Fui apresentado ao
Igor Fagundes por Artur Gomes, em Campos dos Goytacazes, numa das edições
do FestCampos de Poesia Falada.
Algum tempo depois, em 2010, o encontrei no Parque das Ruínas, em Santa Teresa,
Rio de Janeiro, num domingo de Rock e Poesia. Ali, conheci um pouco da sua
poética, assistindo a sua performance, num diálogo com Artur Gomes, sendo
filmado por Jiddu Saldanha. Acompanho sua trajetória desde então.
Tanto Poética na
Incorporação (ensaio), quanto Pensamento Dança, (poesia), seus dois
livros, aos quais tenho acesso, ainda me
provocam indagações, a respeito do ser
poeta ator professor doutor dramaturgo, e estar livre leve solto entre a universidade, e o terreiro, o sagrado
o profano a academia a malandragem.
Sua poética é um ritual corpóreo, atravessa mares ventos tempestades calmarias no toque
dos tambores, na transcendência da orgia, que pode ter na incorporação, deuses gregos
e afros, ou, as entidades
sagradas da literatura brasileira e universal.
Desde que li o seu texto para prefácio do livro O Poeta Enquanto Coisa, de
Artur Gomes, que o meu desejo era entrevistá-lo, para compreender um pouco mais
desse fogo que o leva a se desdobrar em tantos.
IGOR
FAGUNDES - Carioca, poeta, ensaísta, aprendiz de macumba, ator, jornalista e professor de Filosofia e Estética
no Departamento de Arte Corporal da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde é coordenador do Bacharelado em Teoria da Dança
e docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Dança. Doutor em Poética
pela UFRJ. Membro do PEN Clube do Brasil. Autor de nove livros (cinco de poesia
e quatro de ensaio, crítica, filosofia), coautor de mais de trinta e
organizador de seis obras. Possui cerca de 60 premiações em concursos literários (dentre os quais o Prêmio
Afrânio Coutinho de Ensaio/Crítica da União Brasileira dos Escritores para Poética na incorporação, em 2017, e o Prêmio Cidade de Manaus para Os poetas estão vivos – pensamento poético
e poesia brasileira no século XXI, em 2007), além de premiações no campo das
Artes Cênicas, quando, além de figurar como ator, produziu, dirigiu e escreveu
peças de teatro.
UMA DEDICATÓRIA, COM LICENÇA
Dedico a entrevista ao grande poeta e amigo Marcus Vinicius Quiroga, que conheci há
20 anos e está de partida, vítima de COVID-19, para o céu de todos os poemas,
nesta madrugada em que respondo às perguntas: “um verme talvez à noite já devore / a folha, os escritos, a foto
esmaecida / (...) / um verme lá no sótão às escuras / elabora uma carta, um
óbito, um despejo” (Marcus Vinicius Quiroga, “Nota bibliográfica”, Campo de trigo maduro).
Federico Baudelaire - Igor, o que é para você poética da incorporação quando, depois, escreve um livro dizendo que o pensamento dança?
Federico Baudelaire - Igor, o que é para você poética da incorporação quando, depois, escreve um livro dizendo que o pensamento dança?
Igor
Fagundes - Laroiê, Frederico Baudelaire e todas as falanges que
dançam no teu e no meu corpo! Todas as avalanches de vida-morte que a palavra incorpora!
Há uma sutileza preposicional no título de meu sétimo livro solo, que – a
propósito – demorou sete anos para ser escrito, isto é, para ser apanhado no
abismo do rio, segundo a convocação de uma criança encantada d’Oxum, bem
chamada Lagriminha de Ouro: Poética na incorporação, em vez de Poética da
incorporação. Em “poética da incorporação”, o incorporar parece
objeto de algum pensar poético que eventualmente se lhe empreste, se lhe
aplique e ora o fundamente. Por esse caminho, a incorporação se sugere apenas extraordinariamente,
excepcionalmente, prenhe de poesia e pensamento.
Uma poética na incorporação evoca, em contrapartida, certa travessia
por dentro de um pensar poético já intrínseco ao incorporar, cuja dinâmica
ordinária é paradoxalmente extraordinária, sempre excepcional.
Trata-se não só de evitar uma separação entre corpo
e pensamento, mas também de não supor a poesia como um
fenômeno fora do real, do físico, da physis, uma vez que o grego poiesis
designa o agir pró-criativo da vida como tal, aqui mesmo, agora, na concretude
de seu verter e vertigem. O poeta (o artista) compreende aquele ser humano que
presta atenção ao acontecer da poesia na vida (que é também o acontecer da vida
na poesia), de maneira que dele se ocupe, no sentido de deixá-lo crescer e
aparecer mais e mais em seu corpo, em sua palavra.
A poesia não é, contudo, um fundamento ou substância que à
vida e ao corpo se antecipe, mas propriamente seu sem-fundo fundante, o verbo abissal em que
vida-corpo perdura (des)aparecendo. O poeta alemão Hölderlin assinala: “poeticamente o homem habita esta terra...”. E reitero: “poeticamente o homem habita este corpo...”.
O brasileiro Fernando Mendes Vianna traz, em “Oratório do corpo”, tal apelo:
“Acredita
no teu corpo! / O corpo é sábio / É da terra e para a terra / Por isso é sábio
/ (...) / pois pensa de acordo com as raízes que te irmanam à Criação”.
Se, no livro Poética
na incorporação, aparentemente refiro-me apenas à dimensão mediúnica e/ou espiritual do incorporar (a incorporação como
mediação entre dois
mundos preexistentes), a viagem afunda e se funda na
dimensão espirituosa da incorporação agora-aqui, como nossa imediação
originária. Nela, terra e mundo, húmus e humanidade se dobram e se desdobram
finita e infinitamente por entre cosmo e caos, sentido e silêncio, estar e ser,
ser e não ser.
