quarta-feira, 20 de maio de 2020

Igor Fagundes - EntreVistas



Fui apresentado ao Igor Fagundes por Artur Gomes, em Campos dos Goytacazes, numa das edições do FestCampos de Poesia Falada. Algum tempo depois, em 2010, o encontrei no Parque das Ruínas, em Santa Teresa, Rio de Janeiro, num domingo de Rock e Poesia. Ali, conheci um pouco da sua poética, assistindo a sua performance, num diálogo com Artur Gomes, sendo filmado por Jiddu Saldanha. Acompanho sua trajetória desde então. 

Tanto Poética na Incorporação (ensaio), quanto Pensamento Dança, (poesia), seus dois livros, aos quais  tenho acesso, ainda me provocam indagações, a respeito do ser poeta ator professor doutor dramaturgo, e estar livre leve  solto  entre a universidade, e o terreiro, o sagrado o profano a academia a malandragem.  

Sua poética é um ritual corpóreo, atravessa  mares ventos tempestades calmarias no toque dos tambores, na transcendência da orgia, que pode ter na incorporação,  deuses gregos  e afros, ou,  as entidades sagradas da literatura brasileira e universal.  Desde que li o seu texto para prefácio do livro O Poeta  Enquanto Coisa, de Artur Gomes, que o meu desejo era entrevistá-lo, para compreender um pouco mais desse fogo que o  leva a se desdobrar em tantos.  

IGOR FAGUNDES - Carioca, poeta, ensaísta, aprendiz de macumba, ator,  jornalista e professor de Filosofia e Estética no Departamento de Arte Corporal da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde é coordenador do Bacharelado em Teoria da Dança e docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Dança. Doutor em Poética pela UFRJ. Membro do PEN Clube do Brasil. Autor de nove livros (cinco de poesia e quatro de ensaio, crítica, filosofia), coautor de mais de trinta e organizador de seis obras. Possui cerca de 60 premiações em concursos literários (dentre os quais o Prêmio Afrânio Coutinho de Ensaio/Crítica da União Brasileira dos Escritores para Poética na incorporação, em 2017, e o Prêmio Cidade de Manaus para Os poetas estão vivos – pensamento poético e poesia brasileira no século XXI, em 2007), além de premiações no campo das Artes Cênicas, quando, além de figurar como ator, produziu, dirigiu e escreveu peças de teatro.

UMA DEDICATÓRIA, COM LICENÇA

Dedico a entrevista ao grande poeta e amigo Marcus Vinicius Quiroga, que conheci há 20 anos e está de partida, vítima de COVID-19, para o céu de todos os poemas, nesta madrugada em que respondo às perguntas: “um verme talvez à noite já devore / a folha, os escritos, a foto esmaecida / (...) / um verme lá no sótão às escuras / elabora uma carta, um óbito, um despejo” (Marcus Vinicius Quiroga, “Nota bibliográfica”, Campo de trigo maduro).


Federico Baudelaire - Igor, o que é para você poética da incorporação quando, depois, escreve um livro dizendo que o pensamento dança?

Igor Fagundes - Laroiê, Frederico Baudelaire e todas as falanges que dançam no teu e no meu corpo! Todas as avalanches de vida-morte que a palavra incorpora! Há uma sutileza preposicional no título de meu sétimo livro solo, que – a propósito – demorou sete anos para ser escrito, isto é, para ser apanhado no abismo do rio, segundo a convocação de uma criança encantada d’Oxum, bem chamada Lagriminha de Ouro: Poética na incorporação, em vez de Poética da incorporação. Em “poética da incorporação”, o incorporar parece objeto de algum pensar poético que eventualmente se lhe empreste, se lhe aplique e ora o fundamente. Por esse caminho, a incorporação se sugere apenas extraordinariamente, excepcionalmente, prenhe de poesia e pensamento. 

Uma poética na incorporação evoca, em contrapartida, certa travessia por dentro de um pensar poético já intrínseco ao incorporar, cuja dinâmica ordinária é paradoxalmente extraordinária, sempre excepcional.

Trata-se não só de evitar uma separação entre corpo
e pensamento, mas também de não supor a poesia como um fenômeno fora do real, do físico, da physis, uma vez que o grego poiesis designa o agir pró-criativo da vida como tal, aqui mesmo, agora, na concretude de seu verter e vertigem. O poeta (o artista) compreende aquele ser humano que presta atenção ao acontecer da poesia na vida (que é também o acontecer da vida na poesia), de maneira que dele se ocupe, no sentido de deixá-lo crescer e aparecer mais e mais em seu corpo, em sua palavra.

A poesia não é, contudo, um fundamento ou substância que à vida e ao corpo se antecipe, mas propriamente seu sem-fundo fundante, o verbo abissal em que vida-corpo perdura (des)aparecendo. O poeta alemão Hölderlin assinala: “poeticamente o homem habita esta terra...”. E reitero: “poeticamente o homem habita este corpo...”.

O brasileiro Fernando Mendes Vianna traz, em “Oratório do corpo”, tal apelo:

“Acredita no teu corpo! / O corpo é sábio / É da terra e para a terra / Por isso é sábio / (...) / pois pensa de acordo com as raízes que te irmanam à Criação”.

