quem me refiro? Ao genial
François Villon). Claro que há uma simbiose entre sua existência e seu poetar, entretanto,deixemos
isso para os estudiosos, para a crítica, que ela erre antes de nós, sempre
tendo em vista a lição drummondiana, no já citado “Procura da Poesia”:
“Tua gota de
bile, tua careta de gozo ou dor no escuro / são indiferentes. / Não me reveles
teus sentimentos, / que se prevalecem de equívoco e tentam a longa viagem. / O
que pensas e sentes, isso ainda não é poesia”.
“Ainda não é poesia”. Note
que o poeta não disse que não se tornaria em nenhuma hipótese poema, mais que isso
AINDA não é poesia. Pode vir a ser.
Mas,
veja - e viva a contradição! pois assim como a seriedade é uma qualidade de
quem não possui nenhuma outra, a coerência é a virtude dos burros - esses dois
vírus que nos assolam, já dando o gancho para a próxima pergunta, um invisível
e mortal, o vírus propriamente dito, vindo da China; outro visível demais, de
estrepitosa estupidez, o boçal que nos governa e que foi por nós (por mim,
não!) escolhido, e do qual me recuso a dizer o nome, essas duas doenças,
aliadas a esses difíceis dias de confinamento físico, por causa do primeiro, e
intelectual, pelo segundo provocado, são duas pedras quase intransponíveis que me
angustiam.
Assim,
por uma questão de sobrevivência, nestes tempos de confinamento (palavra
horrorosa, tanto sonora quanto semanticamente ) tenho escrito uma série de
poemas para os quais dei o nome provisório de “A Demência do Tempo - poesia
para não enlouquecer ou manual de sobrevivência”.
São
poemas de circunstância, e que circunstâncias! Pois, orteguiana e
contraditoriamente, “Yo
soy yo y mi circunstancia, y si no la salvo a ella no me
salvo yo” (“Eu sou eu e minha circunstância, e se não
a salvo, não me salvo! – Ortega y Gasset), o que foge por completo ao meu habitual, porém, os tenho encarado e
escrito. Além de catárticos, que são, os vejo como um experimento poético, pois
se minha poesia é raro revelar-seno plano oral, esses tenho gravado e divulgado
nas redes, o que tem sido uma experiência interessante, nesse período de rara
angústia.
Artur
Gomes - Revisitando Quintana: você acha que depois dessa crise
virótica pandêmica, quem passará e quem passarinho?
Lúcio Autran - É outra pergunta que depende do dia e do estado
de espírito. Que viveremos uma gigantesca mudança na humanidade, disso não
tenho dúvidas, principalmente do ponto de vista socio econômico. Não que creia
em novas utopias, na minha idade ter utopias é pornográfico, num fim do
capitalismo selvagem e numa sociedade mais solidária, isso é ingenuidade!
Tenha
o nome que tiver, o ser humano é isso que está posto, nem melhor, nem pior;
genial ou escroto, a depender de quem porta nossa precária humanidade. Jamais
fui otimista fora do plano individual, do afeto, soubéssemos viver em paz, em
harmonia, não precisaríamos de leis, códigos, Estados e muito menos de religiões!
Aliás, nem de utopias. Tirem de nós os freios sociais e teremos a barbárie, que
também se apresenta como uma hipótese pós-pandêmica.
Rio,
meio choroso, quando ouço falar em outra sociedade,
melhor, que surgirá após a tragédia... Esqueçam, se alguma humanidade tivemos,
a pandemia a tem levado pelos canais mais podres da nossa existência.
Duvida?
Desde antes da pandemia, o ressurgimento do populismo autoritário de todos os
matizes. Não gosto de chamá-lo “fascista”, por ser palavra presa a um
significado histórico bem determinado, deve ser usada com parcimônia, para que
não se desgaste e perca sua força significante.