Terra-mundo (em uma palavra: terreiro) passa a designar um
espaço-tempo não estritamente religioso, porque nome para qualquer lugar que
deixe de ser um lugar qualquer. Corpo é terreiro. Rua é terreiro. Esquina é
terreiro. Casa é terreiro. Palco é terreiro. Sala-de-aula é terreiro. Livro é terreiro.
O site (o sítio!) é terreiro. A entre-vista é terreiro. Nesse entre terra e
mundo, o pensamento dança, quer dizer, o terreiro dança, é corpo, palavra,
corpo-palavra.
No livro pensamento dança, cujo prefácio é do querido Marcus Vinicius Quiroga, o vocábulo “dança” é tanto substantivo quanto verbo. No primeiro caso, trata-se da dança como um modo próprio e poético de pensamento. Não no sentido de que a dança porventura contenha um pensar, mas no sentido de que dançar já é o pensar. No segundo caso, “dança” é um gesto do pensamento, mesmo que o corpo pareça fora do estado de dança. Em momento nenhum, o pensamento deixa de ser corpo ou o corpo se põe à parte do pensamento. Consequentemente, no que a força do hábito denomina “dança”, o corpo se torna palavra, enquanto no habitualmente considerado poema, a palavra é corpo. Poética na incorporação é a pronúncia desta palavra incorporada e, portanto, de uma dança nela e com ela. As palavras me dançam. Não são só palavras os nomes, os vocábulos, as vozes, mas os sons e imagens sem sujeito, jogados pelo silêncio, pela sombra, à sombra e ao silêncio, seja do tempo da memória, seja de um tempo imemorial. Música. Ritmo. Tempo. Tambor é palavra e palavra é tambor. O atabaque é corpo que dança com o corpo dos nomes e com o sem-nome dos corpos.
No livro pensamento dança, cujo prefácio é do querido Marcus Vinicius Quiroga, o vocábulo “dança” é tanto substantivo quanto verbo. No primeiro caso, trata-se da dança como um modo próprio e poético de pensamento. Não no sentido de que a dança porventura contenha um pensar, mas no sentido de que dançar já é o pensar. No segundo caso, “dança” é um gesto do pensamento, mesmo que o corpo pareça fora do estado de dança. Em momento nenhum, o pensamento deixa de ser corpo ou o corpo se põe à parte do pensamento. Consequentemente, no que a força do hábito denomina “dança”, o corpo se torna palavra, enquanto no habitualmente considerado poema, a palavra é corpo. Poética na incorporação é a pronúncia desta palavra incorporada e, portanto, de uma dança nela e com ela. As palavras me dançam. Não são só palavras os nomes, os vocábulos, as vozes, mas os sons e imagens sem sujeito, jogados pelo silêncio, pela sombra, à sombra e ao silêncio, seja do tempo da memória, seja de um tempo imemorial. Música. Ritmo. Tempo. Tambor é palavra e palavra é tambor. O atabaque é corpo que dança com o corpo dos nomes e com o sem-nome dos corpos.
Escrevo-penso como quem dança. Como quem canta e chama a
poesia da terra a ser-no-mundo, mas só quando ela, primeiro, faz o chamado. Com
frequência, escuto-a, mas – desligado, despreparado – faço ouvido mouco e perco
o ouro de alguma lágrima.
O teaser do livro pensamento dança, criado em parceira com o amigo artista Julius
Mack,
está disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=HSVaEgGDumg.
Federico
Baudelaire - Como se processa o seu estado de poesia?
Igor
Fagundes - Um canto de Marina Lima fecunda-me a palavra uterina: “Eu
tô grávida / Grávida de um beija-flor / Grávida de terra / E de um
liquidificador / E vou parir / Sobre a cidade / Um terremoto, uma bomba, uma cor / (...) / Estou grávida de
chão / (...) / De uma nota musical / De um automóvel / (...) / E vou parir / Uma
montanha, um cordão umbilical / (...) Quando a noite contrair / E quando o sol dilatar”.
Não posso saber o que é ser mulher, mãe, mas a poesia me
fertiliza para um devir-fêmea e me engravida. Posso, todavia, ser seu macho e,
em última instância, seu filho com gênero não binário. No erotizado
filho-e-mãe, pratico o incesto e sou perdoado, porque a poesia não parte de evangelhos
(embora o inverso valha). E, lasciva, adúltera, permanece – à revelia – uma virgem
recatada. Desse modo, nunca sei se sou eu o grávido ou se é ela, a grávida de mim.
Arrebento, sou rebento e, ao mesmo tempo, o corpo arrebentado em prazo não estipulável:
nove meses, sete anos, um minuto.
Guimarães Rosa, em entrevista, respondeu: “Eu choco as palavras”. Alberto Caeiro, um dos partos sofridos por Fernando
Pessoa, acrescenta: “Sou um guardador de rebanhos”. O poeta
brasileiro Antonio Cicero também guarda este “Guardar”: “Guardar uma
coisa não é escondê-la ou
trancá-la / Em um cofre não se guarda coisa alguma / Em um cofre perde-se a
coisa à
vista”.
Guardar tem que ver com gestar, chocar, cuidar, velar,
desvelar, incorporar, no sentido de também liberar, expor, deixar-ser. Guardar,
portanto, é proteger, zelar pelos rebanhos de um “pensamento que é todo
sensações”, que é corpo. Guardar é proteger, mas não superproteger, com
afagos deliberados e exagerados. O bom guardar consiste
em cuidar para que isso que é guardado seja ou venha a ser
justo isso que é. Cuidar para que o guardado seja o que precisa ser: sem derramamento, mas
também sem retenção.
