terça-feira, 5 de maio de 2020

Lúcio Autran - Entrevistas



Faz bem pouco tempo que adicionei o Lúcio Autran no facebook, e tenho lido quase que diariamente suas impressões sobre esses dias em que  o vírus e o verme tem nos atormentado da medula ao osso. Conhecia pouco dele, apenas poemas do seu livro Soda Cáustica, que tinha lido no site da Editora Patuá lançado em 2019. Hoje tenho o prazer de conhecê-lo mas um  pouco, bem como apresentá-lo  aos meus queridos amigos leitores, através desse bate papo que segue abaixo.   

Lúcio Autran -  nasceu em 1957, no Rio de Janeiro. Seu livro de estreia, em 1985, “O Piloto Anônimo” (Global Ed.) recebeu a Menção Especial do Prêmio Guararapes da União Brasileira de Escritores. Desde então, publicou inúmeros livros de poesia: “Um Nome (Taurus/Timbre, 1987); Anima(l), (Ed. Seis, 1993); “Exíliosamares” (Impressões do Brasil Editores, 1996); “Excertos dos Exílios” (com Alexei Bueno, Impressões do Brasil Editores, 1996); “Centro” (Ed. Francisco Alves, 1999); “Fragmentos do Sonho e Outros Ciclos Menores” (Ed. Bookess, 2012) e “Fragmentos de um Exílio Voluntário” (Ed. Bookess, 2016) que foi indicado como o “melhor livro de poesia do ano”, pelo crítico Alfredo Monte, do Jornal a Tribuna (SP).

É também autor do livro de ensaios “Uma Iniciativa Pessoal? Novos Meios, sua Democratização e os Direitos Autorais vistos da Terra de Santa Cruz” (Ed. Bookess, 2013), tendo colaborado com o jornal "VERVE", o Suplemento Literário do Estado de Minas, a Revista Galeria e a Sandmann Und Haak Galery, Hannover, EUA.

Publicou, dentre outros, pela Ed. Artes e Ofícios (1991), do Museu de Arte Moderna de São Paulo e para a Revista Poesia Sempre (1995), da Fundação Biblioteca Nacional e para Planetaria Edizioni Universum – Testi Scelti da Renza Agnellli, Trento, Itália (1997); além de participar de várias antologias e escrever para revistas de poesia e literatura brasileira. Publicou também o livro  "Soda Cáustica" pela Editora Patuá, link abaixo para ler 4 poemas do livro.


Artur Gomes - Como se processa o seu estado de poesia?

Lúcio Autran - “Estado de Poesia”... gosto disso, não por acaso, e coincidentemente, é parte de um verso do meu último livro, “Soda Cáustica Soda” (Editora Patuá, 2019)

“(...) afinal aponta a leste um sol que estala / no mesmo ponto do pequeno horizonte / do rio. Contrário a mim, não tem pressa, / sabe, como sei, um dia anoiteceremos, / levando conosco os restos de uma tarde. // Por isso tem calma em trazer o pesado / fardo do dia. Caio em estado de poesia”.

Isso define bem (parte d)o meu processo criador, e esse estado se dá como água minando da terra, até transbordar e depois secar. Então, cabe aproveitar os períodos mananciais.

Claro que isso varia de época para época e de livro para livro, mas há outra característica em meu poetar: sempre gostei de trabalhar com a ideia do “tema” na poesia, num determinado livro, isso já foi mais marcante, mas busco dar uma unidade a cada livro, por isso, me fosse dado escolher, prefiro que meu hipotético leitor siga a ordem da organização dos poemas, por uma questão de organicidade.

Tal forma de trabalhar, ao contrário do que possa inicialmente parecer, não limita, pelo contrário, liberta, dentro do conceito de Schelling, em Filosofia da Arte, para quem a única forma de o artista chegar ao absoluto é escravizando-se ao que o limita (a meu ver, uma vertente filosófica, com menos beleza metafórica, da famosa frase de Tolstoi: “se queres ser universal, comece por pintar a tua aldeia”). E assim penso que também funciona o enredo, no romance.

