segunda-feira, 25 de maio de 2020

André Merez - EntreVistas



Meu contato com André Merez aconteceu pelo fato de ter lido um comentário dele, num post que fiz, com uma indagação sobre "estado de poesia" . Desde que ouvi pela primeira vez essa belíssima e instigante canção do Chico César, que esse "estado" me faz pensar muitos outros estado de coisas atuais. Quando o projeto EntreVistas deixou de ser apenas uma bate papo com os meus amigos Jiddu Saldanha e Tchello d´Barros meu kino3, resolvi que "estado de poesia" seria a primeira pergunta a fazer aos poetas, artistas em geral, que se tornariam meus entrevistados. Como frisei anteriormente esse projeto tem me proporcionado muito de  aprendizagem,  pois me dá a cada uma das entrevistas a oportunidade de compreender como pode se dar de formas diversas esse "estado de poesia" em cada um de nós poetas ou artistas em geral.

Revista Indisciplinada - Poesia Avulsa
https://www.poesiaavulsa.com/



Artur Gomes - Como se processa o seu estado de poesia?

André Merez - Meu processo de criação, tanto na poesia quanto nas artes plásticas, se dá naquele espaço que imagino existir entre a razão e o sonho. Não consigo imaginar um poeta que opere apenas no campo do onírico. Razão e emoção talvez nem sejam tão opostas assim. Acho mais que elas se interpenetram e se complementam. Às vezes tudo parte de uma palavra que sobrou de um pensamento, às vezes de um som ao acaso e às vezes de uma imagem. Mas o trabalho com a palavra, depois de um impulso criativo inicial, é o de um construtor, de um operário mesmo. Sou favorável a dessacralização da criação  poética como um rompante magnífico que alguns poucos inspirados possuem. Acredito mais em um trabalho de transformar em estética algo que estava ali incomodando. O poeta é sempre alguém que está incomodado com o mundo e quer transformar o que ele percebe e sente em arte.

Artur Gomes - Seu poema preferido?

André Merez - Talvez falte um advérbio nessa pergunta, porque isso muda o tempo todo. Já houve um período da minha vida em que eu estava mergulhado nos modernistas brasileiros e portugueses. E então eu talvez pudesse dizer que o meu poema preferido naquela época era o "Vou-me embora pra Pasárgada” do Manuel Bandeira. Depois veio o Drummond com um poema que sempre me deixou preso a ele chamado "Parolagem da vida". Mas houve um período em que eu acreditei mesmo que o grande poema da minha vida era ‘O cão sem plumas" do João Cabral de Melo Neto. Mas isso também mudou.

Meu eu citaria este, não que não goste de outros

outro poeta

O poeta sempre é outro
não esse que se propõe.
Não essa fissura aberta
no intermeio do verso,
não esse suposto vago.

O poeta é outro, sempre outro.

À parte da teogonia de Hesíodo,
só essa camada de fibras e folhas,
só um ser assim sem as premissas,
o poeta não é esse suposto e visto.

O poeta é outro, sempre novo.

É sempre esboço, tem de ser,
sempre garatuja que se mostra,
busca que se deixa exposta,
desencontro, aniquilamento.

O poeta não é todo sentimento,
às vezes ele é régua e compasso,
às vezes é aço, ferro e cimento,
pátio vazio, concreto em branco.

O poeta é outro, sempre torto.

Viés de caminho, voz de dentro,
oblíquo, adunco, gauche, penso.
A dissidência, a vida mundo, vida
poesia nos pedaços desse tempo.

Artur Gomes - Qual o seu poeta de cabeceira?

André Merez - Atualmente é o Nicanor Parra. Fiz algumas traduções dele quando a editora 34 ainda não havia lançado uma antologia excelente chamada "Só para maiores de cem anos" com traduções muito boas de Joana Barossi e Cide Piquet. O que fica ao final é que a minha cabeceira é bastante diversificada. Passa muita gente por lá o tempo todo.

Artur Gomes - Em seu instante de criação existe alguma pedra de toque, algo que o impulsione para escrever?