Cuidado e zelo para com a necessidade. Assim, guardar é
largar cuidadosamente, é zelosamente abandonar... Essa, a aprendizagem de mãe e
filho. Até porque isto que se quer guardar-liberar é uma presença que
imediatamente escapa. Só se incorpora, só se guarda, só se gesta e só se dá à
luz o traço do que já não mais existe e aparece como rastro.
O poeta não captura: é, pelo escape, capturado. Pelo escuro,
iluminado. Pela síncope, acordado. O vigor poético se entende desde o acontecer
de um (des)aparecer. O aparecer como tal não pode ser presente como algo. Por
outro lado, mostra-se quando alguma coisa, algum corpo, já se deu. Isso quer dizer que o acontecer se
mostra ao desaparecer numa presença. Nessa (i)mediação de ausência e presença,
o poema propriamente expõe a escuridão luminosa do poético. Aquilo que, no fim
da canção “Estado
de poesia”, de Chico César, “não fica nem vai embora”.
Federico
Baudelaire - Seu poema preferido?
Igor
Fagundes - O pré-ferido? O pré-dileto? Sou previamente ferido por
todos os poemas, querido por cada um deles, para os querer e para poder
escrevê-los. Isso vale para o poema do outro que me (a)parece próprio e para
aquele que denomino “meu”, a qual é sempre outro, de um outro que – em
mim – o lê e o relê. Feri a palavra, abri o verbo, quando antecipadamente
aberto, ferido, interferido. Em tal interferência, torno-me diferido e diferente.
A diferença, como tal, não é melhor nem pior, mas tão-só uma possibilidade de
ser que, em dado momento, decidiu que eu fosse o seu lugar de consumação.
Agradeço. Escrever é sempre o agradecimento por ter sido
preferido como casa desta ou daquela possibilidade criativa. Em respeito a
todos os poemas que tentaram, em mim, guardar o poder-ser que jamais se esgota,
nem se captura, prefiro – em cada rastro – o porvir: o ainda não escrito no já
lido, o ainda não lido no já escrito, o ainda não lido no
ainda não escrito. O poeta Francisco Bosco escreve: “o poeta é um gago”. Não desprezo nenhum
texto publicado, porque a poesia jamais desprezou minha gagueira. Pelo contrário,
creio que ela prefere um “galo gago”,
para lembrar o livro do poeta Antonio Carlos Secchin, destinada à criança e à diferença que mora
na gente. Aceito não chamar as manhãs com o melhor dos cacarejos. Aceito não
alcançar a frase mais limpa e o verso perfeito. Este é o vaticínio: ficar
inteiro na incompletude, lavar-me na sujeira do dito e do dizível. Dar
preferência ao não dito, sabendo que o indizível é um nome que podemos dizer.
Federico
Baudelaire - Qual o seu poeta
de cabeceira?
Igor
Fagundes - Poeta de
cabeceira...? Santo de cabeça...? Respondo Guimarães Rosa como santo de cabeceira ou Ogum como poeta de cabeça? Em qual poeta ou
poetisa, a Mãe Oxum me entrega seu espelho? Em qual espelho ficou perdida minha
face? Em qual estante, ficou perdida a minha vida? Na mesa de cabeceira, uma
pilha de livros é o livro nenhum que espero descobrir, mas me descobre e me
cobre enquanto durmo. Na cabeceira vazia, um poeta é “a sombra
vaga de alguma interminável música”. Vovó Catarina de Angola é, “como
os poetas que já cantaram / e ninguém mais escuta”, um
poema cujo espectro sempre me dá a consulta. Preta-velha corcunda em sua
alta-ajuda: a que não promete nenhum manual de auto-ajuda.
Na cabeceira, tenho
anjo da guarda, Exu, Diadorim, Riobaldo, Fausto, Mefistófeles, a Indesejada das
Gentes. Na cabeceira, “o que não havia/ acontecia”. E tem Dona Capitu
deitada com seus dois maridos nada casmurros: Zé Pelintra e Zé Pretinho.
Cabeceira é terreiro. Lugar em que bato-cabeça. Percorro os salmos do Grande
Sertão como quem cai, ao revés, em tentação. No pecado de fumar os dogmas,
tragar as cartilhas, largo doutrinas num cinzeiro invisível. Não sou afeito a cigarros
e a álcool (só se for álcool gel 70, para as mãos, em tempos de pandemia).
Todavia, entrego todas as noites uma cachaça à cabeceira, em
oferenda ao Fernando que epidemicamente deixa ali sua Pessoa.
Federico
Baudelaire - Em seu instante de
criação existe alguma pedra de toque, algo que o impulsione para escrever?
Igor
Fagundes - Mich reitet auf einmal der Teufel (De repente
o diabo me cavalga). A questão do diabo se impõe quando, no meio do caminho, tem uma pedra e,
com ela, a rascante pergunta: O que fazer? Na condição de algo que advém sem
que eu tenha deliberado; algo que, então, adverso, adversário, me põe a
interrogar o sentido do agir, a pedra é o diabo como o jogo e o fogo do
diálogo, da não indiferença ao outro. Decidir não decidir, decidir não acolher
a pedra já é uma decisão. Se a liberdade é nosso destino, não estamos livres
para não ser livres, para não escolher. O adversário (em hebraico, satã) é nosso “entre-tanto”,
o “toda-via” com o qual jogamos e no
qual somos jogados (dia-ballein, em grego; dia-bolus, em latim, diz o
entre-jogar-se ou entre-lançar-se do humano ao ser-no-mundo). Em um jogo, o
adversário não é inimigo (o mal...), mas aquele que permite o próprio jogar. Bom é não cometer a
falta com a pedra, não desrespeitar o que se põe no meio do caminho e nos chama
ao drible, à finta, à dança, à brecha, à fresta, à criatividade como única e
possível transcendência. Encarar o tempo como inimigo, por exemplo, é já
começar perdendo; sequer dar uma chance ao jogo.