Se, no livro Poética na incorporação, aparentemente refiro-me apenas à dimensão mediúnica e/ou espiritual do incorporar (a incorporação como mediação entre dois
mundos preexistentes), a viagem afunda e se funda na dimensão espirituosa da incorporação agora-aqui, como nossa imediação originária. Nela, terra e mundo, húmus e humanidade se dobram e se desdobram finita e infinitamente por entre cosmo e caos, sentido e silêncio, estar e ser, ser e não ser.

Terra-mundo (em uma palavra: terreiro) passa a designar um espaço-tempo não estritamente religioso, porque nome para qualquer lugar que deixe de ser um lugar qualquer. Corpo é terreiro. Rua é terreiro. Esquina é terreiro. Casa é terreiro. Palco é terreiro. Sala-de-aula é terreiro. Livro é terreiro. O site (o sítio!) é terreiro. A entre-vista é terreiro. Nesse entre terra e mundo, o pensamento dança, quer dizer, o terreiro dança, é corpo, palavra, corpo-palavra. 


No livro pensamento dança, cujo prefácio é do querido Marcus Vinicius Quiroga,vocábulo “dança” é tanto substantivo quanto verbo. No primeiro caso, trata-se da dança como um modo próprio e poético de pensamento. Não no sentido de que a dança porventura contenha um pensar, mas no sentido de que dançar já é o pensar. No segundo caso, “dança” é um gesto do pensamento, mesmo que o corpo pareça fora do estado de dança. Em momento nenhum, o pensamento deixa de ser corpo ou o corpo se põe à parte do pensamento. Consequentemente, no que a força do hábito denomina “dança”, o corpo se torna palavra, enquanto no habitualmente considerado poema, a palavra é corpo. Poética na incorporação é a pronúncia desta palavra incorporada e, portanto, de uma dança nela e com ela. As palavras me dançam. Não são só palavras os nomes, os vocábulos, as vozes, mas os sons e imagens sem sujeito, jogados pelo silêncio, pela sombra, à sombra e ao silêncio, seja do tempo da memória, seja de um tempo imemorial. Música. Ritmo. Tempo. Tambor é palavra e palavra é tambor.  O atabaque é corpo que dança com o corpo dos nomes e com o sem-nome dos corpos.

Escrevo-penso como quem dança. Como quem canta e chama a poesia da terra a ser-no-mundo, mas só quando ela, primeiro, faz o chamado. Com frequência, escuto-a, mas – desligado, despreparado – faço ouvido mouco e perco o ouro de alguma lágrima.

 O teaser do livro pensamento dança, criado em parceira com o amigo artista Julius Mack,

Federico Baudelaire - Como se processa o seu estado de poesia?

Igor Fagundes - Um canto de Marina Lima fecunda-me a palavra uterina: “Eu tô grávida / Grávida de um beija-flor / Grávida de terra / E de um liquidificador / E vou parir / Sobre a cidade / Um terremoto, uma bomba, uma cor / (...) / Estou grávida de chão / (...) / De uma nota musical / De um automóvel / (...) / E vou parir / Uma montanha, um cordão umbilical / (...) Quando a noite contrair / E quando o sol dilatar”.  

Não posso saber o que é ser mulher, mãe, mas a poesia me fertiliza para um devir-fêmea e me engravida. Posso, todavia, ser seu macho e, em última instância, seu filho com gênero não binário. No erotizado filho-e-mãe, pratico o incesto e sou perdoado, porque a poesia não parte de evangelhos (embora o inverso valha). E, lasciva, adúltera, permanece – à revelia – uma virgem recatada. Desse modo, nunca sei se sou eu o grávido ou se é ela, a grávida de mim. Arrebento, sou rebento e, ao mesmo tempo, o corpo arrebentado em prazo não estipulável: nove meses, sete anos, um minuto.

Guimarães Rosa, em entrevista, respondeu: “Eu choco as palavras”. Alberto Caeiro, um dos partos sofridos por Fernando Pessoa, acrescenta: “Sou um guardador de rebanhos”. O poeta brasileiro Antonio Cicero também guarda este “Guardar”: “Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la / Em um cofre não se guarda coisa alguma / Em um cofre perde-se a coisa à
vista”.  

Guardar tem que ver com gestar, chocar, cuidar, velar, desvelar, incorporar, no sentido de também liberar, expor, deixar-ser. Guardar, portanto, é proteger, zelar pelos rebanhos de um “pensamento que é todo sensações”, que é corpo. Guardar é proteger, mas não superproteger, com afagos deliberados e exagerados. O bom guardar consiste
em cuidar para que isso que é guardado seja ou venha a ser justo isso que é. Cuidar para que o guardado seja o que precisa ser: sem derramamento, mas também sem retenção.

Cuidado e zelo para com a necessidade. Assim, guardar é largar cuidadosamente, é zelosamente abandonar... Essa, a aprendizagem de mãe e filho. Até porque isto que se quer guardar-liberar é uma presença que imediatamente escapa. Só se incorpora, só se guarda, só se gesta e só se dá à luz o traço do que já não mais existe e aparece como rastro.

O poeta não captura: é, pelo escape, capturado. Pelo escuro, iluminado. Pela síncope, acordado. O vigor poético se entende desde o acontecer de um (des)aparecer. O aparecer como tal não pode ser presente como algo. Por outro lado, mostra-se quando alguma coisa, algum corpo,  já se deu. Isso quer dizer que o acontecer se mostra ao desaparecer numa presença. Nessa (i)mediação de ausência e presença, o poema propriamente expõe a escuridão luminosa do poético. Aquilo que, no fim da canção “Estado de poesia”, de Chico César, “não fica nem vai embora”.