Trata-se
de um fenômeno novo, e como não sou sociólogo, aguardo que estes o denominem, e
que também errem antes de mim. Além disso, essa tragédia contemporânea, são
tantas! tem se manifestado tanto à direita quanto à esquerda do espectro
político, e se traduz na tolerância - ou mesmo a exaltação - às ditaduras e aos
ditadores, isso, pasmem, após o nazifascismo, o comunismo stalinista, e de
nossas ditaduras tupiniquins, que foram mais de duas. Não concebo o desprezo
pelo maior bem que um homem pode ter: a liberdade (“Je suis né pour
te connaître / Pour te nommer // Liberté”, cantou Éluard), o que apenas prova que o ser humano é inesgotável.
Todavia,
se, por um lado, os valores solidariedade e amorosidade talvez ressurjam nos
microcosmos familiares e nos círculos íntimos de amizade revalorizados, até
pela momentânea escassez, ambos, para que aflorem como sementes, têm que ser
pressupostos, preexistentes, o que, infelizmente, está longe de ser uma
realidade uniforme, muito ao contrário, pois, se por um lado, vemos esses laços
se estreitarem, temos visto também aumentar barbaramente as agressões gratuitas,
o ódio político, o horror ao belo e à arte, e, talvez pelo traumático convívio
compulsório de amores há muito mortos, se é que um dia existentes, e ainda mais
infelizmente, as ocorrências de violência doméstica, que decuplicaram.
Também
me incomoda ver a morte como mera estatística. E o recente e chocante,
inacreditável mesmo, “e daí?” ante a dor alheia, do bestial que nos
governa é exemplo assustador, e temo que o valor “distanciamento da dor
alheia”, até por egoística defesa, seja mais forte e profundo em nós do que
o sentido da solidariedade.
Em
resumo, é um risco precoce achar qualquer coisa num futuro a médio prazo.
Artur
Gomes - Escrevendo sobre o livro Pátria A(r)mada, o poeta e jornalista
Ademir Assunção, afirma que cada poeta tem a sua tribo, de onde ele traz as
suas referências. Você de onde vem, qual é a sua tribo?
Lúcio
Autran - Olha, se bem entendi, e é provável que não o tenha, do
ponto de vista de minha contemporaneidade, procuro, dentro do possível, não me
atrelar a “tribos”, sou um homem
solitário por vocação e gosto, aquilo que foi tema do meu penúltimo livro, “Fragmentos de um Exílio Voluntário”, embora por vezes receia
que tenha me isolado demais dos meios sociais e culturais. Perceba que, mais do
que de escrever, gosto de ler, leio compulsivamente, então, se tiver que me
inserir numa tribo, e agora me refiro a tribos ancestrais, acho que seria numa
taba onde (con)vivem, e eis-me numa contraditória (viva!) utopia particular,
num país cuja legislação e roteiro tenham sido escritos em muitas mãos por
Dante, Baudelaire, os que denomino dois antônios de minha vida- o Gonzaga, no
Brasil, e o Machado, na Espanha - Homero, Virgílio, Villon, Lorca, Drummond,
Bandeira, Murilo Mendes e João Cabral. Cuja perene trilha sonora fosse de
autoria coletiva de Beethoven, Bach, Satie, Arvo Part, Pixinguinha, Cartola,
uma ópera cuja principal ária fosse cantada pela divindade Clementina de Jesus;
com cenários de Caravaggio, Bernini, Miró, Aleijadinho e Franck Stella, enfim,
todos os que chamo “homens possíveis”, aqueles que, sendo “possíveis” em sua diversidade, tornam possível minha existência.
Artur
Gomes - Nos dias atuais o que é ser um poeta, militante de
poesia?
Lúcio
Autran - Tão difícil ser poeta no Brasil... militante? Não, não
tenho essa veleidade, muito menos ânimo, escrevo porque que não sei fazer outra
coisa, pudesse me tornaria apenas um leitor.
Quando eu era bem mais novo,
meu pai me deu um livro chamado “Escrever...