Tornar o tempo aliado é nosso chamado para viver, morrendo;
para morrer, vivendo.
Para crescer no ad-verso e, assim, em con-versa, fazermo-nos
di-versos enquanto trans-versos. O jogo de palavra diz: o tempo está sempre no
meio do caminho. Todo caminho é no meio do tempo. Escrevo a partir de alguma
questão que pega fogo e me roga o jogo. O tempo é uma pedra. No atritar,
produzo calor, descubro o ígneo. Posso, ao contrário, ser tocado de frieza. E,
fria ou calorosamente, lançá-la, atirá-la em alguém. Machucar. Inclusive, posso ser acertado, ser machucado por
ela. Tropeçar. Mirar uma pedrinha e achá-la mais admirável que a Cordilheira
dos Andes. De repente, brincar com a grandeza do miúdo. Brigar com um problema
supostamente enorme e, ao fim, miudinho. Quem sabe, usar a pedra para fazer chão, erguer a
casa, tirar leite. Na sabedoria alquímica, uma pedra nas mãos vira ouro. O que
parece dor, castigo, se transfigura em presente e oportunidade.
Não raro, o
precioso, o valioso, o ouro da pedra é justamente tropeçar, queimar-me nela e
descobrir-me gente, frágil, mortal. Mas, como nem sempre vejo caminho no meio
de uma pedra, com frequência passo por ela e desperdiço sua força. Mas há
pedras que são sombra e não há como pulá-la. Aonde vou, dá o ar de sua graça. Por isso, num pedregulho de Hölderlin
está escrito: “o que permanece,
fundam-no os poetas”.
A pedra pode ser espelho: de mim, não posso escapar, mesmo que seja duro
mastigar-me. Escrevo não para me ver livre da pedra, me salvar dela, me salvar do perigo e de mim. Mas para salvar-me no
perigo, salvar-me na pedra. Ser
livre na pedra, sendo pedra. A cabralina, a miudinha de Aruanda, a drummondiana, a filosofal, a igoriana:
a que, sob rigor de ourives (e não descarto ouro de lata), vem com vestido de vento, raio rasgando, mar em
murmúrio, redemoinho redescobrindo-se
rendez-vous de faces e fomes. A pedra pode ser apenas uma rima rica e soante com tudo o que medra. Ou uma
rima toante no rumo do poeta. A pedra: um
presidente mais infeccioso que a doença, mais bruto que o próprio
pedregoso. A doença capaz de poema.
Em suma, a máquina do ódio a desafiar o amor. O amar em consistência mineral, a arranhar – cheio de dor e dó – a garganta
do ódio. Até a Paz de um Octavio dizer: “O
pesado é leve”. Uma pedra furou a flor. É feia. Mas é uma pedra. Furou a corola, o pólen, o perfume, os jardins da República
e o Planalto da História.
Federico
Baudelaire - Livro que
considera definitivo em sua obra?
Igor
Fagundes - Poética na
incorporação. Ele é, ao mesmo tempo, um divisor de águas e um multiplicador. Nasceu de um chamado no terreiro, mas não de
fora para dentro. Porque o terreiro – como o sertão – é “do tamanho do mundo”, é “o
em toda parte”, é “o sem margens” e é “o dentro da gente”. De dentro para dentro
(tudo-é-dentro), o terreiro chamou o livro de mim ou em mim a ser: livre. Nada
mais esperado e inesperado no sertão do que um filete d’água nascendo.
Poética na incorporação foi um rio, um rio da Mãe Oxum se dando de presente,
concedendo a minha presença: não para matar a sede, mas para mostrar uma sede
que não cessa de mostrar-se fonte. Mãe Oxum pediu que eu me apropriasse do que me é próprio, do meu caldeirão,
minha teia, trama, rede, enredo, estória. Da minha encruzilhada de arte,
ciência, religião, movido na força centrípeta e centrífuga, concêntrica e
excêntrica da poesia. O livro é uma experiência física, originária, do sagrado. Nem teológica, nem
antropológica, mas ontológica, mitopoética. Como foi também, ao mesmo tempo,
minha pesquisa de doutorado para além do epistemológico, para além da busca por
– digamos – um título acadêmico. Para tal, não bastava conhecer. Era preciso ser o que se conhece,
ser o que se desconhece. No resguardo do desconhecido como desconhecido, na
sintonização com o enigma sem a presunção de decifrá-lo, o livro é a obra mais
difícil que escrevi (e imagino, também, a dificuldade de lê-lo). Marcus
Vinicius Quiroga o chamou de “arrebatamento”.
Penso-o como um grande, turbinado e perturbado poema em prosa, uma prosa
porosa, musical e filosófica, que tenta resistir à tradição ocidental da
filosofia como máquina conceitual e colonial. Mãe Oxum pediu que eu atentasse
para feixes de água que, em minha vida, pareciam paralelos, mas que eram confluentes (o adverso se
fazendo transverso, conversa e diverso, isto é, perfazendo o a diferença como o
acontecimento poético). Eu, na encruza e como a encruza das águas. Todas as
artes na foz da Arte de ser. Teatro, literatura, música. Poesia e filosofia.
Tudo-um. Tese de doutorado, oferenda ao orixá: o mesmo. O ensaístico junto ao épico/narrativo e, ainda, junto
ao dramático/dramatúrgico.
Nenhum sumário, propriamente, nem capítulos, apenas
batuques, versos e pontos cantados em cada parte do labirinto. O biográfico
junto ao ficcional, sem que nada escape à verdade. A Paixão segundo G.H vira
uma espécie, talvez, de Paixão segundo Igor Fagundes: “Terei
de criar sobre a vida. E sem mentir. Criar, sim. Mentir, não”, correndo o “grande risco de se ter a realidade”.
