Conheci Ronaldo Junior, em Campos dos Goytaacazes, em 2018 quando participamos
da seleção e da Comissão Julgadora do XX
FestCampos de Poesia Falada, a
convite de Carol Poesia, a coordenadora do Festival naquele ano. Até hoje pensava que ele fosse meu
conterrâneo, mais um sobrevivente da tribo dos goytacazes que se torna poeta. Agora
descubro que é somente morado de Campos, desde os 9 anos, e é mais um carioca
da minha convivência poética.
Em 2019, nos encontramos mais uma
vez, voltando a coordenação do
FestCampos de Poesia Falada, dei-lhe a
tarefa de fazer uma fala com a poesia de Antonio Roberto Fernandes, tarefa muitíssimo
bem executada por sinal.
Ronaldo Junior - nasceu em março de 1996, é natural do Rio de
Janeiro–RJ e reside atualmente no município de Campos dos Goytacazes, interior
do estado do Rio de Janeiro.
Poeta, contista e cronista, é
Bacharel em Direito e licenciando em Letras – Português e Literaturas, além de
acadêmico da Academia Campista de Letras, da Academia Pedralva Letras e Artes e
de outras instituições culturais.
É autor do livro de poemas "O verso sou eu: Antologia de sentimentos", lançado
em março de 2016 pela Editora Multifoco (Rio de Janeiro-RJ). Atualmente,
escreve Instapoemas periódicos nas redes sociais com o projeto Estrofes de mim.
Artur
Gomes - Como se processa o seuestado de poesia?
Ronaldo Junior – Meu estado de poesia acaba sendo um estado de idealização, de utopia, de confronto com o próprio estado das coisas. O poema me vem, muitas vezes, por uma palavra ou expressão peculiar, pela contemplação de detalhes que nos passam despercebidos ou até por ser alcançado pela poesia do trabalho de alguém – o que pode me alcançar e gerar esse ímpeto criativo. Assim, esse estado de poesia acaba funcionando como um alimento, uma necessidade. Se não escrevo, sinto uma ausência, um vazio em mim.
Artur
Gomes - Seu poema preferido? Próprio. Ou de outro poeta de sua
admiração.
Ronaldo Junior – Difícil escolher apenas um. Meus textos preferidos – para ser muito sucinto – são aqueles que mais me vêm à mente quando escrevo, gerando uma espécie de referência para as minhas escolhas de palavras, sendo também os trabalhos que construíram minha visão poética do mundo. São: “Poética”, do Vinicius de Moraes; “Poética”, do Manuel Bandeira; e “Poema sujo”, do Ferreira Gullar.
Artur
Gomes - Qual o seu poeta de cabeceira?
Ronaldo
Junior – Atualmente, dois se posicionam bem próximos à minha cama:
Vinicius e Pessoa. Referências que sempre tenho à mão.
Artur
Gomes - Em seu instante de criação existe alguma pedra de toque,
algo que o impulsione para escrever?
Ronaldo
Junior – Gosto do som das palavras pouco usuais, mas não apenas
delas. Gosto de observar novas palavras a partir do som de outras quebradas ao
meio. A palavra, portanto, é a faísca que gera a ideia. Meu poema “Bistrô”, que pode ser encontrado na
internet – inclusive em vídeo -, foi imaginado a partir da simples observação
da palavra que intitula o texto, o que me levou a pesquisar sua história, seu
país de origem, e daí veio o texto.
BISTRÔ
Não se passava
a qualquer momento ali.
Aquela rua era
escura
como o negro véu
que
cobre
a madrugada aluada;
as casas eram
todas do
século passado,
com tijolos quebradiços
e uma penumbra de tinta
cobrindo algumas paredes
rachadas.
Aquela porta
de madeira amarga,
que protegia uma casa
humilde,
era aberta à tarde
por Alícia,
moça jovem
de olhos tristes.
Havia duas mesas
antiquadas
e
descombinadas
com banquetas quebradas.
As tardes de frio eram
inspiradoras,
mas a voz do vento
era a única que
se ouvia
tocando as nuvens
bastante
nubladas.
O
vazio
daquela rua
traduzia
o que as gotas
espelhadas
do céu
diziam
à moça
de lenço nas mãos
e chuva nos olhos.
Cantar era uma
paixão
bem
guardada no peito,
que irradiava nas
lágrimas
pelo
amor
distante.
Seus filhos
não mais
tinham pai.
Os olhos dela
brilhavam
a cada vez
que recebia
notícias de seu
amado;
as crianças frequentemente
cantavam a saudade em
perguntas
insaciáveis
de onde o pai estava.
Ele estava longe,
honrando a bandeira azul,
branca,
vermelha.
Estava sendo a
pátria
inteira.
Quando sol,
fazia escuro
naquela
rua
negra.
A cada semana,
a moça saía a
fazer compras
no outro bairro,
voltando com sacolas
de alguns ingredientes
para servir tira-gostos aos
clientes
escassos.
Todavia,
as compras ela fazia
às quartas-feiras,
não às
QUINTAS.