Uma vez posto o “tema” sobre o qual vou trabalhar, aquilo que será a única ponte entre mim e mim mesmo, entre mim e um suposto leitor, no qual não penso quando escrevo, naquele momento inexistente. Esse “tema” me servirá como um guia, um Virgílio, um “suporte”, como é a tela para o artista plástico e a harmonia para o músico, preso a ele me sinto livre para tratar de outras questões que o ultrapassam, tais como questões estéticas, experimentos, e  outras, sempre tendo em vista a lição de Corneille: "A Arte é algo, sem dúvida, com regras, mas não se sabe quais”.

De um modo geral,esse “estado de poesia” vem num lampejo, muitas vezes de madrugada, sendo responsável por memoráveis noites de insônia.

Anoto rapidamente algumas palavras soltas num pequeno bloco, que trago sempre comigo. Volto a ele no dia seguinte, ou dois ou três dias depois, a depender da sedução que o poema me provoque. Como tenho a letra muito ruim, detestável mesmo, é comum que nem eu entenda o que ali escrevi, é quando verifico se aquela “ideia súbita”, como chamava meu pai, tinha força suficiente para libertar-se de mim, dela mesma, e tornar-se poema. Se não entendo o que ali está anotado, nem me lembro do que se tratava, e isso se tornar um obstáculo intransponível, é que merecia ser esquecido, não valia o esforço de um poema.

Ultrapassada essa fase inicial, para mim a mais dolorosa, quase desagradável, uma vez posta no papel em forma de palavras, digitado, é hora de lapidar o poema, burilar as palavras,conviver com elas, cortar, cortar e cortar, até que sobre apenas o essencial à forma (e à ideia), e olhe que por vezes nada sobra, senão a lata do lixo (sou livre, até a publicação) e deixar que algumas renitentes, que ainda se movimentem no inconsciente, aflorem, mas já submetidas à forma que tomou o poema, enfim, a palavra (quase) exata. E me impressiona que, tanta vez, aquilo que me parecia sedutor, um belo verso, uma vez cristalizado no papel, na forma escrita, forma com a qual concebo minha poesia, que boa m!

É hora de reescrever, reescrever, reescrever, uma, duas, dez, cem vezes, até desistir. Ou abandonar. Ou atirar ao lixo. Sou um perfeccionista neurótico, escrevo, me afasto do que escrevi, deixo “a massa descansar” por um tempo, e volto a um poema inúmeras vezes.

Cheguei a passar quatro anos em torno de um só poema de três páginas. Se ficam prontos? Jamais! Apenas me canso deles, por isso, para ceder passo a outros poemas, outros “estados de poesia”, e apenas por isso, publico, e, a partir de então, o poema,  sob forma de um livro, não mais me pertence, mas ao hipotético leitor, que finalmente surge no horizonte, não poucas vezes com uma interpretação completamente distinta de minha intenção inicial, e é justo esse o leitor que me interessa: o que se torna coautor de mim mesmo.

E esse distanciamento imutável que a publicação me dá é o principal motivo de eu nunca reler o que publicado está, pois, além de não mais me pertencer, me causa desconforto, tenho medo de achar detestável, experiência tão comum quanto desagradável. O que fazer com aquilo que está cristalizado num livro? É desesperador.

Enfim, não sei que poeta espanhol que disse: “um poema não acaba, é abandonado”.

Artur Gomes - Seu poema preferido? Próprio. Ou de outro poeta de sua admiração.

Lúcio Autran - Meu? Sempre o que está em processo de criação, ou o último... mas há, se tenho que destacar, dois ou três versos dos quais se me arrependi não foi tanto, do último livro,

Respira em azul este sol que te cega / nega o pântano que te paralisa, seca, / que a safra da vida é única, vai, e sega” (Manhã)

ou do penúltimo, “Fragmentos de um Exílio Voluntário”:
O tempo // com suas garras de rapina // deita raízes // no chão rasteiro de nossas vidas. /// E ele mesmo as arranca" (Tempo Estilhaçado).

