Meu
contato com André Merez aconteceu pelo fato de ter lido um comentário
dele, num post que fiz, com uma indagação sobre "estado de poesia"
. Desde que ouvi pela primeira vez essa belíssima e instigante canção do
Chico César, que esse "estado" me faz pensar muitos outros estado de
coisas atuais. Quando
o projeto EntreVistas deixou de ser apenas uma bate papo com os meus
amigos Jiddu Saldanha e Tchello d´Barros meu kino3, resolvi que "estado
de poesia" seria a primeira pergunta a fazer aos poetas,
artistas em geral, que se tornariam meus entrevistados. Como frisei
anteriormente esse projeto tem me proporcionado muito de aprendizagem, pois me dá a cada uma das entrevistas a
oportunidade de compreender como pode se dar de formas diversas esse "estado
de poesia" em cada um de nós poetas ou artistas em geral.
Revista Indisciplinada - Poesia Avulsa
https://www.poesiaavulsa.com/
Revista Indisciplinada - Poesia Avulsa
https://www.poesiaavulsa.com/
Artur
Gomes - Como se processa o seu estado de poesia?
André
Merez - Meu processo de criação, tanto na poesia quanto nas artes
plásticas, se dá naquele espaço que imagino existir entre a razão e o sonho.
Não consigo imaginar um poeta que opere apenas no campo do onírico. Razão e
emoção talvez nem sejam tão opostas assim. Acho mais que elas se interpenetram
e se complementam. Às vezes tudo parte de uma palavra que sobrou de um
pensamento, às vezes de um som ao acaso e às vezes de uma imagem. Mas o trabalho
com a palavra, depois de um impulso criativo inicial, é o de um construtor, de
um operário mesmo. Sou favorável a dessacralização da criação poética como um rompante magnífico que alguns
poucos inspirados possuem. Acredito mais em um trabalho de transformar em
estética algo que estava ali incomodando. O poeta é sempre alguém que está
incomodado com o mundo e quer transformar o que ele percebe e sente em arte.
Artur
Gomes - Seu poema preferido?
André
Merez - Talvez falte um advérbio nessa pergunta, porque isso muda
o tempo todo. Já houve um período da minha vida em que eu estava mergulhado nos
modernistas brasileiros e portugueses. E então eu talvez pudesse dizer que o
meu poema preferido naquela época era o "Vou-me
embora pra Pasárgada” do Manuel Bandeira.
Depois veio o Drummond com um poema que sempre me deixou preso a ele chamado "Parolagem da vida". Mas houve um período em que eu acreditei mesmo que o
grande poema da minha vida era ‘O cão
sem plumas" do João Cabral de
Melo Neto. Mas isso também mudou.
Meu eu citaria este, não que
não goste de outros
outro poeta
O poeta sempre é outro
não esse que se propõe.
Não essa fissura aberta
no intermeio do verso,
não esse suposto vago.
O poeta é outro, sempre outro.
À parte da teogonia de Hesíodo,
só essa camada de fibras e folhas,
só um ser assim sem as premissas,
o poeta não é esse suposto e visto.
O poeta é outro, sempre novo.
É sempre esboço, tem de ser,
sempre garatuja que se mostra,
busca que se deixa exposta,
desencontro, aniquilamento.
O poeta não é todo sentimento,
às vezes ele é régua e compasso,
às vezes é aço, ferro e cimento,
pátio vazio, concreto em branco.
O poeta é outro, sempre torto.
Viés de caminho, voz de dentro,
oblíquo, adunco, gauche, penso.
A dissidência, a vida mundo, vida
poesia nos pedaços desse tempo.
Artur
Gomes - Qual o seu poeta de cabeceira?
André
Merez - Atualmente é o Nicanor Parra. Fiz algumas traduções dele
quando a editora 34 ainda não havia lançado uma antologia excelente chamada "Só para maiores de cem anos" com
traduções muito boas de Joana Barossi e Cide Piquet. O que fica ao final é que
a minha cabeceira é bastante diversificada. Passa muita gente por lá o tempo
todo.
Artur
Gomes - Em seu instante de criação existe alguma pedra de toque,
algo que o impulsione para escrever?
André
Merez - Como já me antecipei acima, o que me impulsiona para
escrever é o incômodo. E no Brasil que estamos vivendo desde o golpe de 2016 o
que não faltam são razões pra estar incomodado. Escrevi outro dia em uma rede
social:
“Não
subestimem a importância dos poetas, eles nunca foram tão necessários como
neste momento”.