Por isso,
ao caminho,
encontrou
uma fachada
muralizada,
com alguns papéis rasgados,
que
diziam:
"GRAND SPECTACLE:
Mardi, Théâtre des Champs-Élysées"
mas os tempos eram outros,
e a guerra não
trazia
espetáculos,
porém,
como nunca vira,
naquela fachada,
uma porta
aberta
avistou:
vozes líricas
ouviu
como ouvia
pássaros a
cantar.
A moça Alícia entrou,
recatada,
bateu
palmas e,
quando se viu,
estava cercada
de mulheres observando-a,
vestidas sem
grande luxo,
mas
soberbas.
Um homem
sentado
se levantou
para ver quem
chegava.
Ela queria apenas
ouvir
o ensaio.
Indagou o
homem
o que
ela
queria
e ouviu um sussurro
doce de vergonha,
consentiu
a presença e silenciou
em sua cadeira cansada.
Não quis ela sair
de si mesma,
sensata,
conhecendo-se
como uma
qualquer,
como ninguém
a conhecia.
As vozes
encantavam
em seus timbres,
ilustrando
a melodia
do violino
que
extravasava
a arte poética
em suas cordas.
O balé ensaiava
cada passo
trazido por
cada peça
do
enredo
da ópera,
e Alícia
pensava consigo
o quão incrível
era a
arte,
emocionada,
com
a alma na mão,
sentimental.
Ao fim,
pôs-se a
sair
sem que
fosse
notada
e
foi
fazer as
compras para
semanar
na sala
de sua casa,
servindo
ao ínfimo
público
que,
às vezes,
aparecia.
Não muito longe,
as bombas
ilustravam
o cenário de caos,
e a
Militärverwaltung
in Frankreich
enegrecia
a França
numa nuvem
Nazista.
Então,
tragicamente,
a vontade
surgiu,
e Alícia voltou
ao ensaio
na quinta
seguinte,
quando
o homem
sentado
indagou
se ela
sabia
cantar.
Indo ao
centro da sala,
com postura imponente,
olhos
ao chão
e coração debulhado,
lançou sua alma
aos tímpanos
absortos
que se faziam
presentes.
Seu registro
era soprano,
sua magia,
o sentimento.
A saudade
era a melodia
que embalava
seu cântico,
e a guerra
era o caos
que trazia em
sua mente.
Alguns presentes
choraram ao
ouvi-la e
a
aplaudiram
como se
ali estivesse
uma cantora
mundialmente
famosa.
Alícia
segurou seu
coração,
baixou os
olhos
e andou
até o canto
de onde saíra,
ainda ouvindo
aplausos
contundentes,
logo
buscou a saída,
envergonhada,
para voltar à sua
residência,
mas o homem
a chamou
e quis
conversar:
ela era
fabulosa.
Mas como poderia
cantar
sabendo
onde
seu marido
estava e
que sofrendo
poderia estar?
A negra cruz gamada,
Svastika,
exalava o poder
medonho
dos alemães
em terras francesas,
mas o brilho
nas retinas
sofridas
da
moça
irradiava
sua insegura
paixão
pela arte.
Poderia cantar
e emocionar,
mas jamais
doaria sua alma
por completo:
ela estava
entrincheirada
a uma certa distância dali,
sendo bombardeada
noite
e dia.
Mas
o valor oferecido
gerava o desespero
de sua necessidade:
os negócios da
família não
se sustentavam.
Assim, nasceu a
Arte
Aliciana.
Todas as semanas,
comparecia
aos ensaios
e encantava
as almas que
se calavam para
ouvi-la.
As crianças se cuidavam
com a avó,
e os passos de Alícia
sumiam na multidão
dos artistas.
A apresentação
estava marcada:
mas Alícia não
se fazia
preparada,
pois ainda não
libertara
sua alma
taciturna
de seu peito
longínquo.
No camarim,
seu suor
manchava a
maquiagem
e suas cordas
vocais
quebravam as
barreiras
sonoras.
A noite era sua:
os brilhos,
os olhares,
os aplausos,
os sentimentos.
O
cabaré
a esperava em
furor.
Entrou em cena,
controlou o respirar
e se debulhou em
sensibilidade.
O público estava ali,
latentemente
vibrante,
como se apreciassem
uma obra de arte
erudita
tomar
magnificamente
sua forma.
Mas o vazio em seu peito
a fazia pobre
em
seu pensar.
Não poderia mais
cantar
daquele jeito.
O financiador
da noite não se conteve,
incisivo:
"Aquelas pessoas
haverão de retornar
para receberem a tua arte,
e tu tens de estar
conosco para oferecê-la.
Já
és uma
estrela!"
Todavia,
repentinamente,
Alícia,
tão moça,
tornou-se
uma
inconsolável
viúva.
Seus prantos eram
ainda
mais
frequentes,
e sua alma
tornara-se um vidro
estilhaçado,
lançando
cacos
aos
ouvidos
nus.
Não se ouvia
soprano
mais
melancólico.
Não havia corpo,
Jean morrera
numa
trincheira,
desfalecendo em
putrefata
solidão.
Havia alma.