Se fosse citar de outro autor, seria, pela sua difícil, quase impossível e invejável simplicidade, pois não é qualquer um que transforma uma rega do jardim em versos tão poderosos, estes versos de Guillén (o Jorge, o espanhol, que o cubano, Nicolás, não ouço bem):

Sacude el agua a la hoja / Con un chorro de rumor, / Alumbra el verde y lo moja / Dentro de un fulgor. / ¡Qué olor / A brusca tierra inmediata! / Así me arroja y me ata / Lo tan soleadamente / Despejado a este retiro / Fresquísimo que respiro / Con mi Adán más inocente.” (Paraíso Regado).

“Brusca tierra imediata!” e “(...) respiro / com mi Adán más inocente” são versos que invejo por não os ter escrito.

Artur Gomes - Qual o seu poeta de cabeceira?

Lúcio Autran - Depende da insônia (risos). Sério, isso varia muito com meu estado de espírito, mas, costumam ocupar lugar cativo: Guillén, Borges, Dante, Petrarca, Goethe (só o do Fausto), Hölderlin, Bocage, Pessoa e Baudelaire.

Se formos falar dos brasileiros, os de minha formação poética, que moldaram minha língua: Drummond, Bandeira, João Cabral, Tomás Antônio Gonzaga (acho Cartas Chilenas, até pela clandestinidade, inaugural) e Murilo Mendes, à exceção da fase metafísica, que gosto menos:

Mamãe vestida de rendas / Tocava piano no caos. / Uma noite abriu as asas / Cansada de tanto som, / Equilibrou-se no azul, / De tonta não mais olhou / Para mim, para ninguém! / Cai no álbum de retratos”. É um dos poemas mais belos da nossa língua.

 Dos meus contemporâneos é difícil falar, a proximidade embaça um pouco o juízo crítico, mas dois destacaria, Andre Caramuru Aubert e Oswaldo Martins. Mas são muitos, é uma geração de bons poetas brasileiros, e sei que omito inúmeros.

Artur Gomes - Em seu instante de criação existe alguma pedra de toque, algo que o impulsione para escrever?

Lúcio Autran - Não. Há, aquilo que chamei “ideia súbita”, mas que pode se dar dormindo (antigamente deixava ao lado da cama um caderninho de notas, para anotar os sonhos, mas parei com o hábito, um dos responsáveis, além da genética, por minha insônia crônica).

Por vezes, essa ideia aflora logo ao acordar, quando as defesas do consciente ainda estão baixas, e costumam liberar alguma poesia. Os demônios (“daemons”, no sentido grego, não no judaico-cristão) da insônia foram responsáveis por todo um capítulo do último livro.

Entretanto, em geral, a ideia vem, mas evito escrever imediatamente, convivo, como na lição de Drummond, em “Procura da Poesia”, com eles, até que tomem forma, e não se percam, pois não é incomum que a pressa em colocá-los antes da hora no papel perca o poema, aborte-o, escrevo, e quando dele me distancio, que merda!

Artur Gomes - Livro que considera definitivo em sua obra?

Lúcio Autran - Como acho que o tempo ainda não me sacaneou tudo que tem para me sacanear, e espero que meu corpo morra antes de mim, pois sou minha lucidez, nada mais, sempre o último, até perder a memória, a capacidade de escrever, mas aí nada mais me interessará.

Artur Gomes - Além da poesia em verso já exercitou ou exercita outra forma de linguagem com poesia?

Lúcio Autran - Poesia é experimento. É palavra. Quem me lê pode achar que não experimento muito, que a palavra me vem fácil. Terrível engano, sofro para pôr no papel, como disse acima, gosto do trabalho, de experimentar, de recriar significados e dar novos significantes, resgatar palavras mortas, reinventá-las, gosto desse risco.

Li, há muito anos, uma entrevista com João Cabral, onde ele fez uma comparação inesquecível, que cito de memória, e, por memória, reinvento: “o povo cria a língua, os escritores a solidificam e os gramáticos a estudam. A poesia é o laboratório da língua”. É aqui, na poesia,que se dá a (re)invenção da língua.

Artur Gomes - Qual poema escreveu quando teve uma pedra no meio do caminho?