Federico Baudelaire - Seu poema preferido?

Igor Fagundes - O pré-ferido? O pré-dileto? Sou previamente ferido por todos os poemas, querido por cada um deles, para os querer e para poder escrevê-los. Isso vale para o poema do outro que me (a)parece próprio e para aquele que denomino “meu”,  a qual é sempre outro, de um outro que – em mim – o lê e o relê. Feri a palavra, abri o verbo, quando antecipadamente aberto, ferido, interferido. Em tal interferência, torno-me diferido e diferente. A diferença, como tal, não é melhor nem pior, mas tão-só uma possibilidade de ser que, em dado momento, decidiu que eu fosse o seu lugar de consumação.

Agradeço. Escrever é sempre o agradecimento por ter sido preferido como casa desta ou daquela possibilidade criativa. Em respeito a todos os poemas que tentaram, em mim, guardar o poder-ser que jamais se esgota, nem se captura, prefiro – em cada rastro – o porvir: o ainda não escrito no já lido, o ainda não lido no já escrito, o ainda não lido no
ainda não escrito. O poeta Francisco Bosco escreve: “o poeta é um gago”. Não desprezo nenhum texto publicado, porque a poesia jamais desprezou minha gagueira. Pelo contrário, creio que ela prefere um “galo gago”, para lembrar o livro do poeta Antonio Carlos Secchin, destinada à criança e à diferença que mora na gente. Aceito não chamar as manhãs com o melhor dos cacarejos. Aceito não alcançar a frase mais limpa e o verso perfeito. Este é o vaticínio: ficar inteiro na incompletude, lavar-me na sujeira do dito e do dizível. Dar preferência ao não dito, sabendo que o indizível é um nome que podemos dizer.

Federico Baudelaire -  Qual o seu poeta de cabeceira?

Igor Fagundes -  Poeta de cabeceira...? Santo de cabeça...? Respondo Guimarães Rosa como santo de cabeceira ou Ogum como poeta de cabeça? Em qual poeta ou poetisa, a Mãe Oxum me entrega seu espelho? Em qual espelho ficou perdida minha face? Em qual estante, ficou perdida a minha vida? Na mesa de cabeceira, uma pilha de livros é o livro nenhum que espero descobrir, mas me descobre e me cobre enquanto durmo. Na cabeceira vazia, um poeta é  “a sombra vaga de alguma interminável música”. Vovó Catarina de Angola é, “como os poetas que já cantaram / e ninguém mais escuta”, um poema cujo espectro sempre me dá a consulta. Preta-velha corcunda em sua alta-ajuda: a que não promete nenhum manual de auto-ajuda. 

Na cabeceira, tenho anjo da guarda, Exu, Diadorim, Riobaldo, Fausto, Mefistófeles, a Indesejada das Gentes. Na cabeceira, “o que não havia/ acontecia”. E tem Dona Capitu deitada com seus dois maridos nada casmurros: Zé Pelintra e Zé Pretinho. Cabeceira é terreiro. Lugar em que bato-cabeça. Percorro os salmos do Grande Sertão como quem cai, ao revés, em tentação. No pecado de fumar os dogmas, tragar as cartilhas, largo doutrinas num cinzeiro invisível. Não sou afeito a cigarros e a álcool (só se for álcool gel 70, para as mãos, em tempos de pandemia).

Todavia, entrego todas as noites uma cachaça à cabeceira, em oferenda ao Fernando que epidemicamente deixa ali  sua Pessoa.

Federico Baudelaire -  Em seu instante de criação existe alguma pedra de toque, algo que o impulsione para escrever?

Igor Fagundes  -  Mich reitet auf einmal der Teufel (De repente o diabo me cavalga). A questão do diabo se impõe quando, no meio do caminho, tem uma pedra e, com ela, a rascante pergunta: O que fazer? Na condição de algo que advém sem que eu tenha deliberado; algo que, então, adverso, adversário, me põe a interrogar o sentido do agir, a pedra é o diabo como o jogo e o fogo do diálogo, da não indiferença ao outro. Decidir não decidir, decidir não acolher a pedra já é uma decisão. Se a liberdade é nosso destino, não estamos livres para não ser livres, para não escolher. O adversário (em hebraico, satã) é nosso “entre-tanto”, o “toda-via” com o qual jogamos e no qual somos jogados (dia-ballein, em grego; dia-bolus, em latim, diz o entre-jogar-se ou entre-lançar-se do humano ao ser-no-mundo). Em um jogo, o adversário não é inimigo (o mal...), mas aquele que permite o próprio jogar. Bom é não cometer a falta com a pedra, não desrespeitar o que se põe no meio do caminho e nos chama ao drible, à finta, à dança, à brecha, à fresta, à criatividade como única e possível transcendência. Encarar o tempo como inimigo, por exemplo, é já começar perdendo; sequer dar uma chance ao jogo.
Tornar o tempo aliado é nosso chamado para viver, morrendo; para morrer, vivendo.
Para crescer no ad-verso e, assim, em con-versa, fazermo-nos di-versos enquanto trans-versos. O jogo de palavra diz: o tempo está sempre no meio do caminho. Todo caminho é no meio do tempo. Escrevo a partir de alguma questão que pega fogo e me roga o jogo. O tempo é uma pedra. No atritar, produzo calor, descubro o ígneo. Posso, ao contrário, ser tocado de frieza. E, fria ou calorosamente, lançá-la, atirá-la em alguém. Machucar. Inclusive, posso ser acertado, ser machucado por ela. Tropeçar. Mirar uma pedrinha e achá-la mais admirável que a Cordilheira dos Andes. De repente, brincar com a grandeza do miúdo. Brigar com um problema supostamente enorme e, ao fim, miudinho. Quem sabe, usar a pedra para fazer chão, erguer a casa, tirar leite. Na sabedoria alquímica, uma pedra nas mãos vira ouro. O que parece dor, castigo, se transfigura em presente e oportunidade. 