Imortal
na absoluta
imensidão.
Alícia pisou
novamente no palco,
tudo era noite:
sem brilhos,
sem olhares,
sem aplausos,
tantos sentimentos.
Com os olhos
tempestuosos,
cantou um pássaro
como nunca antes
cantara,
pois sabia que,
ali,
seu amado estava
apreciando a
libertação da primavera;
um arrepio a
envolveu
como um abraço,
e ela
sentiu o amor
que se fazia vivo,
manifesto na arte
que
calava o silêncio
de cada peito,
e a fazia cantar,
mesmo
buscando
o silêncio
de seu
interminável
luar.
Artur
Gomes - Livro que considera definitivo em sua obra?
Ronaldo Junior – Até agora, tenho dois trabalhos publicados em livro e alguns projetos. Meu livro definitivo, até o momento, é “O verso sou eu – Antologia de sentimentos”, publicado pela Multifoco em 2016. Mas muitos outros, ainda guardados, representam melhor minha estética criativa atual, o que está sempre mudando.
Artur
Gomes - Além da poesia em verso já exercitou ou exercita outra
forma de linguagem com poesia?
Ronaldo
Junior – Sim. A poesia concreta – que eu prefiro chamar de “poesia visual” – é uma constante na
minha obra. Comecei fazendo poemas em formas e, hoje, com outros olhos, também
faço releituras de pinturas com poesia, recriando traços de quadros com
palavras. Esse projeto deu origem à exposição “Forma e Verso”, que já passou por diversos lugares de Campos-RJ
neste ano de 2020.
Artur
Gomes - Qual poema escreveu quando teve uma pedra no meio do
caminho¿
Ronaldo
Junior – Pensando que a nossa mais recente pedra no caminho é a
quebra abrupta da rotina causada pelo novo coronavírus
– o que nos traz a ambivalência de ter tempo livre para criar e, simultaneamente,
insegurança para enfrentar a realidade, pensando nas tantas pessoas afetadas -,
escrevi diversos poemas, ainda inéditos para algum projeto futuro, com
reflexões sobre essa vivência que evidencia as tantas disparidades e
contradições da nossa sociedade.
Artur
Gomes - Revisitando Quintana: você acha que depois dessa crise
virótica pandêmica, quem passará e quem passarinho?
Ronaldo
Junior – Passarão aqueles que levam a vida olhando apenas para si,
ignorando as múltiplas humanidades que nos cercam e o tanto de sofrimento que
tem tomado conta dos dias. Passarinho aqueles que enxergarem esse momento como
oportunidade para espalhar boas energias da maneira como podem, com
responsabilidade social, e, claro, cuidando de si e dos que vivem ao seu redor.
Ter em mente que se vive em sociedade e que sua atitude influencia na vida de
outras pessoas é fundamental, o que está muito distante de ser a nossa
realidade, uma vez que a crise virótica é motivo de polarização, posicionamento
político e ódio, o que afasta as pessoas das reais necessidades que o momento
exige.
Artur
Gomes - Escrevendo sobre o livro Pátria A(r)mada, o poeta e
jornalista Ademir Assunção, afirma
que cada poeta tem a sua tribo, de onde ele traz as suas referências. Você de
onde vem, qual é a sua tribo?
Ronaldo
Junior – Trago minhas referências do modernismo brasileiro. Da
ideia de absorver influências e quebrar padrões literariamente impostos. Sempre
escrevi em versos livres, geralmente brancos, quase nunca alinhados à margem,
certinhos. Gosto da poesia que inquieta na leitura, capaz de falar pela simples
forma como está posta no papel – ou na tela.
Artur
Gomes - Nos dias atuais o que é ser um poeta, militante de
poesia?
Ronaldo
Junior – É um tempo de posições extremadas, mas de demarcações
necessárias, pois a omissão pode ser uma das piores quedas. Acredito sempre na
poesia que possui alma, que traz a humanidade para o texto, pois isso é um
sinal de consciência social e de visão humanitária de mundo. Isso me faz pensar
que ser poeta é ter na palavra a sua posição, buscar a inquietação, se provocar
a todo tempo para criar algo sempre contrastante com o anteriormente criado,
mas, principalmente, ter consciência do seu lugar no mundo.
O artista deve ter
consciência de seu papel e do impacto que suas palavras geram para não acabar
caindo no vazio, na criação que não tem lastro social por simplesmente não
abarcar a realidade em que se insere – ou por abarcá-la de maneira alienada ou
tendenciosa.
Artur
Gomes - Que pergunta não fiz que você gostaria de responder?
Ronaldo
Junior – Seria bom refletirmos sobre a cena literária em Campos
dos Goytacazes. Não sou campista, mas, como habitante do
município desde os nove anos de idade – desde que me entendo por gente,
portanto -, sou um autor que conheceu seu estado de poesia aqui. Então, ver
autores que trazem a contemporaneidade campista para o texto e de que maneira
isso tudo influencia na forma como é lapidada a identidade das pessoas me
inquieta, afinal, não apenas a história literária daqui é grandiosa, mas o
presente é igualmente prolífico.
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