sexta-feira, 8 de maio de 2020

Karla Julia - EntreVistas



Conheci Karla Julia, já faz alguns anos, em Bento Gonçalves-RJ durante uma edição do Congresso Brasileiro de Poesia. Tinha acabado de falar alguns poemas na Fundação Casa das Artes, ela veio ao meu encontro, me cumprimentou e me disse: - "quero aprender a falar poesia como você". Combinamos um encontro no Rio, e logo depois passei a freqentar a sua casa para lhe dar algumas dicas sobre poesia falada. Dessa relação nasceu uma grande amizade que cultivo com imensa gratidão.

Karla Julia -  é advogada, escritora, professora, tradutora de Língua e Civilização Francesa. Membro Titular do PEN Clube do Brasil, da União Brasileira dos Escritores e da Associação das Jornalistas e Escritoras do Brasil.
Livros: “Alma Nua”. Rio de Janeiro: Editora Personal, 2012
“RECANTOS – dos versos íntimos”. Rio de Janeiro: Editora Parthenon, 2019.
Prêmio Melhor Livro de Poemas - UBE-RJ 2019 - Troféu Stella Leonardos Prêmio Melhor Livro de Poemas - TROFÉU POLEM - 2019


 Artur Gomes - Como se processa o seu estado de poesia?

Karla Julia - Como sempre cultivei o yoga e a meditação, o estado em que me sinto após essas práticas é comparável ao que preciso para escrever. É como se eu estivesse conectada com uma energia que vem de dentro e que transborda. Nessas horas, sinto uma intensidade que precisa ser extravasada como o abrir das comportas de uma represa. 

Horas em que me sinto profundamente ligada à essência das coisas, ao sagrado e a seus mistérios.

Além disso, a nostalgia, que faz parte de mim desde que me conheço por gente, também me direciona à poesia.E para concluir, este mundo insano, desprovido de justiça e humanidade me convoca para o ato político de ser poeta.

Artur Gomes - Seu poema preferido e de outro poeta de sua admiração?

Karla Julia - Nós poetas, somos de lua e temos fases. A cada fase de minha vida, amo e(ou) odeio certos poemas.  APENAS ECOS, que faz parte de meu último livro: “RECANTOS – dos versos íntimos”, me toca profundamente.

APENAS ECOS

Na cidade das ruas cinzas
de gente cinza
meu desejo se espraia
na praia de Copacabana.
O vento machuca a minha pele
incapacita-me
tento falar com alguém

- em vão -
não há ninguém à mão.
Apenas a mão boba
de um transeunte de pedra
estátua de um passado de pássaros.
Uma lágrima cai no calçadão
- silêncio -
Um dia, a cidade cantou nossa paixão
e a canção explodia
ecos vindos de um passado distante.
Barcos de pesca voltando
pessoas passeando
crianças brincando.
Tudo borbulhava de vida
hoje, a cidade em prantos
é cenário do desencanto.

- De outros poetas:

RIVAL
Sylvia Plath

Se a lua sorrisse, teria a sua cara.
Você também deixa a mesma impressão
De algo lindo, mas aniquilante.
Ambos são peritos em roubar a luz alheia.
Nela, a boca aberta se lamenta ao mundo; a sua sincera,
E na primeira chance faz tudo virar pedra.
Acordo num mausoléu; te vejo aqui,
Tamborilando na mesa de mármore, procurando cigarros,
Desconfiado como uma mulher, não tão nervoso assim,
E louco para dizer algo irrespondível.
A lua, também, humilha seus súditos,
Mas de dia ela é ridícula.
Suas reclamações, por outro lado,
Pousam na caixa do correio com regularidade encantadora,
Brancas e limpas, expansivas como monóxido de carbono.

Nem um dia se passa sem notícias suas,
Vadiando pela África, talvez, mas pensando em mim.

 Poética
Vinícius de Moraes

Rio de Janeiro, 1954

De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.

A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O este é meu norte.

Outros que contem
Passo por passo:
Eu morro ontem

Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
— Meu tempo é quando.

Nova York, 1950

Artur Gomes - Qual seu poeta de Cabeceira?

Karla Julia - Impossível escolher apenas um. Vou citar apenas alguns:
Jacques Prévert, Hilda Hilst, Vinícius de Moraes, Rimbaud, Florbela Espanca, Rainer Maria Rilke e Paulo Leminski.

Artur Gomes - Em seu instante de criação existe alguma pedra de toque, algo que o impulsione a escrever?

Karla Julia - Quanto maior minha angústia existencial, mais escrevo.

Artur Gomes - Além da poesia em verso já exercitou ou exercita outra forma de linguagem com poesia?

Karla Julia - Durante anos fiz ballet e estudei violão. Escrevo e pratico sobre outras formas de arte há tempos: literatura, pintura, cinema, a música. E em todas essas artes há poesia, por toda parte.   

Artur Gomes - Qual o poema que escreveu quando teve uma pedra no caminho?

Carta de Intenções
Horas me atrasam
ainda tenho tanto a fazer
que trocaria minhas orquídeas por dias de vida.
O dia se põe
enquanto ainda borbulham minhas intenções.
Quero o tempo presente com sua promessa de conjugação
Deixo para trás os assassinos de emoção.
Arrivistas.
Diplomados em desafetos.

Sigo meu caminho com a certeza
que meu anjo vela por mim
e com delicadeza, levo comigo o que foi seda.

Artur Gomes - Revisitando Quintana: você acha que depois dessa crise virótica, quem passará e quem passarinho?

Karla Julia - No meu poema, Um minuto de silêncio, falo dos “grávidos de sentimento, colecionadores de amigos e afetos”. Estes ficarão. Já os que “proclamam aos quatro ventos sua superioridade” (verso do poema Bomba-In, Karla Julia. RECANTOS – dos versos íntimos. 2019), esses vão passar, com certeza eles irão passar.

Um minuto de silêncio
Nesse mundo desencantado
tento me livrar do excesso de coisas inúteis
palavras ocas na boca de gente vazia 
coração de concreto armado.
Quero pessoas grávidas de sentimento,
sonhadoras, abertas a infinitas possibilidades
ébrios de amores
colecionadores de amigos e carinhos.
Nesse mundo onde "No princípio era o Verbo"
quero o silêncio da hora do beijo.

Artur Gomes - Escrevendo sobre o livro Pátria A(r)mada, o poeta e jornalista Ademir Assunção, afirma que cada poeta tem a sua tribo, de onde ele traz suas referências. Você de onde vem, qual é a sua tribo?

Karla Julia - Nasci em Bonsucesso, Rio de Janeiro. Contudo, minhas raízes estão nas areias do deserto do Oriente Médio, cuja descendência sírio libanesa, católica ortodoxa por parte de mãe e judaica, por parte de pai, carrego com orgulho. Minha escrita recende à mirra, incenso e muito sofrimento.

Minha tribo é a dos trovadores, escritores, cantores, músicos, educadores, historiadores.

Artur Gomes - Nos dias atuais o que é ser poeta, militante de poesia?

Karla Julia - Acho que o poeta é um ser atemporal. Tanto quanto no passado, ele tem sentimentos profundos e o decodifica para a linguagem dos deuses, anjos e demônios. Somos encantadores de serpente, mas também zeladores das dores do mundo.

Artur Gomes - Que pergunta que não fiz que você gostaria de responder?
Karla Julia - Você tem medo do quê?

Resposta - Que me tirem a voz.

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