sexta-feira, 22 de maio de 2020

Ricardo Leão - EntreVistas



Em 2013 a 7ª Felis, Feira do Livro de São Luís do Maranhão, teve a curadoria do multipoeta Celso Borges e a convite dele, lá estive para um Oficina de Poesia Falada e performances poéticas pelos espaços do Centro Histórico. Ainda  na memória, a apresentação que fiz, ao lado de Lirinha (Cordel do Fogo Encantado), na janela de um dos casarões do Centro Histórico, falando para um público que passava em cortejo pelas ruas, inesquecível.  também escalados pelo Celso para algumas atividades da Feira. Um dos poetas homenageados deste edição de 2013, foi o poeta Salgado Maranhão que no momento  da abertura da Feira, me apresentou ao poeta Ricardo Leão ( a rima não é por acaso). Como o Ricardo naquele instante tinha uma atividade para falar sobre  poesia de outro poeta maranhense, Nauro Machado, (na foto acima), e de Ivan Junqueira, não tivemos tempo naquele momento para um bate papo, o que passou a ser intensificado algum tempo depois pelo facebook, onde o Ricardo me confessou hoje ser o seu "museu".


Ricardo Leão é o nome literário de Ricardo André Ferreira Martins. Nasceu em São Luís do Maranhão, aos 2 de março de 1971. Poeta, ficcionista, ensaísta, professor universitário. É autor dos seguintes livros: Simetria do parto (2000, poesia, Editorial Cone Sul, Prêmio Xerox de Poesia), Tradição e ruptura: a lírica moderna de Nauro Machado (2002, ensaio, SECMA), Primeira lição de física (2009, poesia, SECMA, Prêmio Gonçalves Dias de Poesia), Os dentes alvos de Radamés (2009, 1ª. edição, SECMA, Prêmio Gonçalves Dias de Ficção; 2016, 2ª. edição, Benfazeja), No meio da tarde lenta (2012, poesia, Paco Editorial) e Os atenienses e a invenção do cânone nacional (2011, ensaio, 1ª. edição, Ética, Prêmio de Ensaio da Academia Brasileira de Letras de 2012; 2013, 2ª. edição, Instituto Geia), A plumagem do silêncio (2015, poesia, Nobres Letras), Minimália ou O Jardim das Delícias (2017, poesia, Penalux), A episteme do efêmero (2020, poesia, Patuá).


Artur Gomes - Como se processa o seu estado de poesia?

Ricardo Leão - Na realidade, entendo o dito “estado de poesia” como entendo o estado de qualquer outra arte. Todo artista, como um músico ou um pintor, por exemplo, têm fases em que são mas produtivos, outras em que são menos produtivos, intercaladas por algumas fases, às vezes longas, de silêncio ou nenhuma atividade criativa. No entanto, em todas elas o artista sério ao menos exercita suas técnicas e habilidades. Como um músico que precisa de muitas horas de treino ou um ator que tem muitas horas e dias de ensaio antes de executar algo em público, um poeta também precisa passar por longos períodos de leitura, de escrita e reescrita de seus textos, muitas vezes frustrantes, que antecipam períodos de criação abundante.

Não existem, a meu ver, segredos esotéricos na atividade artística, a não ser aqueles que os artistas não desejam confessar ou revelar ao público. No meu caso, tenho técnicas que antecipam a escrita: leio muito, exercito textos, reviso outros, e, em determinados dias e ocasiões, a necessidade da escrita se impõe mais que em outros. Posso decidir previamente se quero escrever sonetos ou quartetos, como também poemas livres, assim como um músico experimentado sabe se um determinado ritmo ou melodia se conforma melhor a um samba, um blues, um rock ou uma sinfonia. 

Afora isso, digo que o dito “estado de poesia”, para um poeta comprometido existencialmente com sua arte (como para qualquer escritor ou artista com a mesma convicção), é diário e permanente. Não há dias em que deixamos de ser poetas ou deixamos de ser artistas. Quando dominamos os recursos expressivos de nossa arte, tudo é arte, a qualquer momento algo pode nos suscitar um poema.

Pode ser uma conversa, embora na maior parte das vezes é a leitura, como também uma reflexão, uma meditação, um pensamento, qualquer coisa que nos assombre ou nos leve a uma epifania. Hermeto Pascoal é o um exemplo típico desse tipo de artista que menciono: a qualquer momento um determinado conjunto de sons pode se transformar em música em suas mãos, imediatamente convertida em partitura. Para mim, esse é o verdadeiro “estado da arte”, existencial e diário.

Artur Gomes - Seu poema preferido? Próprio. Ou de outro poeta de sua admiração.

Ricardo Leão - Não consigo determinar isso em minha suposta obra. Há muitos poemas que gosto muito, como alguns que hoje me arrependo de não tê-los trabalhado melhor. De poetas de minha admiração, cito Tabacaria, de Fernando Pessoa.

Dos meus, há uma seleção de poemas que fiz para a Revista Germina e O LIVRO  DOS SONHOS, está entre eles.


O LIVRO DOS SONHOS

                   

O livro que nunca fiz
Hoje teria um prêmio.
Seu título jaz, ilegível, 
No lábio dos homens.