Não raro, o precioso, o valioso, o ouro da pedra é justamente tropeçar, queimar-me nela e descobrir-me gente, frágil, mortal. Mas, como nem sempre vejo caminho no meio de uma pedra, com frequência passo por ela e desperdiço sua força. Mas há pedras que são sombra e não há como pulá-la. Aonde vou, dá o ar de sua graça. Por isso, num pedregulho de Hölderlin está escrito: “o que permanece, fundam-no os poetas”. 

A pedra pode ser espelho: de mim, não posso escapar, mesmo que seja duro mastigar-me. Escrevo não para me ver livre da pedra, me salvar dela, me salvar do perigo e de mim. Mas para salvar-me no perigo, salvar-me na pedra. Ser livre na pedra, sendo pedra. A cabralina, a miudinha de Aruanda, a drummondiana, a filosofal, a igoriana: a que, sob rigor de ourives (e não descarto ouro de lata), vem com vestido de vento, raio rasgando, mar em murmúrio, redemoinho redescobrindo-se rendez-vous de faces e fomes. A pedra pode ser apenas uma rima rica e soante com tudo o que medra. Ou uma rima toante no rumo do poeta. A pedra: um presidente mais infeccioso que a doença, mais bruto que o próprio pedregoso. A doença capaz de poema. Em suma, a máquina do ódio a desafiar o amor. O amar em consistência mineral, a arranhar – cheio de dor e dó – a garganta do ódio. Até a Paz de um Octavio dizer: “O pesado é leve”. Uma pedra furou a flor. É feia. Mas é uma pedra. Furou a corola, o pólen, o perfume, os jardins da República e o Planalto da História.

Federico Baudelaire -  Livro que considera definitivo em sua obra?

Igor Fagundes - Poética na incorporação. Ele é, ao mesmo tempo, um divisor de águas e um multiplicador. Nasceu de um chamado no terreiro, mas não de fora para dentro. Porque o terreiro – como o sertão – é “do tamanho do mundo”, é “o em toda parte”, é “o sem margens” e é “o dentro da gente”. De dentro para dentro (tudo-é-dentro), o terreiro chamou o livro de mim ou em mim a ser: livre. Nada mais esperado e inesperado no sertão do que um filete d’água nascendo. 

Poética na incorporação foi um rio, um rio da Mãe Oxum se dando de presente, concedendo a minha presença: não para matar a sede, mas para mostrar uma sede que não cessa de mostrar-se fonte. Mãe Oxum pediu que eu me apropriasse do que me é próprio, do meu caldeirão, minha teia, trama, rede, enredo, estória. Da minha encruzilhada de arte, ciência, religião, movido na força centrípeta e centrífuga, concêntrica e excêntrica da poesia. O livro é uma experiência física, originária, do sagrado. Nem teológica, nem antropológica, mas ontológica, mitopoética. Como foi também, ao mesmo tempo, minha pesquisa de doutorado para além do epistemológico, para além da busca por – digamos – um título acadêmico. Para tal, não bastava conhecer. Era preciso ser o que se conhece, ser o que se desconhece. No resguardo do desconhecido como desconhecido, na sintonização com o enigma sem a presunção de decifrá-lo, o livro é a obra mais difícil que escrevi (e imagino, também, a dificuldade de lê-lo). Marcus Vinicius Quiroga o chamou de “arrebatamento”. 

Penso-o como um grande, turbinado e perturbado poema em prosa, uma prosa porosa, musical e filosófica, que tenta resistir à tradição ocidental da filosofia como máquina conceitual e colonial. Mãe Oxum pediu que eu atentasse para feixes de água que, em minha vida, pareciam paralelos, mas que eram confluentes (o adverso se fazendo transverso, conversa e diverso, isto é, perfazendo o a diferença como o acontecimento poético). Eu, na encruza e como a encruza das águas. Todas as artes na foz da Arte de ser. Teatro, literatura, música. Poesia e filosofia. Tudo-um. Tese de doutorado, oferenda ao orixá: o mesmo. O ensaístico junto ao épico/narrativo e, ainda, junto ao dramático/dramatúrgico.

Nenhum sumário, propriamente, nem capítulos, apenas batuques, versos e pontos cantados em cada parte do labirinto. O biográfico junto ao ficcional, sem que nada escape à verdade. A Paixão segundo G.H vira uma espécie, talvez, de Paixão segundo Igor Fagundes: “Terei de criar sobre a vida. E sem mentir. Criar, sim. Mentir, não”, correndo o “grande risco de se ter a realidade”. 