Lúcio Autran - Pedras no meio do caminho não bastam e não costumam dar bons poemas, e é quase certo que o poeta nelas tropece, esborrachando-se no sentimentalismo confessional, que detesto, ou na casca de banana da “ideia genial”, ou, pior, bem intencionada.

Ou nos esquecemos do delicioso diálogo entre Mallarmé e Degas, quando o último manifestou seu espanto de ter “ótimas ideias e não fazer boa poesia”?  “Mas poesia, caro Degas, não se faz de ideias, mas com palavras”.

Embora eu acredite firmemente que o autor tem muito pouca importância ante a obra, sendo apenas um leitor de si mesmo, e hoje há uma enervante fixação no autor, o que pensa, seu posicionamento político (ora, levar isso em conta é me privar da leitura de Borges, Ezra Pound, Nelson Rodrigues, reacionários larvares, ou descambar para a estupidez de não ler um poeta por ele ter sido ladrão, escroque, proxeneta,o que seria ridícul0.

A quem me refiro? Ao genial François Villon). Claro que há uma simbiose entre sua existência e seu poetar, entretanto,deixemos isso para os estudiosos, para a crítica, que ela erre antes de nós, sempre tendo em vista a lição drummondiana, no já citado “Procura da Poesia”:

Tua gota de bile, tua careta de gozo ou dor no escuro / são indiferentes. / Não me reveles teus sentimentos, / que se prevalecem de equívoco e tentam a longa viagem. / O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia”.

“Ainda não é poesia”.  Note que o poeta não disse que não se tornaria em nenhuma hipótese poema, mais que isso AINDA não é poesia. Pode vir a ser.

Mas, veja - e viva a contradição! pois assim como a seriedade é uma qualidade de quem não possui nenhuma outra, a coerência é a virtude dos burros - esses dois vírus que nos assolam, já dando o gancho para a próxima pergunta, um invisível e mortal, o vírus propriamente dito, vindo da China; outro visível demais, de estrepitosa estupidez, o boçal que nos governa e que foi por nós (por mim, não!) escolhido, e do qual me recuso a dizer o nome, essas duas doenças, aliadas a esses difíceis dias de confinamento físico, por causa do primeiro, e intelectual, pelo segundo provocado, são duas pedras quase intransponíveis que me angustiam.

Assim, por uma questão de sobrevivência, nestes tempos de confinamento (palavra horrorosa, tanto sonora quanto semanticamente ) tenho escrito uma série de poemas para os quais dei o nome provisório de “A Demência do Tempo - poesia para não enlouquecer ou manual de sobrevivência”.

São poemas de circunstância, e que circunstâncias! Pois, orteguiana e contraditoriamente, Yo soy yo y mi circunstancia, y si no la salvo a ella no me salvo yo” (“Eu sou eu e minha circunstância, e se não a salvo, não me salvo! – Ortega y Gasset), o que foge por completo ao meu habitual, porém, os tenho encarado e escrito. Além de catárticos, que são, os vejo como um experimento poético, pois se minha poesia é raro revelar-seno plano oral, esses tenho gravado e divulgado nas redes, o que tem sido uma experiência interessante, nesse período de rara angústia.

Artur Gomes - Revisitando Quintana: você acha que depois dessa crise virótica pandêmica, quem passará e quem passarinho?

Lúcio Autran - É outra pergunta que depende do dia e do estado de espírito. Que viveremos uma gigantesca mudança na humanidade, disso não tenho dúvidas, principalmente do ponto de vista socio econômico. Não que creia em novas utopias, na minha idade ter utopias é pornográfico, num fim do capitalismo selvagem e numa sociedade mais solidária, isso é ingenuidade!

Tenha o nome que tiver, o ser humano é isso que está posto, nem melhor, nem pior; genial ou escroto, a depender de quem porta nossa precária humanidade. Jamais fui otimista fora do plano individual, do afeto, soubéssemos viver em paz, em harmonia, não precisaríamos de leis, códigos, Estados e muito menos de religiões! Aliás, nem de utopias. Tirem de nós os freios sociais e teremos a barbárie, que também se apresenta como uma hipótese pós-pandêmica.