Sertão-rio-mar. Três imagens e uma. A Ilha do Fundão, no sem fundo disso, cercada
de água por todos os lados, incorpora a maresia da baía: universidade-terreiro!
Na UFRJ, onde me doutorei, a Baía da Guanabara gira e se desloca para outras
bandas: é Baía de Todos os Santos. A obra sertaneja do poeta alagoano-baiano
José Inácio Vieira de Melo aparece como arauto desta minha umbanda, encruzando-a
com a obra hídrica e híbrida (católico-candomblecista) de Maria Bethânia nos
álbuns de música "Mar de Sophia”
e Pirata. Em “Dentro do mar tem rio”,
canto com Maria: “Dentro de
mim, tem o quê? / Dentro do rio, um terreiro / Dentro do
terreiro,
o quê?”.
Um cruzamento de referências cristãs, gregas, ocidentais
com matrizes do pensamento originário, africano, indígena. Orixás cruzados com
poetas. Oxum cruzada, em Bethânia e em mim, com Sophia de Mello Andresen.
Bethânia no cruzo da Sophia (nome da poetisa portuguesa) com a sophía grega
(palavra para o saber poético e corporal, antes de posteriormente associada a epistéme, o
saber intelectivo, generalizante e representacional). Possuída pelos deuses,
Bethânia é a música de um Igor-Inácio na arte das musas, na sophía da Memória.
Ela sabe: “a voz mora em mim, mas não é
minha / é das sereias”. José Inácio, alter-ego de um Igor-Ulisses
brasileiro.
Escutar o canto da sereia é a viagem pelo Ignácio (pelo
ígneo) da linguagem, pelo fogo e jogo do diálogo/diabo em meio ao
mar-rio-sertão. Exu montado em José Inácio; Pombogira montada em Bethânia; cada
qual a incorporar seus santos de cabeça, seus poetas de cabeceira. Maria
Bethânia das Encruzilhadas! Todos os saberes, todos os afetos no sabor de um livro que me empreendeu resgates
pessoais, me levou para os quatro cantos do país e para todos os cantos de mim.
Na lembrança de Guimarães Rosa, “o rio
não quer chegar à parte alguma, ele só quer aprofundar o seu leito”. Poética na incorporação é leito de meu
Rio de Janeiro à procura do Janeiro do Rio, da fonte do rio, do princípio da
Oxum, do princípio de mim como em-corpo-ação das correntezas.
O livro também inaugura meu encontro pessoal, presencial,
com Maria Bethânia, no Pelourinho, em Salvador, quando José Inácio Vieira de
Melo também esteve entre. E este encontro também estava escrito na taça de uma
pombogira (sobre ele, ver:
Palestras,
artigos, entrevistas, filme, performance, prêmio, revelações e novas convocações.
Tudo se desdobra e se dobra em Poética
na incorporação – Maria Bethânia, José Inácio Vieira de Melo e o Ocidente na encruzilhada de Exu (ver comentário da
professora Carlinda Nuñez, da UERJ, no link https://www.youtube.com/watch?v=mSF5pFn9Hd).
Há sempre um poema a servir de oráculo
para entender esse rito iniciático – o “Exercício”
proposto pelo poeta Afonso Henriques Neto pode dar as diretrizes:
“Empurre as mãos lentamente / através da
pele do rio / até tocar o coração da beleza / (ruína do tempo impenetrável) //
depois as retire lentamente / como se puxasse do infinito / a respiração / da
criança nascendo”.
Escrever é agradecer. Pensar é agradecer. Os idiomas alemão
e inglês apresentam curiosamente o parentesco entre pensar e agradecer: denken
e danken; think e thank. O português tem outras artimanhas. Com a mesma
sintonia de gratidão, escrevi, em poesia, um livro sobre/sob dança.
Logicamente, de 2012, quando “defendi”
a tese de doutorado, após sete anos com muitas labirintites, ao
presente ano de 2020, muita água já rolou – literalmente (um dos vídeos da
defesa de tese:
Com versos “mais cotidianos do que o
cotidiano”,
respondo finalmente com um poema de Alberto Pucheu, poeta-professor que
acompanhou de perto a gestação do trabalho:
É preciso aprender a ficar submerso
por algum tempo. É preciso aprender.
..........................................................
a persistir, a não desistir, é preciso,
é preciso aprender a ficar submerso,
é preciso aprender a ficar lá embaixo,
no círculo sem luz, no furacão de água
que o arremessa ainda mais para baixo,
onde estão os desafiadores dos limites
humanos. É preciso aprender a ficar submerso
por algum tempo, a persistir, a não desistir,
a não achar que o pulmão vai estourar,
a não achar que o estômago vai estourar,
.................................................................
É preciso aprender a ficar submerso, a não
falar, a não gritar, a não querer gritar
quando a areia cuspir navalhas em seu rosto,
quando a rocha soltar britadeiras
em sua cabeça, quando seu corpo
se retorcer feito meia em máquina de lavar,
é preciso ser duro, é preciso aguentar,
..................................................................
por algum tempo, é preciso aprender
a aguentar, é preciso aguentar
esperar, é preciso aguentar esperar
até se esquecer do tempo, até se esquecer
do que se espera, até se esquecer da espera,
é preciso aguentar ficar submerso
até se esquecer de que está aguentando,
é preciso aguentar ficar submerso
até que o voluntarioso vulcão de água
arremesse você de volta para fora dele.
Federico
Baudelaire - Além da
poesia em verso, já exercitou ou exercita outra forma de linguagem com poesia?