Sertão-rio-mar. Três imagens e uma. A Ilha do Fundão, no sem fundo disso, cercada de água por todos os lados, incorpora a maresia da baía: universidade-terreiro! Na UFRJ, onde me doutorei, a Baía da Guanabara gira e se desloca para outras bandas: é Baía de Todos os Santos. A obra sertaneja do poeta alagoano-baiano José Inácio Vieira de Melo aparece como arauto desta minha umbanda, encruzando-a com a obra hídrica e híbrida (católico-candomblecista) de Maria Bethânia nos álbuns de música "Mar de Sophia” e Pirata. Em “Dentro do mar tem rio”, canto com Maria: “Dentro de mim, tem o quê? / Dentro do rio, um terreiro / Dentro do
terreiro, o quê?”.

Um cruzamento de referências cristãs, gregas, ocidentais com matrizes do pensamento originário, africano, indígena. Orixás cruzados com poetas. Oxum cruzada, em Bethânia e em mim, com Sophia de Mello Andresen. Bethânia no cruzo da Sophia (nome da poetisa portuguesa) com a sophía grega (palavra para o saber poético e corporal, antes de posteriormente associada a epistéme, o saber intelectivo, generalizante e representacional). Possuída pelos deuses, Bethânia é a música de um Igor-Inácio na arte das musas, na sophía da Memória. Ela sabe: “a voz mora em mim, mas não é minha / é das sereias”. José Inácio, alter-ego de um Igor-Ulisses brasileiro.

Escutar o canto da sereia é a viagem pelo Ignácio (pelo ígneo) da linguagem, pelo fogo e jogo do diálogo/diabo em meio ao mar-rio-sertão. Exu montado em José Inácio; Pombogira montada em Bethânia; cada qual a incorporar seus santos de cabeça, seus poetas de cabeceira. Maria Bethânia das Encruzilhadas! Todos os saberes, todos os afetos no sabor de um livro que me empreendeu resgates pessoais, me levou para os quatro cantos do país e para todos os cantos de mim. Na lembrança de Guimarães Rosa, “o rio não quer chegar à parte alguma, ele só quer aprofundar o seu leito”. Poética na incorporação é leito de meu Rio de Janeiro à procura do Janeiro do Rio, da fonte do rio, do princípio da Oxum, do princípio de mim como em-corpo-ação das correntezas.

O livro também inaugura meu encontro pessoal, presencial, com Maria Bethânia, no Pelourinho, em Salvador, quando José Inácio Vieira de Melo também esteve entre. E este encontro também estava escrito na taça de uma pombogira (sobre ele, ver:
Palestras, artigos, entrevistas, filme, performance, prêmio, revelações e novas convocações. Tudo se desdobra e se dobra em Poética na incorporação – Maria Bethânia, José Inácio Vieira de Melo e o Ocidente na encruzilhada de Exu (ver comentário da professora Carlinda Nuñez, da UERJ, no link https://www.youtube.com/watch?v=mSF5pFn9Hd).  Há sempre um poema a servir de oráculo para entender esse rito iniciático – o “Exercício” proposto pelo poeta Afonso Henriques Neto pode dar as diretrizes:

“Empurre as mãos lentamente / através da pele do rio / até tocar o coração da beleza / (ruína do tempo impenetrável) // depois as retire lentamente / como se puxasse do infinito / a respiração / da criança nascendo”.

Escrever é agradecer. Pensar é agradecer. Os idiomas alemão e inglês apresentam curiosamente o parentesco entre pensar e agradecer: denken e danken; think e thank. O português tem outras artimanhas. Com a mesma sintonia de gratidão, escrevi, em poesia, um livro sobre/sob dança. Logicamente, de 2012, quando “defendi” a tese de doutorado, após sete anos com muitas labirintites, ao presente ano de 2020, muita água já rolou – literalmente (um dos vídeos da defesa de tese:

Com versos “mais cotidianos do que o
cotidiano”, respondo finalmente com um poema de Alberto Pucheu, poeta-professor que
acompanhou de perto a gestação do trabalho:

É preciso aprender a ficar submerso
por algum tempo. É preciso aprender.
..........................................................
a persistir, a não desistir, é preciso,
é preciso aprender a ficar submerso,

é preciso aprender a ficar lá embaixo,
no círculo sem luz, no furacão de água
que o arremessa ainda mais para baixo,
onde estão os desafiadores dos limites
humanos. É preciso aprender a ficar submerso
por algum tempo, a persistir, a não desistir,
a não achar que o pulmão vai estourar,
a não achar que o estômago vai estourar,
.................................................................
É preciso aprender a ficar submerso, a não
falar, a não gritar, a não querer gritar
quando a areia cuspir navalhas em seu rosto,
quando a rocha soltar britadeiras
em sua cabeça, quando seu corpo
se retorcer feito meia em máquina de lavar,
é preciso ser duro, é preciso aguentar,
..................................................................
por algum tempo, é preciso aprender
a aguentar, é preciso aguentar
esperar, é preciso aguentar esperar
até se esquecer do tempo, até se esquecer
do que se espera, até se esquecer da espera,
é preciso aguentar ficar submerso
até se esquecer de que está aguentando,
é preciso aguentar ficar submerso
até que o voluntarioso vulcão de água
arremesse você de volta para fora dele.

Federico Baudelaire -  Além da poesia em verso, já exercitou ou exercita outra forma de linguagem com poesia?

Igor Fagundes -Na resposta anterior, ficaram indicadas as amarrações de saberes, sabores, culinárias artísticas, caldeirões poéticos a que me atrevo: mestiçagem de poesia e filosofia, sanduíche de poesia com ficção, bruxaria de narrativa com teatro, feitiços da performance.  O próprio livro Poética na incorporação ficou expandido como um curta- metragem de 22 minutos sobre seu processo de composição. 