Rio, meio choroso, quando ouço falar em outra sociedade, melhor, que surgirá após a tragédia... Esqueçam, se alguma humanidade tivemos, a pandemia a tem levado pelos canais mais podres da nossa existência.

Duvida? Desde antes da pandemia, o ressurgimento do populismo autoritário de todos os matizes. Não gosto de chamá-lo “fascista”, por ser palavra presa a um significado histórico bem determinado, deve ser usada com parcimônia, para que não se desgaste e perca sua força significante.

Trata-se de um fenômeno novo, e como não sou sociólogo, aguardo que estes o denominem, e que também errem antes de mim. Além disso, essa tragédia contemporânea, são tantas! tem se manifestado tanto à direita quanto à esquerda do espectro político, e se traduz na tolerância - ou mesmo a exaltação - às ditaduras e aos ditadores, isso, pasmem, após o nazifascismo, o comunismo stalinista, e de nossas ditaduras tupiniquins, que foram mais de duas. Não concebo o desprezo pelo maior bem que um homem pode ter: a liberdade (“Je suis né pour te connaître / Pour te nommer // Liberté”, cantou Éluard), o que apenas prova que o ser humano é inesgotável.

Todavia, se, por um lado, os valores solidariedade e amorosidade talvez ressurjam nos microcosmos familiares e nos círculos íntimos de amizade revalorizados, até pela momentânea escassez, ambos, para que aflorem como sementes, têm que ser pressupostos, preexistentes, o que, infelizmente, está longe de ser uma realidade uniforme, muito ao contrário, pois, se por um lado, vemos esses laços se estreitarem, temos visto também aumentar barbaramente as agressões gratuitas, o ódio político, o horror ao belo e à arte, e, talvez pelo traumático convívio compulsório de amores há muito mortos, se é que um dia existentes, e ainda mais infelizmente, as ocorrências de violência doméstica, que decuplicaram.

Também me incomoda ver a morte como mera estatística. E o recente e chocante, inacreditável mesmo, “e daí?” ante a dor alheia, do bestial que nos governa é exemplo assustador, e temo que o valor “distanciamento da dor alheia”, até por egoística defesa, seja mais forte e profundo em nós do que o sentido da solidariedade.

Em resumo, é um risco precoce achar qualquer coisa num futuro a médio prazo.

Artur Gomes - Escrevendo sobre o livro Pátria A(r)mada, o poeta e jornalista Ademir Assunção, afirma que cada poeta tem a sua tribo, de onde ele traz as suas referências. Você de onde vem, qual é a sua tribo?

Lúcio Autran - Olha, se bem entendi, e é provável que não o tenha, do ponto de vista de minha contemporaneidade, procuro, dentro do possível, não me atrelar a “tribos”, sou um homem solitário por vocação e gosto, aquilo que foi tema do meu penúltimo livro, “Fragmentos de um Exílio Voluntário”, embora por vezes receia que tenha me isolado demais dos meios sociais e culturais. Perceba que, mais do que de escrever, gosto de ler, leio compulsivamente, então, se tiver que me inserir numa tribo, e agora me refiro a tribos ancestrais, acho que seria numa taba onde (con)vivem, e eis-me numa contraditória (viva!) utopia particular, num país cuja legislação e roteiro tenham sido escritos em muitas mãos por Dante, Baudelaire, os que denomino dois antônios de minha vida- o Gonzaga, no Brasil, e o Machado, na Espanha - Homero, Virgílio, Villon, Lorca, Drummond, Bandeira, Murilo Mendes e João Cabral. Cuja perene trilha sonora fosse de autoria coletiva de Beethoven, Bach, Satie, Arvo Part, Pixinguinha, Cartola, uma ópera cuja principal ária fosse cantada pela divindade Clementina de Jesus; com cenários de Caravaggio, Bernini, Miró, Aleijadinho e Franck Stella, enfim, todos os que chamo “homens possíveis”, aqueles que, sendo “possíveis” em sua diversidade, tornam possível minha existência.