Igor
Fagundes -Na resposta anterior, ficaram indicadas as amarrações de
saberes, sabores, culinárias artísticas, caldeirões poéticos a que me atrevo:
mestiçagem de poesia e filosofia, sanduíche de poesia com ficção, bruxaria de
narrativa com teatro, feitiços da performance. O próprio livro Poética na incorporação ficou expandido como um curta- metragem de
22 minutos sobre seu processo de composição.
O teaser do filme pode ser
Excita-me ser um espantado incorrigível, um atrevido
disciplinado, desde que atravessado por necessidade, mais do que desejo. Toquei instrumentos
musicais, ousei cantar, ser ator, diretor, produtor e dramaturgo. E nunca deixo
de cantar enquanto escrevo. Enceno ou componho poesia quando, em aula, me forjo
professor. Sem querer, mas, também, sem não querer. É a terra onde piso:
escrever, cantar, dar aula são uma espécie de reza, de culto, de mito.
Proferir uma palestra é uma oportunidade de
intervenção poética e de abrir uma gira, dar tempo ao templo. Elaborar uma
crítica de arte me transpõe para um estado de poesia muitas vezes mais pungente
do que quando elaboro um poema, embora isso não seja regra. Teorizar e praticar
poesia são dualidades e antagonismos que não me cabem. Mesmo com o terno e a
gravata das normas técnicas, com as recomendações rígidas de uma tese, de um
artigo científico, dos protocolos e cerimônias acadêmicas, continuo –
malandramente – de pés descalços: desnudo para as encantarias da Jurema, para o
risco da diferença, como convém às macumbas de seu Zé Pelintra.
Federico
Baudelaire - Qual poema escreveu quando teve uma pedra no meio do
caminho?
Igor
Fagundes - Todos. Desde que,
como já disse, tenha visto caminho no meio de uma pedra.
Federico
Baudelaire - Revisitando
Quintana: você acha que depois dessa crise virótica pandêmica, quem passará e
quem passarinho?
Igor
Fagundes - “Abre a roda, oh, deixa a Pombagira
passear... / Ela tem peito de aço, ela tem / peito de aço e coração de sabiá”.
Fascistas, sociopatas, psicopatas, dogmopatas passarão. Outros virão. Aqueles
que se enclausuram na espera pela volta de um Jesus tão salvador quanto
punitivo ainda não se fizeram passarinhos, porque Jesus não cessa de pousar no galho
de uma árvore e voar para dentro da gente. Os que, em nome dele, matam, já se mataram.
Repare e voe agora comigo: o temido coronavírus é um vírus que lembra uma coroa.
Nessa coroa de espinhos, que é o vírus, Cristo volta, renasce, prega-nos sua palavra,
oferece-nos a cruz, roga silêncio, renúncia e torce por nosso ressurgimento.
Coronavírus: coroacristo. Brinco? A brincadeira é um modo
seríssimo de pensar. O vírus não vem para destruir, castigar. Já estávamos nos
destruindo desde que, nos primórdios do Ocidente, Prometeu roubou o fogo dos
deuses. O vírus é uma resposta a nós, destruidores, e um convite à
reconstrução. O vírus não é, em si, mau ou bom, mas advém como apelo para
questionarmos o sentido de nossas ações. Ele é adversário, não porque inimigo,
mas porque nos faz pensar a vida, vivendo, isto é, morrendo. Bem ou mal será o
que faremos com a vida depois disso tudo, na esperança que haverá “depois”.
No dia de finados, paramos para pensar os mortos.
Comemoramos os mortos, isto é, tornamos vivos, memoráveis, encantados,
infinitos os que aparentemente desencantaram, findaram, finaram. Há mortos mais
vivos do que muitos vivos. E há vivos que já morreram e ainda não sabem.
Exaustivamente repetimos: estamos confinados (con-finados), mas certamente
menos do que aqueles que assustadoramente se confinam e finam nos hospitais.
Por eles, exercemos todos os dias como dias de finados. Mas não estávamos,
antes, findando coletivamente? Eis a guerra: ao mesmo tempo, contra e a favor
de nós. Nesse campo de concentração, que é todo confinamento em tempos de
guerra, quando qualquer um pode ser o próximo a morrer, solidão é um recolhimento
a ser-com. Soltos na rua, seguíamos presos, isolados, ensimesmados, ego- centrados.
Fomos nós que construímos as grades e inventamos uma coletividade feita de paredes.
No afã da ordem e do progresso, precisávamos de um pouco de desordem e regresso.
Regressemos à casa. A esta casa onde estávamos só de passagem, meio turistas.
Vivíamos? Sobrevivíamos. Andávamos? Corríamos.
Demasiadamente acelerados,
atropelamos e fomos atropelados. Creio que ficar em casa não é uma recusa ao
mundo, mas uma renúncia. A renúncia não tira: dá. Renúncia é re-anúncio. Reunamos
forças para desacelerar o movimento dos dias e das noites, a rotação e a translação
do planeta que mora em cada um. Nesse regresso, o esforço é de todos para que,
por um tempo, a Terra gire ao contrário, resistindo ao empuxo dos ponteiros e à dor intransferível de perder pessoas e, com eles, nos perder. Regressar à casa
do humano consiste em reencontrar o húmus da humanidade. Humanidade e humildade
são, no húmus, palavras irmãs.