O teaser do filme pode ser

Excita-me ser um espantado incorrigível, um atrevido disciplinado, desde que atravessado por necessidade, mais do que desejo. Toquei instrumentos musicais, ousei cantar, ser ator, diretor, produtor e dramaturgo. E nunca deixo de cantar enquanto escrevo. Enceno ou componho poesia quando, em aula, me forjo professor. Sem querer, mas, também, sem não querer. É a terra onde piso: escrever, cantar, dar aula são uma espécie de reza, de culto, de mito. 

Proferir uma palestra é uma oportunidade de intervenção poética e de abrir uma gira, dar tempo ao templo. Elaborar uma crítica de arte me transpõe para um estado de poesia muitas vezes mais pungente do que quando elaboro um poema, embora isso não seja regra. Teorizar e praticar poesia são dualidades e antagonismos que não me cabem. Mesmo com o terno e a gravata das normas técnicas, com as recomendações rígidas de uma tese, de um artigo científico, dos protocolos e cerimônias acadêmicas, continuo – malandramente – de pés descalços: desnudo para as encantarias da Jurema, para o risco da diferença, como convém às macumbas de seu Zé Pelintra.

Federico Baudelaire - Qual poema escreveu quando teve uma pedra no meio do caminho?

Igor Fagundes -  Todos. Desde que, como já disse, tenha visto caminho no meio de uma pedra.

Federico Baudelaire -  Revisitando Quintana: você acha que depois dessa crise virótica pandêmica, quem passará e quem passarinho?

Igor Fagundes -  “Abre a roda, oh, deixa a Pombagira passear... / Ela tem peito de aço, ela tem / peito de aço e coração de sabiá”. 

Fascistas, sociopatas, psicopatas, dogmopatas passarão. Outros virão. Aqueles que se enclausuram na espera pela volta de um Jesus tão salvador quanto punitivo ainda não se fizeram passarinhos, porque Jesus não cessa de pousar no galho de uma árvore e voar para dentro da gente. Os que, em nome dele, matam, já se mataram. Repare e voe agora comigo: o temido coronavírus é um vírus que lembra uma coroa. Nessa coroa de espinhos, que é o vírus, Cristo volta, renasce, prega-nos sua palavra, oferece-nos a cruz, roga silêncio, renúncia e torce por nosso ressurgimento.

Coronavírus: coroacristo. Brinco? A brincadeira é um modo seríssimo de pensar. O vírus não vem para destruir, castigar. Já estávamos nos destruindo desde que, nos primórdios do Ocidente, Prometeu roubou o fogo dos deuses. O vírus é uma resposta a nós, destruidores, e um convite à reconstrução. O vírus não é, em si, mau ou bom, mas advém como apelo para questionarmos o sentido de nossas ações. Ele é adversário, não porque inimigo, mas porque nos faz pensar a vida, vivendo, isto é, morrendo. Bem ou mal será o que faremos com a vida depois disso tudo, na esperança que haverá “depois”.

No dia de finados, paramos para pensar os mortos. Comemoramos os mortos, isto é, tornamos vivos, memoráveis, encantados, infinitos os que aparentemente desencantaram, findaram, finaram. Há mortos mais vivos do que muitos vivos. E há vivos que já morreram e ainda não sabem. Exaustivamente repetimos: estamos confinados (con-finados), mas certamente menos do que aqueles que assustadoramente se confinam e finam nos hospitais. Por eles, exercemos todos os dias como dias de finados. Mas não estávamos, antes, findando coletivamente? Eis a guerra: ao mesmo tempo, contra e a favor de nós. Nesse campo de concentração, que é todo confinamento em tempos de guerra, quando qualquer um pode ser o próximo a morrer, solidão é um recolhimento a ser-com. Soltos na rua, seguíamos presos, isolados, ensimesmados, ego- centrados. Fomos nós que construímos as grades e inventamos uma coletividade feita de paredes. No afã da ordem e do progresso, precisávamos de um pouco de desordem e regresso. Regressemos à casa. A esta casa onde estávamos só de passagem, meio turistas. Vivíamos? Sobrevivíamos. Andávamos? Corríamos. 

Demasiadamente acelerados, atropelamos e fomos atropelados. Creio que ficar em casa não é uma recusa ao mundo, mas uma renúncia. A renúncia não tira: dá. Renúncia é re-anúncio. Reunamos forças para desacelerar o movimento dos dias e das noites, a rotação e a translação do planeta que mora em cada um. Nesse regresso, o esforço é de todos para que, por um tempo, a Terra gire ao contrário, resistindo ao empuxo dos ponteiros e à dor intransferível de perder pessoas e, com eles, nos perder. Regressar à casa do humano consiste em reencontrar o húmus da humanidade. Humanidade e humildade são, no húmus, palavras irmãs. 

Confinados, podemos nascer-com e, assim, renascidos nesse cuidado, chegaremos ao mais plenamente ético e político. É claro que, quando a doença arromba nossas casas e nos toma sem pedir licença, todo discurso de esperança e bonança parece uma romantização da tempestade. Mas a “direita” já era e é, sem romances, necropolítica: por se encontrar demais com normas, por concordar demais com dogmas e, em nome deles, querer tudo endireitar, enquadrar, vigia, enclausura, pune, exclui, mata. Mas a “esquerda” comete suicídios: perde-se ao querer encontrar sempre o mais excluído, o mais marginal dentre os que seguem à margem: o pobre, a mulher, o feminino, o não branco, o não binário, o gay, o trans, a trans, o idoso, o obeso, soropositivo, o morador da favela da Maré (mais marginal do que o morador da favela do Vidigal). 