Artur Gomes - Nos dias atuais o que é ser um poeta, militante de poesia?

Lúcio Autran - Tão difícil ser poeta no Brasil... militante? Não, não tenho essa veleidade, muito menos ânimo, escrevo porque que não sei fazer outra coisa, pudesse me tornaria apenas um leitor.

Quando eu era bem mais novo, meu pai me deu um livro chamado “Escrever... Para quê? Para quem?”, que recomendo vivamente, uma série de entrevistas com alguns ficcionistas e intelectuais franceses, dentre eles Roland Barthes, junto com a seguinte observação: “meu filho, essa pergunta, difícil de se responder, só pode ser feita para escritores franceses, se a fizer para um brasileiro, ele se mata."

Como, lhe pergunto, “ser poeta”, num país de analfabetos, e note que me refiro aos afortunados alfabetizados? Como abraçar essa difícil e ingrata paixão, num país no qual a sua maior editora destaca em seu “site”: “não aceitamos originais de poesia”?

Uma palavra define meu sentimento quando li essa barbaridade: estupefação. Hein? Como assim? Uma editora que se recusa à poesia? Ah, não vende... tenho dúvidas, fundadas dúvidas de que isso seja uma verdade intransponível, que resista a campanhas publicitárias que eles, ou melhor, sua grana, sabem fazer muito bem. Sejamos francos! Na verdade, boa parte dos editores brasileiros da nossa contemporaneidade entende muito pouco de literatura, ao menos se comparada com uma geração de editores responsáveis pela força da literatura brasileira de outras gerações.

 Nossa literatura teve, no início e meados do século passado, editores como Ênio da Silveira, que assumiu a editora Civilização Brasileira, homem de coragem, pois cobriu a Grande Guerra e, mais tarde, desafiou a ditadura, que, covardemente, terminaria por sufocar a editora, forçando sua venda. Ênio, além de criador da Revista Civilização Brasileira, marco do pensamento político e cultural e de resistência à ditadura militar, fechada após o Ato Institucional nº 5, no fim de 1968, esse mesmo cuja boçalidade de plantão exalta, foi responsável pela publicação de inúmeros então jovens escritores brasileiros, além de autores estrangeiros como Nabokov; além do difícil Ulisses, de Joyce, cuja tradução foi incumbida por ele a Antônio Houaiss, e, ironicamente, vendeu muito bem (se foi tão lido quanto vendido são outros quinhentos).

Também tivemos José Olympio, responsável pelos livros de José Lins do Rego, Manuel BandeiraÉrico Veríssimo  e tantos outros. Francisco Alves, que adquiriu, em 1909, a Livraria Laemmert, e, com, ela, os direitos de “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, além de editar Raul Pompéia. E como esquecer Augusto Frederico Schmitd, ele próprio um poeta, talvez melhor editor do que poeta, responsável pelo nascimento ao mundo literário de João Cabral, Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre e Caetés, de Graciliano Ramos e outros escritores? Os cito apenas para ilustrar tamanha diferença!

Inegável a sua importância para um período tão fértil da literatura brasileira? Coincidência, acidente genético de uma geração? Não, não creio, apenas uma conjunção de fatores, dentre eles a clarividência desses editores.

Mais, se passarmos para um enfoque jurídico, creio que a editora tem uma “função social”, dever jurídico constitucional e legal de fomento à cultura, agravado pelo fato de ter recebido do Constituinte originário a imunidade tributária. O que fazem para devolver ao povo o que retira de seus tributos? “Não vende”?

Claro, não sou ingênuo! Sei que o editorial é um negócio, nada contra e o respeito como tal, seria imbecil pensar de forma diversa, mas não é um negócio qualquer, um armazém de secos e molhados. E, veja que ironia, de tão fixados estavam no “mercado”, imediatistas que são, investiram no leitor errado, no leitor extemporâneo, que compra o livro da vitrine, o leitor de “best-selllers” e livros de auto ajuda, fenômeno que costuma ajudar mais seus autores e editores do que à Literatura, ao menos como eu a concebo, esses gigolôs das letras que tanto amam os grandes editores, mas são leitores que nunca mais leem coisa alguma!