Confinados, podemos nascer-com e,
assim, renascidos nesse cuidado, chegaremos ao mais plenamente ético e
político. É claro que, quando a doença arromba nossas casas e nos toma sem pedir
licença, todo discurso de esperança e bonança parece uma romantização da tempestade. Mas a “direita” já era e é, sem romances, necropolítica:
por se encontrar demais com normas, por concordar demais com dogmas e, em nome
deles, querer tudo endireitar, enquadrar, vigia, enclausura, pune, exclui, mata. Mas a “esquerda”
comete suicídios: perde-se ao querer encontrar sempre o mais excluído, o mais
marginal dentre os que seguem à margem: o pobre, a mulher, o feminino, o não
branco, o não binário, o gay, o trans, a trans, o idoso, o obeso, soropositivo,
o morador da favela da Maré (mais marginal do que o morador da favela do
Vidigal).
O antinormativo, por vezes, culmina em uma nova utopia, uma normatividade
ou idealidade às avessas. Enquanto a direita muito se une para continuar seu
projeto disciplinador e excludente, a esquerda se desune em seu excesso de discordâncias,
uma vez que as diferenças sempre podem ser mais diferentes e, entre si, gritar
suas distâncias, mais do que tentar alguma proximidade que faça frente ao
terror.
Nesse ponto, a esquerda também se confina em grupos: cada
qual com sua causa, e por uma política afirmativa, involuntariamente cai em
contradições. O dissenso aparece sempre mais poderoso que o consenso: vem dessa
fragmentação tanto a força da esquerda quanto sua lamentável fragilidade. Quero dizer: os
que se põem contra o projeto de ódio, não estão livres de morder a maçã
envenenada e de também envenenar. Fico até um pouco constrangido ao tocar em
assunto tão delicado, porque, a essa altura, como homem e branco, já tenho um
diminuto lugar de fala e, mudo, sofro todo tipo de rótulo (direita,
esquerda...), embora exerça empatia com as minorias. Só que aí vem um vírus
colocar todo o mundo num enorme lugar de escuta e mudez, pois ninguém está livre
da possibilidade de morrer e, talvez, para além de todo moralismo, precisemos eticamente aprender a amar quem jamais nos amou. Essa
entrevista ocorre perto do 13 de maio, quando a Umbanda festeja os
pretos-velhos, os quais ensinam um canto:
“As
almas choram de alegria / quando os filhos se combinam / também choram de
tristeza /quando não quer combinar”.
Quem passarinho? Quem encontrar, em
cada lugar de fala, um lugar de
escuta e, nesse entre-lugar, uma terceira margem em meio ao isto ou aquilo, ao isto contra aquilo: a encruzilhada
como zona de respiro. Um Deus com inicial
maiúscula não pode nos salvar, seja ele religioso ou político-ideológico,
caso não possua também o minúsculo
tamanho de um vírus, mostrando o quanto somos também minúsculos. O ser humano só é grande quando pensa a sua pequenez.
Um coronavírus pode nos salvar. Quem sabe, um lockdown, um tranca-rua nos
salve. Ao proteger as fronteiras, as portas, os portais, as encruzas, fechando
os maus caminhos para abrir novos e outros, mais promissores, Exu Tranca-Ruas
nos devolverá o poder de ir e vir. Só Exu expulsa o fascismo das pessoas!
Federico
Baudelaire - Escrevendo sobre o livro Pátria A(r)mada, o poeta e
jornalista Ademir Assunção, afirma que cada poeta tem a sua tribo, de onde ele
traz as suas referências. Você de onde vem, qual é a sua tribo?
Igor
Fagundes - Rio nas sete
encruzilhadas. E “rio”, aqui, é o
substantivo líquido da Mãe Oxum, o nome de minha cidade e, também, o verbo irônico, a
gargalhada de Exu. Em geral, definimos a identidade como pertencimento a uma
comunidade. Os povos diaspóricos, por exemplo, os povos ciganos são sem casa:
têm o corpo em trânsito como seu lar.
Sou da tribo de quem não aceita o cercado e se extravia para
a encruza. Para além e para aquém da identidade como um pertencer comum, penso
a identidade como um comum pertencer. É o pertencer mesmo que é comum. E, sendo
comum a todos pertencer à terra, cada pertencimento é incomum, cada
ser-no-mundo é intransferível, próprio. O
pedigree não é nada herdado como um bem já feito sob medida
para mim, mas uma conquista necessária onde, um tanto vira-lata das ruas,
escuto o
“Canto de algum lugar”:
“Todo
dia o Sol levanta / E a gente canta / Ao Sol de todo dia // Fim da tarde a
terra cora / E a gente chora / Porque finda a tarde // Quando a noite a Lua
amansa / E a gente dança /
Venerando a noite”.
Poderia citar Ulisses, que não cessa de
regressar à casa, de postergar seu repouso ao ouvir o canto das sereias,
tornando a viagem sua própria pátria.
Em terras brasileiras, Zé Pelintra é nordestino que,
iniciado ao catimbó da Jurema, sofreu o trânsito para o Rio de Janeiro.
Flanando pelas ruas da Lapa com seu chapéu panamá e terno de linho, jamais
deixa de ser o juremeiro descalço que “vem
das Alagoas” e “toma cuidado com o balanço da canoa”.
Numa espécie de “adequação transgressora”
(a expressão é de Luiz Antonio Simas, em O
corpo encantado das ruas), aprendemos
com Zé Pilintra a malandragem. Malandro não é bandido. Bezerra da Silva canta
ao descer e subir o morro: “malandro é
malandro e mané é mané”. Zé Pelintra
sabe a diferença entre transgredir e subverter. Subverter é verter para baixo,
tirar da frente. É, pois, subjugar, subordinar, subalternizar, em suma,
eliminar – coisa de mané.
Nisso, possivelmente inverte a posição de oprimido e
opressor. Malandro que é malandro não bate de frente: ao virar a esquina, faz a
curva aberta, pois não sabe quem vem, ou seja, não ignora o que pode cruzá-lo.