Para quê? Para quem?”, que
recomendo vivamente, uma série de entrevistas com alguns ficcionistas e
intelectuais franceses, dentre eles Roland Barthes, junto com a seguinte
observação: “meu filho, essa pergunta,
difícil de se responder, só pode ser feita para escritores franceses, se a
fizer para um brasileiro, ele se mata."
Como, lhe pergunto, “ser poeta”, num país de analfabetos, e
note que me refiro aos afortunados alfabetizados? Como abraçar essa difícil e
ingrata paixão, num país no qual a sua maior editora destaca em seu “site”: “não aceitamos originais de poesia”?
Uma palavra define meu
sentimento quando li essa barbaridade: estupefação. Hein? Como assim? Uma
editora que se recusa à poesia? Ah, não vende... tenho dúvidas, fundadas
dúvidas de que isso seja uma verdade intransponível, que resista a campanhas
publicitárias que eles, ou melhor, sua grana, sabem fazer muito bem. Sejamos
francos! Na verdade, boa parte dos editores brasileiros da nossa
contemporaneidade entende muito pouco de literatura, ao menos se comparada com uma
geração de editores responsáveis pela força da literatura brasileira de outras
gerações.
Nossa literatura teve, no início e meados do século passado,
editores como Ênio da Silveira, que
assumiu a editora Civilização Brasileira, homem de coragem, pois cobriu a
Grande Guerra e, mais tarde, desafiou a ditadura, que, covardemente, terminaria
por sufocar a editora, forçando sua venda. Ênio,
além de criador da Revista
Civilização Brasileira, marco do pensamento político e
cultural e de resistência à ditadura militar, fechada após o Ato Institucional nº 5, no fim de 1968,
esse mesmo cuja boçalidade de plantão exalta, foi responsável pela publicação
de inúmeros então jovens escritores brasileiros, além de autores estrangeiros
como Nabokov; além do difícil Ulisses, de Joyce, cuja tradução foi incumbida
por ele a Antônio Houaiss, e, ironicamente, vendeu muito bem (se foi tão lido
quanto vendido são outros quinhentos).
Também tivemos José Olympio, responsável pelos livros de José
Lins do Rego, Manuel Bandeira, Érico Veríssimo e tantos outros. Francisco Alves, que adquiriu, em 1909, a Livraria Laemmert, e, com,
ela, os direitos de “Os Sertões”, de
Euclides da Cunha, além de editar Raul Pompéia. E como
esquecer Augusto Frederico Schmitd,
ele próprio um poeta, talvez melhor editor do que poeta, responsável pelo
nascimento ao mundo literário de João Cabral, Casa Grande e Senzala, de
Gilberto Freyre e Caetés, de Graciliano Ramos e outros escritores? Os cito
apenas para ilustrar tamanha diferença!
Inegável a sua importância para um período tão fértil da literatura
brasileira? Coincidência, acidente genético de uma geração? Não, não creio, apenas
uma conjunção de fatores, dentre eles a clarividência desses editores.
Mais, se passarmos para um enfoque jurídico, creio
que a editora tem uma “função social”,
dever jurídico constitucional e legal de fomento à cultura, agravado pelo fato
de ter recebido do Constituinte originário a imunidade tributária. O que fazem
para devolver ao povo o que retira de seus tributos? “Não vende”?
Claro, não sou ingênuo! Sei que
o editorial é um negócio, nada contra e o respeito como tal, seria imbecil
pensar de forma diversa, mas não é um negócio qualquer, um armazém de secos e
molhados. E, veja que ironia, de tão fixados estavam no “mercado”, imediatistas que são, investiram no leitor errado, no
leitor extemporâneo, que compra o livro da vitrine, o leitor de “best-selllers” e livros de auto ajuda,
fenômeno que costuma ajudar mais seus autores e editores do que à Literatura,
ao menos como eu a concebo, esses gigolôs das letras que tanto amam os grandes
editores, mas são leitores que nunca mais leem coisa alguma!