O leitor dependente do livro, o leitor adicto, viciado, que costuma bancar, no mínimo, as despesas fixas de uma livraria, que se priva de roupas e diversões pueris para comprar livros, e que, quando vai a uma livraria, se interessa mais pela estante de livros do que pela qualidade do café (parafraseando certa guilhotinada: “não têm poesia? Comam brioche!”) este leitor, burramente, foi desprezado, afastado, e frequentar livrarias, eu, que era rato de sebos, virou um grande bode, junte-se a isso a facilidade das compras pela Internet... mas esta não foi, definitivamente, a única culpada, eu gostava de frequentar livrarias, quando tinham livros. E é fenômeno mundial, as livrarias de Buenos Aires, antes verdadeiros paraísos na Terra, já não são nada.

O resultado? Está aí, a vista de todos.
Mas você, poeta, que pessimista! Dirão vocês. Bem, o pessimista nada mais é do que o otimista que comprou óculos, mas, acredite, sou otimista!

A literatura de uma geração só se constrói com alguma uniformidade, marcando a História de sua cultura, com a troca entre seus autores, e, paradoxalmente, com a solidão desses mesmos autores, pois não concebo escritores que não leem, e que não cultivam a solidão e o silêncio. Então, e sou um entusiasta desta ideia: as redes sociais proporcionaram uma troca que cessara, o espiar pelas frestas do mundo e ver que havia – e há - gente boa, excelente mesmo, escrevendo, e, não menos importante, críticos escrevendo, pensando, resenhando, ambos rompendo o isolamento a que haviam sido condenados, tanto pela grande imprensa quanto pelas... grandes editores.

E essa gente, veja que maravilha! Aos poucos se organizou numa imprensa paralela (não uso alternativa propositalmente, não se cuida de alternatividade, que passa uma ideia de secundário) e, tão importante quanto, em editoras que encontraram seu nicho, seus leitores e seus escritores, os quais lindamente, sim, lindamente se confundem, e não tenho a menor dúvida que , afortunadamente, se forma uma nova e possante geração de leitores e escritores.

Vejo surgir hoje, no Brasil e em Portugal, uma nova geração de editores/poetas, que percebeu a força que tem o leitor de poesia, editoras com a Patuá, Texto-Território, Mondrongo, Chiado e tantas outras que me penitencio por não citar. São esses editores que serão lembrados no futuro pelo ressurgimento de uma novíssima poesia lusofônica, como o são os acima citados. E vejam que dulcíssima ironia, são esses editores que vêm sendo objeto de reportagens na... grande imprensa, como responsáveis pela recuperação do... mercado editorial (desculpem, vou gargalhar um pouco lá fora).

Todavia, isso tudo é muito novo, mas é uma esperança de que o poeta brasileiro deixe de ser, mais do que um “militante”, um quixotesco membro de um tragicômico exército de Brancaleone.

Artur Gomes - Que pergunta não fiz que você gostaria de responder?

Lúcio Autran - Sou, como gostava Nelson Rodrigues, mais do que minhas orteguianas circunstâncias, minhas obsessões, há temas recorrentes em mim, falei “en passant” de alguns deles acima, como a excessiva importância que temos dado ao autor (claro que ressalvo o objeto de estudo crítico, e aqueles cujas vidas estão umbilicalmente ligadas às suas vidas, como Artaud, Lima Barreto, Bispo do Rosário, entre outros), mas há um dado que tem sobressaído  nestes tempos de confinamento e de tão óbvio quanto absurdo destino de perigarmos cair num autoritarismo populista, infelizmente tônica do mundo contemporâneo: a importância e a força da Arte como forma de resistência.

Não, não me refiro à instrumentalização da Arte e do artista, de resto abominável, principalmente da arte popular, equívoco recorrente de colocar a Arte a serviço de alguma (boa ou má) causa, longe disso, mas de seu lugar na sociedade. E não que isso seja novidade, não é, mas é nesses momentos que salta aos olhos sua importância, aqui sim, “tribal”, no sentido de resgate do que é humano, demasiadamente humano, para ficarmos em Nietzsche.