O antinormativo, por vezes, culmina em uma nova utopia, uma normatividade ou idealidade às avessas. Enquanto a direita muito se une para continuar seu projeto disciplinador e excludente, a esquerda se desune em seu excesso de discordâncias, uma vez que as diferenças sempre podem ser mais diferentes e, entre si, gritar suas distâncias, mais do que tentar alguma proximidade que faça frente ao terror.
Nesse ponto, a esquerda também se confina em grupos: cada qual com sua causa, e por uma política afirmativa, involuntariamente cai em contradições. O dissenso aparece sempre mais poderoso que o consenso: vem dessa fragmentação tanto a força da esquerda quanto sua lamentável fragilidade. Quero dizer: os que se põem contra o projeto de ódio, não estão livres de morder a maçã envenenada e de também envenenar. Fico até um pouco constrangido ao tocar em assunto tão delicado, porque, a essa altura, como homem e branco, já tenho um diminuto lugar de fala e, mudo, sofro todo tipo de rótulo (direita, esquerda...), embora exerça empatia com as minorias. Só que aí vem um vírus colocar todo o mundo num enorme lugar de escuta e mudez, pois ninguém está livre da possibilidade de morrer e, talvez, para além de todo moralismo, precisemos eticamente aprender a amar quem jamais nos amou. Essa entrevista ocorre perto do 13 de maio, quando a Umbanda festeja os pretos-velhos, os quais ensinam um canto: 

“As almas choram de alegria / quando os filhos se combinam / também choram de tristeza /quando não quer combinar”. 

Quem passarinho? Quem encontrar, em cada lugar de fala, um lugar de escuta e, nesse entre-lugar, uma terceira margem em meio ao isto ou aquilo, ao isto contra aquilo: a encruzilhada como zona de respiro. Um Deus com inicial maiúscula não pode nos salvar, seja ele religioso ou político-ideológico, caso não possua também o minúsculo tamanho de um vírus, mostrando o quanto somos também minúsculos. O ser humano só é grande quando pensa a sua pequenez. Um coronavírus pode nos salvar. Quem sabe, um lockdown, um tranca-rua nos salve. Ao proteger as fronteiras, as portas, os portais, as encruzas, fechando os maus caminhos para abrir novos e outros, mais promissores, Exu Tranca-Ruas nos devolverá o poder de ir e vir. Só Exu expulsa o fascismo das pessoas!

Federico Baudelaire - Escrevendo sobre o livro Pátria A(r)mada, o poeta e jornalista Ademir Assunção, afirma que cada poeta tem a sua tribo, de onde ele traz as suas referências. Você de onde vem, qual é a sua tribo?

Igor Fagundes -  Rio nas sete encruzilhadas. E “rio”, aqui, é o substantivo líquido da Mãe Oxum, o nome de minha cidade e, também, o verbo irônico, a gargalhada de Exu. Em geral, definimos a identidade como pertencimento a uma comunidade. Os povos diaspóricos, por exemplo, os povos ciganos são sem casa: têm o corpo em trânsito como seu lar.

Sou da tribo de quem não aceita o cercado e se extravia para a encruza. Para além e para aquém da identidade como um pertencer comum, penso a identidade como um comum pertencer. É o pertencer mesmo que é comum. E, sendo comum a todos pertencer à terra, cada pertencimento é incomum, cada ser-no-mundo é intransferível, próprio. O
pedigree não é nada herdado como um bem já feito sob medida para mim, mas uma conquista necessária onde, um tanto vira-lata das ruas, escuto o 

“Canto de algum lugar”:

“Todo dia o Sol levanta / E a gente canta / Ao Sol de todo dia // Fim da tarde a terra cora / E a gente chora / Porque finda a tarde // Quando a noite a Lua amansa / E a gente dança / Venerando a noite”. 

Poderia citar Ulisses, que não cessa de regressar à casa, de postergar seu repouso ao ouvir o canto das sereias, tornando a viagem sua própria pátria.

Em terras brasileiras, Zé Pelintra é nordestino que, iniciado ao catimbó da Jurema, sofreu o trânsito para o Rio de Janeiro. Flanando pelas ruas da Lapa com seu chapéu panamá e terno de linho, jamais deixa de ser o juremeiro descalço que “vem das Alagoas” e “toma cuidado com o balanço da canoa”. Numa espécie de “adequação transgressora” (a expressão é de Luiz Antonio Simas, em O corpo encantado das ruas), aprendemos com Zé Pilintra a malandragem. Malandro não é bandido. Bezerra da Silva canta ao descer e subir o morro: “malandro é 
malandro e mané é mané”. Zé Pelintra sabe a diferença entre transgredir e subverter. Subverter é verter para baixo, tirar da frente. É, pois, subjugar, subordinar, subalternizar, em suma, eliminar – coisa de mané.