O leitor dependente do livro, o
leitor adicto, viciado, que costuma bancar, no mínimo, as despesas fixas de uma
livraria, que se priva de roupas e diversões pueris para comprar livros, e que,
quando vai a uma livraria, se interessa mais pela estante de livros do que pela
qualidade do café (parafraseando certa guilhotinada: “não têm poesia? Comam brioche!”)
este leitor, burramente, foi desprezado, afastado, e frequentar livrarias, eu,
que era rato de sebos, virou um grande bode, junte-se a isso a facilidade das
compras pela Internet... mas esta não foi, definitivamente, a única culpada, eu
gostava de frequentar livrarias, quando tinham livros. E é fenômeno mundial, as
livrarias de Buenos Aires, antes verdadeiros paraísos na Terra, já não são
nada.
O resultado? Está aí, a vista
de todos.
Mas você, poeta, que
pessimista! Dirão vocês. Bem, o pessimista nada mais é do que o otimista que
comprou óculos, mas, acredite, sou otimista!
A literatura de uma geração só
se constrói com alguma uniformidade, marcando a História de sua cultura, com a
troca entre seus autores, e, paradoxalmente, com a solidão desses mesmos
autores, pois não concebo escritores que não leem, e que não cultivam a solidão
e o silêncio. Então, e sou um entusiasta desta ideia: as redes sociais
proporcionaram uma troca que cessara, o espiar pelas frestas do mundo e ver que
havia – e há - gente boa, excelente mesmo, escrevendo, e, não menos importante,
críticos escrevendo, pensando, resenhando, ambos rompendo o isolamento a que
haviam sido condenados, tanto pela grande imprensa quanto pelas... grandes
editores.
E essa gente, veja que
maravilha! Aos poucos se organizou numa imprensa paralela (não uso alternativa
propositalmente, não se cuida de alternatividade, que passa uma ideia de
secundário) e, tão importante quanto, em editoras que encontraram seu nicho,
seus leitores e seus escritores, os quais lindamente, sim, lindamente se
confundem, e não tenho a menor dúvida que , afortunadamente, se forma uma nova
e possante geração de leitores e escritores.
Vejo surgir hoje, no Brasil e
em Portugal, uma nova geração de editores/poetas, que percebeu a força que tem
o leitor de poesia, editoras com a Patuá, Texto-Território, Mondrongo, Chiado e
tantas outras que me penitencio por não citar. São esses editores que serão
lembrados no futuro pelo ressurgimento de uma novíssima poesia lusofônica, como
o são os acima citados. E vejam que dulcíssima ironia, são esses editores que
vêm sendo objeto de reportagens na... grande imprensa, como responsáveis pela
recuperação do... mercado editorial (desculpem, vou gargalhar um pouco lá
fora).
Todavia, isso tudo é muito
novo, mas é uma esperança de que o poeta brasileiro deixe de ser, mais do que um
“militante”, um quixotesco membro de
um tragicômico exército de Brancaleone.
Artur
Gomes - Que pergunta não fiz que você gostaria de responder?
Lúcio
Autran - Sou, como gostava Nelson Rodrigues, mais do que minhas
orteguianas circunstâncias, minhas obsessões, há temas recorrentes em mim,
falei “en passant” de alguns deles
acima, como a excessiva importância que temos dado ao autor (claro que ressalvo
o objeto de estudo crítico, e aqueles cujas vidas estão umbilicalmente ligadas
às suas vidas, como Artaud, Lima Barreto, Bispo do Rosário, entre outros), mas
há um dado que tem sobressaído nestes
tempos de confinamento e de tão óbvio quanto absurdo destino de perigarmos cair
num autoritarismo populista, infelizmente tônica do mundo contemporâneo: a
importância e a força da Arte como forma de resistência.
Não, não me refiro à
instrumentalização da Arte e do artista, de resto abominável, principalmente da
arte popular, equívoco recorrente de colocar a Arte a serviço de alguma (boa ou
má) causa, longe disso, mas de seu lugar na sociedade. E não que isso seja
novidade, não é, mas é nesses momentos que salta aos olhos sua importância,
aqui sim, “tribal”, no sentido de
resgate do que é humano, demasiadamente humano, para ficarmos em Nietzsche.