E isso se estende para os
artistas de um modo geral. Trabalhar com a beleza e a sensibilidade é um ato de
rebeldia em tempos tão incrivelmente violentos. A violência contida nas
palavras vai se banalizando com esse processo de hiper-normalização que o
governo atual promove e legitimiza. A poesia, entre outras muitas coisas, pode
ajudar a desautorizar essa violência verbal que está em curso.
Artur
Gomes - Livro que considera definitivo em sua obra?
André
Merez - Pra mim nada é definitivo. Tudo deve estar sempre em
construção. Um verso após o outro, um poema após o outro, um livro após o
outro, e assim vamos. Tenho um livro publicado pela Editora Patuá, o Vez do Inverso e mais dois inéditos aguardando
o momento oportuno para publicação. De modo que estou longe de falar em algum
livro definitivo na minha trajetória como poeta.
Artur
Gomes - Além da poesia em verso, já exercitou ou exercita outra
forma de linguagem com poesia?
André
Merez - O desenho e a pintura sempre estiveram na minha vida,
paralelamente à poesia. Algumas vezes pessoas próximas ou amigos perguntam: -
Ah, você abandonou a pintura, está escrevendo poesia! Ou vice-versa. Mas pra
mim essas duas linguagens sempre tiveram a mesma força e a mesma importância
nessa minha tentativa de transformar os tais incômodos em arte. Pinto e escrevo
poemas em períodos diversos da minha vida e desde sempre. E suponho que
continuará sendo assim também mais adiante.
Artur
Gomes - Qual poema escreveu quando teve uma pedra no meio do
caminho?
Escrevi poemas que depois
joguei fora, quando tive uma pedra no meio do caminho. O poema do Drummond é em
primeira pessoa e, apesar de saber que trata de um sentimento universalizante,
pra mim ficou sempre a ideia do sofrimento pessoal do eu-lírico. Escrever
poesia por tristeza ou melancolia, como também fizeram os poetas românticos no
século XIX, é uma atividade muito egocêntrica para o meu gosto. Tudo o que
produzi em períodos assim, considerei mau depois e joguei fora. Deletei.
Tenho
pensado muito que a tristeza só se
justifica melhor na poesia quando é proveniente de uma injustiça social.
Causam-me profunda tristeza as notícias que recebemos sobre o que tem ocorrido com
as populações indígenas ou com os quilombolas, ou ainda as mortes aos milhares
que a pandemia e a irresponsabilidade do presidente do Brasil têm causado. Mas,
fora a depressão que realmente é uma doença, não me interesso e não acho que se
justifique a expressão da tristeza pessoal e amorosa na poesia. Mesmo que haja
grandes poemas que tratam desse tema, não é algo que me interesse.
Artur
Gomes - Revisitando Quintana: você acha que depois dessa crise
virótica pandêmica, quem passará e quem passarinho?
André
Merez - A crise parece ter ajudado a identificar e separar bem os
passarinhos dos abutres, não? Não acredito que a crise pandêmica possa ensinar
alguma coisa a quem já tenha a cabeça completamente tomada por ideais
neofascistas. Vejo pessoas nas ruas arriscando suas vidas por ideais que não são
coletivos, mas individuais. Essa extrema-direita que se construiu desde o golpe
é composta em sua maioria por pessoas extremamente egoístas, racistas,
homofóbicas, machistas e falso-moralistas. Isso pra dizer o mínimo. Quanto aos
passarinhos, sempre existiram e sempre existirão. E espero que estejam vivos e
com as asas boas para continuarem lutando por um mundo um pouco menos injusto
para o coletivo. Entre esses passarinhos estão também os artistas, os
poetas.
Artur
Gomes - Escrevendo sobre o livro Pátria A(r)mada, o poeta e
jornalista Ademir Assunção, afirma
que cada poeta tem a sua tribo, de onde ele traz as suas referências. Você de
onde vem, qual é a sua tribo?
André
Merez - A minha tribo é a mais diversificada possível. Talvez eu
posso dizer mesmo que a tribo a que me sinto pertencente é formada por alguns
poucos que saíram de suas tribos de origem. Agrada-me muito a ideia do
não-pertencimento. Acho mesmo que, algumas vezes, a ideia de tribo é
tristemente confundida com a ideia de confraria, o que me desagrada
imensamente. Lamento que alguns grupos de poetas se fechem e não tenham olhos
para enxergar os que estão chegando. E digo isto sem nenhum tipo de
ressentimento. É mais como uma constatação necessária de se fazer. Algumas
vezes tenho mesmo a impressão de que as tais tribos sejam algo como um sistema
de defesa que tenta se justificar pela
ideia equivocada de uma seletividade feita por meio de critérios bastante
duvidosos. Eu prefiro acreditar que o poeta é aquele que busca na própria
poesia a sua realização como artista, não na aprovação deste ou daquele grupo
autointitulado como o "oficial".
