sexta-feira, 22 de maio de 2020

Divanize Carbonieri - EntreVistas



 nome e o sobrenome Divanize Carbonieri, de cara me chamaram a atenção quando li pela primeira vez no face. Depois descobri e passei a seguir diariamente, o seu Ruído Manifesto. Daí a adicioná-la no face foi um pulo, um salto, a ponte para levar a contundência estrutural da sua poesia para a Balbúrdia Poética. 

No momento que vi que ela é do Mato Grosso, me vieram a memória, duas lembranças inesquecíveis: a primeira, da minha querida amiga Michela Sàto, bióloga da Universidade Federal do Mato Grosso,  que escreveu o prefácio do Juras Secretas

A segunda, mais hilária, a lembrança de que já fui membro de Comissão Julgadora de Escola de Samba em Corumbá, Mato Grosso do Sul.

São esses encontros ao acaso, que acredito não sejam em vão e que muitas vezes me levam a um "estado de poesia", que nem sei mesmo como poderia  explicar.



Divanize Carbonieri é autora dos livros de poesia Entraves (2017), agraciado com o Prêmio Mato Grosso de Literatura, Grande depósito de bugigangas (2018), selecionado pelo Edital de Fomento à Cultura de Cuiabá/2017, A ossatura do rinoceronte (2020) e Furagem (2020), além da coletânea de contos Passagem estreita (2019), selecionada pelo Edital Fundo 2019/Cuiabá 300 anos. No Prêmio Off Flip, foi segunda colocada na categoria conto na edição de 2019 e finalista na categoria poesia nas edições de 2018 e 2019. É uma das editoras da revista literária digital Ruído Manifesto e integra o Coletivo Literário Maria Taquara, ligado ao Mulherio das Letras/MT. Site: https://www.divanizecarbonieri.com.br.

Artur Gomes -  Como se processa o seu estado de poesia?

Divanize Carbonieri - Não existe uma única maneira. Às vezes o poema parte de uma palavra. Uma palavra que, por alguma razão, tenha me vindo à mente e ficado rodando ali. Daí escrevo um poema para essa palavra. Em outras ocasiões, um ou dois versos surgem meio que do nada, e tenho que batalhar para compor o resto do poema. Também é frequente o poema partir de uma imagem observada direta ou indiretamente ou imaginada. Depois da questão imagética, eu acho que vem a sonoridade, uma vez que, durante a escrita, sou tomada por uma verdadeira dança de sílabas e sons, vogais e consoantes que vão trocando de pares enquanto o poema se concretiza.

Artur Gomes - Seu poema preferido?

Divanize Carbonieri - São muitos. Para citar só alguns: Soneto 60 de Shakespeare (“Like as the waves make towards the pebbl’d shore”); Soneto 003 de Camões (“Busque Amor novas artes, novo engenho”); “Canção do exílio” de Gonçalves Dias; “Pus meu sonho num navio” de Cecília Meireles; “Elegia 1938” de Carlos Drummond de Andrade; “Momento num café”  de Manuel Bandeira; “The road not taken” de Robert Frost; “Still I rise” de Maya Angelou; “Casamento” de Adélia Prado; “Periférica” de Luciene Carvalho; “Não vou mais lavar os pratos” de Cristiane Sobral; “Adoro os grandes capitalistas” de Adriane Garcia. E uma infinidade de outros porque depende do momento em que estou vivendo.

Dos meus fico com Ossada do livro A Ossatura do Rinoceronte - Editora Patuá - 2020

OSSADA

boiou na superfície a terça parte do úmero
mais adiante ressurgiu metade do rádio
o fragmento de um corpo de ílio solitário
apareceu grudado num pedaço de fêmur
emergiu impávida uma tíbia partida
e por fim erguida uma fíbula fraturada
quem está desaparecida torna-se ossada
filha mulher irmã só depois de exumada
entranhada no osso a história do carma
mas não o sonho que tem que ser içado
das profundezas do oceano paralisado
marinheiro conduzindo o navio-fantasma

 Artur Gomes - Qual o seu poeta de cabeceira?

Divanize Carbonieri - Todas e todos e nenhuma e nenhum ao mesmo tempo. Tudo o que eu leio me influencia, mas não há poeta a quem eu sempre recorra.

Artur Gomes - Em seu instante de criação existe alguma pedra de toque, algo que o impulsione para escrever?