Nunca fora publicado,
Escrevi-o todo em sonho.
Mas dado, um dia, a lume,
Dorme à sombra do olmo.

Leio-o sozinho, às vezes,
No encosto da poltrona,
Diante das páginas mudas
Onde brotam nulos poemas.

Procuro-o, roto e abstrato,
Em surdos alfarrábios,
Ou nas letras ignoradas
Dos esconsos alfabetos.

Apagado para sempre
Do reino das palavras,
Meu livro não tem nome:
Onírico, huno, visigótico,

Clarividente, enigmático,
Calado eternamente
Na boca sem dentes
Do invisível silêncio.


                   
Artur Gomes - Qual o seu poeta de cabeceira?


Ricardo Leão - Leio muitos poetas, todos os dias. Mas, se tiver que apontar um entre os quais aprendo diariamente o ofício da palavra, é o maranhense Nauro Machado, cuja obra desafiadora o país ainda está por conhecer, compreender e admirar.

Artur Gomes - Em seu instante de criação existe alguma pedra de toque, algo que o impulsione para escrever?

Ricardo Leão - A leitura. Sempre a leitura. Todos os dias.

Artur Gomes - Livro que considera definitivo em sua obra?

Ricardo Leão - Não considero nenhum de meus livros definitivos. Tento sempre me superar a cada livro, a cada poema. Estou permanentemente insatisfeito com o que escrevo.

Artur Gomes - Além da poesia em verso já exercitou ou exercita outra forma de linguagem com poesia¿

Ricardo Leão - A prosa poética, de tons surrealistas, fantásticos e absurdos, em meu livro Os dentes alvos de Radamés, premiado em um concurso pelo Maranhão e depois republicado em 2016 pela Editora Benfazeja, de São Paulo.

Artur Gomes - Qual poema escreveu quando teve uma pedra no meio do caminho?

Ricardo Leão - Muitos. Alguns de meus poemas foram pedras em meu caminho durante anos. Um deles, um dos mais elogiados e conhecidos, Exercício de metalinguagem, demorei 10 anos burilando sua forma e escrita.


EXERCÍCIO DE METALINGUAGEM



&. Esquecer a linguagem do homem
      e sorvê-la, líquida e lenta:
      fazê-la mais espessa e mais densa,
      mais grave que o eco dos abismos.

&. Fazê-la mais leve que a manhã
     ou a noite, para após apurá-la
     no mais seco e lúcido silêncio,
     e tenha algo de belo e amargo.

&. Para que tenha algo de insípido,
      e que seja aguda e corrosiva;
      e flua, diuturna e transparente,
      em sílabas acres e paladares.

&. Esquecer a linguagem ou o homem,
      atomizá-lo dentro do poema,
      para que, enfim, a palavra cresça,
      e pulse entre as colunas do eterno.


Artur Gomes - Revisitando Quintana: você acha que depois dessa crise virótica pandêmica, quem passará e quem passarinho?

Ricardo Leão - Não tenho a mínima ideia. Sei que há muitos perversos no poder, e perversos no poder é a coisa mais difícil de arrancar, pois as pessoas ficam intoxicadas pela perversidade durante algum tempo. Mussolini ascendeu ao poder em 1922 e só caiu em 1945. As ditaduras franquista e salazarista atravessaram 50 anos de poder. Os tempos são outros, mas a liberdade é algo frágil. Sinto que estamos cada vez mais próximos de perdermos nossas liberdades individuais que em qualquer outra época conhecida de nossas existências, em muitos países. Talvez nós passemos, e os abutres fiquem por um tempo que não podemos mensurar, pois estaremos mortos.

Artur Gomes - Escrevendo sobre o livro Pátria A(r)mada, o poeta e jornalista Ademir Assunção, afirma que cada poeta tem a sua tribo, de onde ele traz as suas referências. Você de onde vem, qual é a sua tribo?

Ricardo Leão - Sou nascido em São Luís do Maranhão. Portanto, São Luís é a minha tribo. Orgulhosamente. Aprendi a escrever poesia por causa, sobretudo, de poetas maranhenses, em São Luís. É a minha Ítaca.

Artur Gomes - Nos dias atuais o que é ser um poeta, militante de poesia?

Ricardo Leão - Acho que ser poeta é essencialmente ser um artista da palavra, como um músico é um artista da composição musical, ou um pintor é um artista da expressão visual sobre uma tela. Acho a palavra “militante” de origem semântica muito militar, aquele que combate e luta, e não gosto de conotações e existências militarizadas. Penso que não devemos nos alienar, entretanto, da existência e da luta contra os perversos. Mas isso requer algo que já fazemos: a capacidade de ridicularizar e expor os perversos através da arte. É isso que a arte tem feito ao longo dos séculos: denunciar os desumanizados, aqueles que têm sede de poder pelo poder, os que desejam massacrar o humano e impor o desumano e a perversão, o nada, o sofrimento. Ser um artista é, essencialmente, ser um inconformado com o sofrimento humano, em todas as suas formas.

Artur Gomes - Que pergunta não fiz que você gostaria de responder?

Ricardo Leão - Nenhuma. Estou satisfeito.

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