Artur
Gomes - Nos dias atuais o que é ser um poeta, militante de
poesia?
André
Merez - Não sei se é mesmo possível falar em poesia como
militância. Ser um poeta nos dias atuais talvez seja saber que falamos para uns
poucos. Poucos mesmo. E tudo bem que seja desse jeito. Poesia é arte a longo
prazo e sem nenhuma certeza de interlocução. Publicamos livros, editamos poesia
nas redes e nas revistas de poesia e vamos construindo pontes sobre nuvens,
tentando ligar uma nuvem a outra, tentando fazer existir no mundo alguma voz
que destoe das vozes de sempre. O discurso poético não se dá apenas pela
escrita de poesia e pela publicação de livros de poemas, mas se mistura às
artes mais diversas. Essa é a matéria-prima da arte contemporânea, esse diálogo
entre as linguagens. Fazer poesia pode ser com o corpo, com as formas, com as
cores, com os sons e também (por que não?), com as palavras.
Artur
Gomes - Como editor da
revista Poesia Avulsa, qual é a sua avaliação a respeito da importância desse
tipo de publicação para a poesia? Como é feito o selecionamento dos poetas
publicados?
André Merez - As revistas de poesia cumprem um papel de extrema
importância para o registro da produção
poética contemporânea e para o resgate de poetas esquecidos no tempo. No que se
refere à publicação de poetas estreantes, mesmo que haja uma curadoria
cuidadosa, não se tem uma segurança total de que todos os poetas publicados se
justificarão ao longo do tempo. Mas um poeta não pode ser avaliado por um
poema, ou mesmo por apenas um livro publicado. A construção de uma obra poética
é um trabalho para uma vida inteira. As revistas tentam enxergar adiante e
arriscar a publicação daquilo que os editores consideram que possa ter
continuidade, mas é um risco. Sempre é um risco.
Um critério que tento
estabelecer no selecionamento dos poetas publicados pela revista é muito
simples e até que me parece justo. O que me pergunto depois de ler os textos enviados
é: Estes poemas foram escritos por alguém que realmente vive a poesia no seu
dia a dia ou é apenas um delírio lírico de alguém que, de repente, sentiu o
impulso de escrever poemas?
Essa pergunta tem ajudado muito
na hora de escolher o que publicar, e com o tempo fica mais fácil reconhecer
essa diferença. Por outro lado, não
estabeleço critérios de “escolas de
poesia” para decidir o que publicar. A revista não é uma confraria, ela é
democrática e indisciplinada. E entenda-se esse "indisciplinada" como uma expressão do desejo de promover
a diversidade das vozes. Publica-se na revista desde poetas do universo do
SLAM, passando por repentistas e cordelistas, de resistência até poetas mais
herméticos.
André Merez - nasceu na capital paulista em 1973, iniciou como letrista e contrabaixista das bandas Cathedral e Siso Símio nas décadas de 80 e 90, cursou Letras e fez pós-graduação em Língua Portuguesa na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Na graduação realizou pesquisa sobre o discurso do poder na obra de Plínio Marcos e na pós defendeu tese sobre as relações entre o processo inferencial e as questões de interpretação de texto na verificação de aproveitamento de leitura. Leciona Teoria da Literatura e Gramática há mais de 15 anos e desenvolve pesquisas sobre música, artes plásticas e poesia. É autor do livro Vez do Inverso (Editora Patuá) 2017, editor da Revista POESIA AVULSA e já teve seus poemas publicados em diversas revistas de poesia no Brasil e em Portugal.
André Merez - nasceu na capital paulista em 1973, iniciou como letrista e contrabaixista das bandas Cathedral e Siso Símio nas décadas de 80 e 90, cursou Letras e fez pós-graduação em Língua Portuguesa na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Na graduação realizou pesquisa sobre o discurso do poder na obra de Plínio Marcos e na pós defendeu tese sobre as relações entre o processo inferencial e as questões de interpretação de texto na verificação de aproveitamento de leitura. Leciona Teoria da Literatura e Gramática há mais de 15 anos e desenvolve pesquisas sobre música, artes plásticas e poesia. É autor do livro Vez do Inverso (Editora Patuá) 2017, editor da Revista POESIA AVULSA e já teve seus poemas publicados em diversas revistas de poesia no Brasil e em Portugal.
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