Nisso, possivelmente inverte a posição de oprimido e opressor. Malandro que é malandro não bate de frente: ao virar a esquina, faz a curva aberta, pois não sabe quem vem, ou seja, não ignora o que pode cruzá-lo. Mas o cruza e, sinuoso, flexível, o enfrenta pelo diálogo. Malandro que é malandro chama para a ginga: golpeia enquanto recua, sabe recuar para avistar a brecha, habitar fresta e – fosse um capoeira – tornar a guerra, uma espécie de jogo e dança. Atravessando a rua (e sendo por ela atravessado), o malandro cumpre-se através: é travessia (trans-vertere e, não, sub-vertere). A subversão pode, em vez de transgredir, agredir. Assim, malandramente, sou capaz de me adequar a todas as tribos (dos tradicionais aos inventores de moda, dos pré-antigos aos pós-modernos, da cultura popular à erudita), transgredindo-as e misturando-as como acúmulo vital. Nesse entre-lugar, aprendo a jogar, a lutar, a dançar “no balanço da canoa”. 

Venho do corpo: meu exílio e minha pátria. Venho da palavra: minha pátria e meu exílio. Por isso, se há nome para a tribo, prefiro – sacana, isto é, só de sacanagem – que a chamem de “macumba”. Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino escrevem no livro Fogo no mato: “macumba vem muito provavelmente do quicongo kumba: feiticeiro (o prefixo “ma”, no quicongo, forma o plural). Kumba também designa os encantadores das palavras, os poetas. Macumba seria, então, a terra dos poetas do feitiço; os encantadores de corpos e palavras que podem fustigar e atazanar a razão intransigente e propor maneiras plurais de reexistência pela radicalidade do encanto, em meio às doenças geradas pela retidão castradora do mundo...”.

Para além do território religioso, macumba evoca a dimensão encantatória do humano enquanto aquele que mora na linguagem; aquele que na linguagem transita e sofre o transe. Wittgenstein, depois de uma gira de macumba, certamente descobriu que “os limites do mundo são os limites da linguagem”.  Sou pirata nesse mundo-encruzilhada de poéticas, culturas e mitos. A propósito, Sophia Andresen, portuguesa que mora nos gregos, escreveu o poema

“Pirata”:

“A minha pátria é onde o vento passa, / A minha amada é onde os roseiras dão flor / O meu desejo é o rastro que ficou das aves / E nunca acordo deste sonho e nunca durmo”.

Não quer dizer, conforme o “Cântico negro”, que eu vá – alienado – aonde me chamem: 

“Vem por aqui – dizem-me alguns com os olhos doces / Estendendo-me os
braços, e seguros / De que seria bom que eu os ouvisse (...) // Ah, que ninguém me dê
piedosas intenções / Ninguém me peça definições!/ Ninguém me diga: “vem por aqui”!
/ (...) / Não sei por onde vou / Não sei pra onde vou / Mas sei que não vou por aí!”.

Federico Baudelaire -  Nos dias atuais o que é ser um poeta, militante de poesia?

Igor Fagundes -  Desconfio de toda poesia que queira, primeiro, ser política para, depois, ser poética.
Como “um cão latindo dentro de uma casa vazia” (Alberto da Cunha Melo salta na memória), o poeta é um militante (sem ser militar!). Se carece de um acréscimo, de “um a mais” que o consagre marginal, questionador, à margem, certamente não é poeta. Consciente ou não, o poeta é sempre um encantador de serpentes. 

Nos dias atuais, muito artista precisa dar palestra antes ou depois de apresentar sua arte, a fim de legitimá-la como tal e mostrar toda a genialidade e conceito que há “por trás” dela. Se a obra precisa de legenda, se a questão não se move na superfície da obra, parece-me que ela não é capaz de obrar e, portanto, culmina em retórica. Creio na política pela poética, a partir da poética. A poética fundada em qualquer ideologia se esgota no seu próprio fundamento ideológico. Desse modo, sua utilidade – esgotada em si mesma – se torna descartável e, pasmem, inútil. 

A poesia não deve ser um meio para, mas o próprio fim, a própria necessidade. Isso não significa alienação ou romantização do poético, mas comprometimento maior com a vida da vida: que é serpente e é encanto. Como tal afirmação de vida (e não estrito fetiche estético-alegórico), a poesia é inútil, na medida em que também a felicidade é inútil. Passamos a vida fazendo algo para... Estudamos para termos trabalho. Trabalhamos para ganhar dinheiro. Recebemos dinheiro para comprar uma casa. Compramos a casa para nos proteger do frio, do calor e para morar com nosso amado, e para criar os nossos filhos. Casamos e criamos os filhos para... Em última instância, tudo é para a felicidade. Esta, como o fim de todos os fins, não serve a mais nada, nem é meio para coisa alguma fora dela, porque ela já é toda a necessidade.

Não servindo a nada, a poesia se alforria e abdica de ser serva, escrava, empregada. Em um mundo servil, utilitário, pragmático, sistêmico, funcional não servir é uma nobreza.
Em seu suposto ócio, o poeta – fora dos negócios – realiza o humano, torna-o fértil e, assim, ao contrário do que pensam os idílicos, traz mais para a terra a própria terra.
Nada que ver com o estéril. A fertilidade ou felicidade está em militar sendo poeta, nem mais, nem menos, num mundo em que sempre morreremos de tristeza.

Federico Baudelaire - Que pergunta não fiz que você gostaria de responder?

Igor Fagundes -  Que resposta eu dei que não foi pergunta?

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2 comentários:

  1. Igor sendo Igor, isto é: excelência, inteligência, sensibilidade à flor da fala.

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  2. Uma aula sobre o tudo que podemos considerar de humano: poesia e vida. UM SHOW! Grande Igor Fagundes! Aplausos de pé.

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