Refiro-me aos mitos e ritos que nos alimentam a alma desde os hominídeos, nossa capacidade de abstrair para enfrentar nossos medos, nossos “daemons”, a começar pela Morte. Me irrita ler nos livros de história para adolescentes, e também alguns equivocados autores para adultos, a limitadora interpretação de que as pinturas rupestres eram instrumentalizadas para a caça, risível equívoco, ali estava um artista com suas questões estéticas internas e externas à pedra da caverna que lhe servia de suporte, um Michelangelo rupestre, forma de construção de uma cultura, forma de criação de uma identidade tribal pela qual valha a pena lutar. Se depois era instrumentalizadas, como aliás o foi também Michelangelo e outros artistas pela Igreja Católica, isso se deu numa etapa posterior, que não teve a menor importância no momento da criação.

Muito menos falo da arte dita “engajada”, pois esta se presta, na maior parte dos casos, apenas a converter os já convertidos, mas da arte que bule nos mais recônditos desvãos do Inconsciente, ameaça. Não é à toa que colonizadores, ditadores e autoritários em geral odeiam a Cultura, celebram a censura e terminam por assassinar artistas e poetas como Lorca, pois têm ódio a eles, e o tem por pânico, por dois motivos suplementares: o inapreensível do simbólico, sua polissemia, e a afirmação de sua impotência ante a cultura de um povo, um decorrente do outro. Uma cultura forte, a identidade de um povo, é um totem pelo qual lutar.

O controle da língua, sua destruição pelo colonizador guarda simbolismo incontornável. Foi assim com nossos índios, a destruição de sua espinha dorsal se deu também pela língua, com a adoção de uma “língua franca”, o Nheengatu, fenômeno também verificado na América pré-colombiana, com o que conhecemos por “Civilização Asteca”, na verdade uma “civilização zapoteca”, ou, mais precisamente, tezcocana” (recentemente escrevi um ensaio sobre isso, que está no blog). Sufocados pelos mexicas, militarmente subjugados e obrigados a ceder um acordo, qual cultura permaneceu no imaginário mundial? A mexica? Não, a Asteca... já ouviu uma história semelhante antes? Claro que já. Assim tem sido, desde a Grécia Antiga. Se Roma detinha o poder militar, o que sobreviveu e chegou a nós foi a cultura grega, base da civilização ocidental, aquilo que alguém definiu como “o vencido venceu o vencedor”.

E, bem próximo a nós, como parte integrante de nossa História e da história das américas, a permanência da cultura negra, bem mais forte e enraizada do que a silvícola. Aqui e ao norte do Equador a cultura negra deixou uma herança até hoje presente na música, no Jazz, na dança, na sociedade como um todo.

Compare a cultura pré-colombiana da América Central com nossos índios, e veremos quem melhor resistiu e quem mais agudamente permaneceu.

São, enfim, múltiplos os exemplos, e os dominadores – sejam eles colonizadores, tribos, caciques, reis, ditadores ou governos com tendências autoritárias – sabem disso, talvez, quem poderá afirmar? até inconscientemente disso, e tremem, numa fusão de medo e ódio, este decorrente daquele: como poetas e outros “inúteis” e sua “inútil” arte ousam desafiar o fero peso do ferro das armas? Tanto é verdade que a primeira coisa que faz um ditador é instituir uma severa censura à produção de seus artistas, muita vez aprisioná-los e, desejo recôndito, que deve habitar os sonhos de quadrilhas de milicianos, matá-los, como fez Franco a Lorca.

Inocente coincidência?

Obrigado pelo bate-papo.

FulinaímaMultiProjetos
portalfulinaima@gmail.com
(22)99815-1268 - whatsapp




2 comentários:

  1. Muito obrigado pelo papo e pela oportunidade de conhecer esse blog, o que, aliás, vai ao encontro do que disse: as novas formas de resistência e propagação cultural. Parabéns!

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  2. Excelente a digressão do poeta. Que venham tantas outras entrevistas

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