Refiro-me aos mitos e ritos que
nos alimentam a alma desde os hominídeos, nossa capacidade de abstrair para enfrentar
nossos medos, nossos “daemons”, a
começar pela Morte. Me irrita ler nos livros de história para adolescentes, e
também alguns equivocados autores para adultos, a limitadora interpretação de
que as pinturas rupestres eram instrumentalizadas para a caça, risível
equívoco, ali estava um artista com suas questões estéticas internas e externas
à pedra da caverna que lhe servia de suporte, um Michelangelo rupestre, forma
de construção de uma cultura, forma de criação de uma identidade tribal pela
qual valha a pena lutar. Se depois era instrumentalizadas, como aliás o foi
também Michelangelo e outros artistas pela Igreja Católica, isso se deu numa
etapa posterior, que não teve a menor importância no momento da criação.
Muito menos falo da arte dita “engajada”, pois esta se presta, na
maior parte dos casos, apenas a converter os já convertidos, mas da arte que bule
nos mais recônditos desvãos do Inconsciente, ameaça. Não é à toa que
colonizadores, ditadores e autoritários em geral odeiam a Cultura, celebram a
censura e terminam por assassinar artistas e poetas como Lorca, pois têm ódio a
eles, e o tem por pânico, por dois motivos suplementares: o inapreensível do
simbólico, sua polissemia, e a afirmação de sua impotência ante a cultura de um
povo, um decorrente do outro. Uma cultura forte, a identidade de um povo, é um
totem pelo qual lutar.
O controle da língua, sua
destruição pelo colonizador guarda simbolismo incontornável. Foi assim com
nossos índios, a destruição de sua espinha dorsal se deu também pela língua,
com a adoção de uma “língua franca”,
o Nheengatu, fenômeno também verificado
na América pré-colombiana, com o que conhecemos por “Civilização Asteca”, na verdade uma “civilização zapoteca”, ou, mais precisamente, “tezcocana” (recentemente escrevi um ensaio sobre
isso, que está no blog). Sufocados pelos mexicas, militarmente subjugados e
obrigados a ceder um acordo, qual cultura permaneceu no imaginário mundial? A
mexica? Não, a Asteca... já ouviu uma história semelhante antes? Claro que já.
Assim tem sido, desde a Grécia Antiga. Se Roma detinha o poder militar, o que
sobreviveu e chegou a nós foi a cultura grega, base da civilização ocidental,
aquilo que alguém definiu como “o vencido venceu o vencedor”.
E, bem próximo a nós, como parte integrante de nossa
História e da história das américas, a permanência da cultura negra, bem mais
forte e enraizada do que a silvícola. Aqui e ao norte do Equador a cultura
negra deixou uma herança até hoje presente na música, no Jazz, na dança, na
sociedade como um todo.
Compare a cultura pré-colombiana da América Central
com nossos índios, e veremos quem melhor resistiu e quem mais agudamente
permaneceu.
São, enfim, múltiplos os exemplos, e os dominadores
– sejam eles colonizadores, tribos, caciques, reis, ditadores ou governos com
tendências autoritárias – sabem disso, talvez, quem poderá afirmar? até
inconscientemente disso, e tremem, numa fusão de medo e ódio, este decorrente
daquele: como poetas e outros “inúteis” e sua “inútil” arte ousam
desafiar o fero peso do ferro das armas? Tanto é verdade que a primeira coisa
que faz um ditador é instituir uma severa censura à produção de seus artistas,
muita vez aprisioná-los e, desejo recôndito, que deve habitar os sonhos de
quadrilhas de milicianos, matá-los, como fez Franco a Lorca.
Inocente coincidência?
Obrigado pelo bate-papo.
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Muito obrigado pelo papo e pela oportunidade de conhecer esse blog, o que, aliás, vai ao encontro do que disse: as novas formas de resistência e propagação cultural. Parabéns!
ResponderExcluirExcelente a digressão do poeta. Que venham tantas outras entrevistas
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