André Merez - Como já me antecipei acima, o que me impulsiona para escrever é o incômodo. E no Brasil que estamos vivendo desde o golpe de 2016 o que não faltam são razões pra estar incomodado. Escrevi outro dia em uma rede social:

“Não subestimem a importância dos poetas, eles nunca foram tão necessários como neste momento”.

E isso se estende para os artistas de um modo geral. Trabalhar com a beleza e a sensibilidade é um ato de rebeldia em tempos tão incrivelmente violentos. A violência contida nas palavras vai se banalizando com esse processo de hiper-normalização que o governo atual promove e legitimiza. A poesia, entre outras muitas coisas, pode ajudar a desautorizar essa violência verbal que está em curso.   

Artur Gomes - Livro que considera definitivo em sua obra?

André Merez - Pra mim nada é definitivo. Tudo deve estar sempre em construção. Um verso após o outro, um poema após o outro, um livro após o outro, e assim vamos. Tenho um livro publicado pela Editora Patuá, o Vez do Inverso e mais dois inéditos aguardando o momento oportuno para publicação. De modo que estou longe de falar em algum livro definitivo na minha trajetória como poeta. 

Artur Gomes - Além da poesia em verso, já exercitou ou exercita outra forma de linguagem com poesia?

André Merez - O desenho e a pintura sempre estiveram na minha vida, paralelamente à poesia. Algumas vezes pessoas próximas ou amigos perguntam: - Ah, você abandonou a pintura, está escrevendo poesia! Ou vice-versa. Mas pra mim essas duas linguagens sempre tiveram a mesma força e a mesma importância nessa minha tentativa de transformar os tais incômodos em arte. Pinto e escrevo poemas em períodos diversos da minha vida e desde sempre. E suponho que continuará sendo assim também mais adiante.

Artur Gomes - Qual poema escreveu quando teve uma pedra no meio do caminho?

Escrevi poemas que depois joguei fora, quando tive uma pedra no meio do caminho. O poema do Drummond é em primeira pessoa e, apesar de saber que trata de um sentimento universalizante, pra mim ficou sempre a ideia do sofrimento pessoal do eu-lírico. Escrever poesia por tristeza ou melancolia, como também fizeram os poetas românticos no século XIX, é uma atividade muito egocêntrica para o meu gosto. Tudo o que produzi em períodos assim, considerei mau depois e joguei fora. Deletei. 

Tenho pensado muito que a tristeza  só se justifica melhor na poesia quando é proveniente de uma injustiça social. Causam-me profunda tristeza as notícias que recebemos sobre o que tem ocorrido com as populações indígenas ou com os quilombolas, ou ainda as mortes aos milhares que a pandemia e a irresponsabilidade do presidente do Brasil têm causado. Mas, fora a depressão que realmente é uma doença, não me interesso e não acho que se justifique a expressão da tristeza pessoal e amorosa na poesia. Mesmo que haja grandes poemas que tratam desse tema, não é algo que me interesse.

Artur Gomes - Revisitando Quintana: você acha que depois dessa crise virótica pandêmica, quem passará e quem passarinho?

André Merez - A crise parece ter ajudado a identificar e separar bem os passarinhos dos abutres, não? Não acredito que a crise pandêmica possa ensinar alguma coisa a quem já tenha a cabeça completamente tomada por ideais neofascistas. Vejo pessoas nas ruas arriscando suas vidas por ideais que não são coletivos, mas individuais. Essa extrema-direita que se construiu desde o golpe é composta em sua maioria por pessoas extremamente egoístas, racistas, homofóbicas, machistas e falso-moralistas. Isso pra dizer o mínimo. Quanto aos passarinhos, sempre existiram e sempre existirão. E espero que estejam vivos e com as asas boas para continuarem lutando por um mundo um pouco menos injusto para o coletivo. Entre esses passarinhos estão também os artistas, os poetas. 

Artur Gomes - Escrevendo sobre o livro Pátria A(r)mada, o poeta e jornalista Ademir Assunção, afirma que cada poeta tem a sua tribo, de onde ele traz as suas referências. Você de onde vem, qual é a sua tribo?