Mas o cruza e, sinuoso, flexível, o enfrenta pelo diálogo. Malandro que é
malandro chama para a ginga: golpeia enquanto recua, sabe recuar para avistar a
brecha, habitar fresta e – fosse um capoeira – tornar a guerra, uma espécie de
jogo e dança. Atravessando a rua (e sendo por ela atravessado), o malandro
cumpre-se através: é travessia (trans-vertere e, não, sub-vertere). A subversão
pode, em vez de transgredir, agredir. Assim, malandramente, sou capaz de me
adequar a todas as tribos (dos tradicionais aos inventores de moda, dos
pré-antigos aos pós-modernos, da cultura popular à erudita), transgredindo-as e
misturando-as como acúmulo vital. Nesse entre-lugar, aprendo a jogar, a lutar,
a dançar “no balanço da canoa”.
Venho do corpo: meu exílio e minha pátria. Venho da palavra: minha pátria e meu exílio. Por isso, se há nome para
a tribo, prefiro – sacana, isto é, só de sacanagem – que a chamem de “macumba”. Luiz
Antonio Simas e Luiz Rufino escrevem no livro Fogo no mato: “macumba vem muito provavelmente do quicongo kumba:
feiticeiro (o prefixo “ma”, no
quicongo, forma o plural). Kumba também designa os encantadores das palavras,
os poetas. Macumba seria, então, a terra dos poetas do feitiço; os encantadores
de corpos e palavras que podem fustigar e atazanar a razão intransigente e propor
maneiras plurais de reexistência pela radicalidade do encanto, em meio às doenças
geradas pela retidão castradora do mundo...”.
Para além do território religioso, macumba evoca a dimensão encantatória do humano enquanto aquele
que mora na linguagem; aquele que na
linguagem transita e sofre o transe. Wittgenstein, depois de uma gira de macumba, certamente descobriu que “os limites do mundo são os limites da linguagem”. Sou pirata nesse mundo-encruzilhada de
poéticas, culturas e mitos. A propósito, Sophia Andresen, portuguesa que mora
nos gregos, escreveu o poema
“Pirata”:
“A
minha pátria é onde o vento passa, / A minha amada é onde os roseiras dão flor
/ O meu desejo é o rastro que ficou das aves / E nunca acordo deste sonho e
nunca durmo”.
Não quer dizer, conforme o “Cântico negro”, que eu vá –
alienado – aonde me chamem:
“Vem por aqui – dizem-me alguns com os olhos doces /
Estendendo-me os
braços, e seguros / De que seria bom que eu os ouvisse (...)
// Ah, que ninguém me dê
piedosas intenções / Ninguém me peça definições!/ Ninguém me
diga: “vem por aqui”!
/ (...) / Não sei por onde vou / Não sei pra onde vou / Mas
sei que não vou por aí!”.
Federico Baudelaire - Nos dias atuais o que é ser um poeta,
militante de poesia?
Igor
Fagundes - Desconfio de toda
poesia que queira, primeiro, ser política para, depois, ser poética.
Como “um cão latindo
dentro de uma casa vazia” (Alberto da Cunha Melo salta na memória), o poeta é um militante (sem ser
militar!). Se carece de um acréscimo, de “um a mais”
que o consagre marginal, questionador, à margem, certamente não é poeta. Consciente ou não, o poeta é sempre um encantador de
serpentes.
Nos dias atuais, muito artista precisa dar palestra antes ou depois de
apresentar sua arte, a fim de legitimá-la como tal e mostrar toda a genialidade
e conceito que há “por trás” dela. Se a obra precisa de
legenda, se a questão não se move na superfície da obra, parece-me que ela não é capaz de obrar e, portanto, culmina em retórica.
Creio na política pela poética, a partir da poética. A poética fundada em
qualquer ideologia se esgota no seu próprio fundamento ideológico. Desse modo,
sua utilidade – esgotada em si mesma – se torna descartável e, pasmem, inútil.
A poesia não deve ser um meio para, mas o próprio fim, a própria necessidade.
Isso não significa alienação ou romantização do poético, mas comprometimento
maior com a vida da vida: que é serpente e é encanto. Como tal afirmação de
vida (e não estrito fetiche estético-alegórico), a poesia é inútil, na medida em
que também a felicidade é inútil. Passamos a vida fazendo algo para...
Estudamos para termos trabalho. Trabalhamos para ganhar dinheiro. Recebemos
dinheiro para comprar uma casa. Compramos a casa para nos proteger do frio, do
calor e para morar com nosso amado, e para criar os nossos filhos. Casamos e
criamos os filhos para... Em última instância, tudo é para a felicidade. Esta,
como o fim de todos os fins, não serve a mais nada, nem é meio para coisa
alguma fora dela, porque ela já é toda a necessidade.
Não servindo a nada, a poesia se alforria e abdica de ser
serva, escrava, empregada. Em um mundo servil, utilitário, pragmático,
sistêmico, funcional não servir é uma nobreza.
Em seu suposto ócio, o poeta – fora dos negócios – realiza o
humano, torna-o fértil e, assim, ao contrário do que pensam os idílicos, traz
mais para a terra a própria terra.
Nada que ver com o estéril. A fertilidade ou felicidade está
em militar sendo poeta, nem mais, nem menos, num mundo em que sempre morreremos
de tristeza.
Federico
Baudelaire - Que pergunta não fiz que você gostaria de responder?
Igor
Fagundes - Que resposta eu
dei que não foi pergunta?
Fulinaíma
MultiProjetos
portalfulinaima@gmail.com
(22)99815-1268 - whatsapp
Igor sendo Igor, isto é: excelência, inteligência, sensibilidade à flor da fala.
ResponderExcluirUma aula sobre o tudo que podemos considerar de humano: poesia e vida. UM SHOW! Grande Igor Fagundes! Aplausos de pé.
ResponderExcluir