André Merez - A minha tribo é a mais diversificada possível. Talvez eu posso dizer mesmo que a tribo a que me sinto pertencente é formada por alguns poucos que saíram de suas tribos de origem. Agrada-me muito a ideia do não-pertencimento. Acho mesmo que, algumas vezes, a ideia de tribo é tristemente confundida com a ideia de confraria, o que me desagrada imensamente. Lamento que alguns grupos de poetas se fechem e não tenham olhos para enxergar os que estão chegando. E digo isto sem nenhum tipo de ressentimento. É mais como uma constatação necessária de se fazer. Algumas vezes tenho mesmo a impressão de que as tais tribos sejam algo como um sistema de defesa que tenta se justificar  pela ideia equivocada de uma seletividade feita por meio de critérios bastante duvidosos. Eu prefiro acreditar que o poeta é aquele que busca na própria poesia a sua realização como artista, não na aprovação deste ou daquele grupo autointitulado como o "oficial".

Artur Gomes - Nos dias atuais o que é ser um poeta, militante de poesia?

André Merez - Não sei se é mesmo possível falar em poesia como militância. Ser um poeta nos dias atuais talvez seja saber que falamos para uns poucos. Poucos mesmo. E tudo bem que seja desse jeito. Poesia é arte a longo prazo e sem nenhuma certeza de interlocução. Publicamos livros, editamos poesia nas redes e nas revistas de poesia e vamos construindo pontes sobre nuvens, tentando ligar uma nuvem a outra, tentando fazer existir no mundo alguma voz que destoe das vozes de sempre. O discurso poético não se dá apenas pela escrita de poesia e pela publicação de livros de poemas, mas se mistura às artes mais diversas. Essa é a matéria-prima da arte contemporânea, esse diálogo entre as linguagens. Fazer poesia pode ser com o corpo, com as formas, com as cores, com os sons e também (por que não?), com as palavras.

Artur Gomes -  Como editor da revista Poesia Avulsa, qual é a sua avaliação a respeito da importância desse tipo de publicação para a poesia? Como é feito o selecionamento dos poetas publicados?

André Merez - As revistas de poesia cumprem um papel de extrema importância para o registro  da produção poética contemporânea e para o resgate de poetas esquecidos no tempo. No que se refere à publicação de poetas estreantes, mesmo que haja uma curadoria cuidadosa, não se tem uma segurança total de que todos os poetas publicados se justificarão ao longo do tempo. Mas um poeta não pode ser avaliado por um poema, ou mesmo por apenas um livro publicado. A construção de uma obra poética é um trabalho para uma vida inteira. As revistas tentam enxergar adiante e arriscar a publicação daquilo que os editores consideram que possa ter continuidade, mas é um risco. Sempre é um risco. 

Um critério que tento estabelecer no selecionamento dos poetas publicados pela revista é muito simples e até que me parece justo. O que me pergunto depois de ler os textos enviados é: Estes poemas foram escritos por alguém que realmente vive a poesia no seu dia a dia ou é apenas um delírio lírico de alguém que, de repente, sentiu o impulso de escrever poemas?

Essa pergunta tem ajudado muito na hora de escolher o que publicar, e com o tempo fica mais fácil reconhecer essa diferença.  Por outro lado, não estabeleço critérios de “escolas de poesia” para decidir o que publicar. A revista não é uma confraria, ela é democrática e indisciplinada. E entenda-se esse "indisciplinada" como uma expressão do desejo de promover a diversidade das vozes. Publica-se na revista desde poetas do universo do SLAM, passando por repentistas e cordelistas, de resistência até poetas mais herméticos.





André Merez  - nasceu na capital paulista em 1973, iniciou como letrista e contrabaixista das bandas Cathedral e Siso Símio nas décadas de 80 e 90, cursou Letras e fez pós-graduação em Língua Portuguesa na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Na graduação realizou pesquisa sobre o discurso do poder na obra de Plínio Marcos e na pós defendeu tese sobre as relações entre o processo inferencial e as questões de interpretação de texto na verificação de aproveitamento de leitura. Leciona Teoria da Literatura e Gramática há mais de 15 anos e desenvolve pesquisas sobre música, artes plásticas e poesia. É autor do livro Vez do Inverso (Editora Patuá) 2017, editor da Revista POESIA AVULSA e já teve seus poemas publicados em diversas revistas de poesia no Brasil e em Portugal.



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