Divanize Carbonieri - Uma coisa do universo prático: florais australianos. Embora não funcione sempre, na maioria das vezes dá algum resultado satisfatório na ignição da escrita.

Artur Gomes -  Livro que considera definitivo em sua obra?

Divanize Carbonieri - Não considero nada definitivo, ainda mais na minha obra, que está em construção.
Artur Gomes - Além da poesia em verso, já exercitou ou exercita outra forma de linguagem com poesia?

Divanize Carbonieri - Já escrevi um livro de contos que lancei no ano passado, Passagem estreita (Carlini & Caniato, 2019). Muitos leitores desse livro já me disseram que ele é bastante poético na construção da linguagem e das imagens. Busquei escrever os dezenove contos que o compõem com estilos diferentes e variedades distintas de português (umas mais populares, outras mais cultas, outras com termos arcaizantes, etc). Mesmo na narrativa, a linguagem é muito importante para mim e, enquanto não encontro a linguagem que uma determinada situação ou personagem exige, a escrita não avança.

Artur Gomes - Qual poema escreveu quando teve uma pedra no meio do caminho?

Divanize Carbonieri - Meu primeiro livro de poesia, Entraves (Carlini & Caniato, 2017), é, como o próprio título indica, inteiro sobre essas pedras encontradas pelo caminho. Cada um dos poemas presentes ali traz essa ideia do obstáculo, da dificuldade, do travamento comuns nas trajetórias humanas. Além disso, a noção de trava também conduziu a própria concepção poética porque os poemas do livro apresentam travas para o que seria uma leitura mais fluida, seja no nível do léxico, empregando palavras pouco usuais ou retiradas de outros campos semânticos; seja no nível da sintaxe; seja no nível da estrutura, principalmente através do recurso da fragmentação. Acredito que o poema “Entraves” (que dá nome ao livro) é um bom exemplo desses três níveis de travamento.

ENTRAVES

no afã de desligar o liquidificador
deslocou o tendão de aquiles
depois de ter lesionado a coluna
ao acionar o interruptor da lâmpada
tendo dilacerado a hérnia inguinal
ao colidir com a máquina de lavar
foi só estancar a hemorragia fluida
e distensionar o músculo deltoide
para desarrolhar o gargalo oblongo
espirrando o espesso licor no olho
até conter a lágrima no pó compacto
mais uma quina a estraçalhar seu pé
um talho rasgado em plena epiderme
não é qualquer falha de caráter que torna
arrastado o existir por entre trastes
é o completo sequestro da sanidade
que arruína para sempre toda a chance
de se desentulhar os últimos entraves

Artur Gomes - Revisitando Quintana: você acha que depois dessa crise virótica pandêmica, quem passará e quem passarinho?

Divanize Carbonieri - Impossível de prever. Espero que as ideias fascistas passem sem deixar rastro e que as profundas desigualdades causadas pela concentração de renda diminuam significativamente. Espero que as pessoas mais empáticas, solidárias e preocupadas com o planeta sejam os passarinhos que permanecem. Mas tanto pode acontecer isso, como exatamente o contrário.

Artur Gomes - Escrevendo sobre o livro Pátria A(r)mada, o poeta e jornalista Ademir Assunção, afirma que cada poeta tem a sua tribo, de onde ele traz as suas referências. Você de onde vem, qual é a sua tribo?

Divanize Carbonieri - Eu sou uma loba solitária. Tenho boas relações com um grande número de pessoas e transito por vários grupos, mas nunca senti que pertencia a um especificamente, a um mais do que a qualquer outro. Na verdade, essa ideia de pertencimento acentuado não é uma coisa que me preocupa. Talvez quando eu era bem mais jovem, tenha pensado que pertencer a um grupo para valer fosse algo realmente importante (embora nunca tenha conseguido). Mas hoje não mais. Prefiro mesmo essa flutuação, estar em toda a parte e não estar em parte alguma, me entrosar com muitas pessoas diferentes sem aquela avidez de estar sempre só com algumas, e também gostar dos momentos solitários. Isso não significa que eu não participe de coletivos. Como eu disse, transito por vários grupos diferentes. Ultimamente eu estaria sendo injusta se não reconhecesse a importância que o Mulherio das Letras, enquanto movimento feminista e literário, e o Coletivo Literário Maria Taquara, ligado ao Mulherio-MT, têm na minha vida. Mas o próprio Mulherio é um movimento com mais de seis mil participantes, de vários locais do Brasil e do mundo. Então, ele é, na sua própria constituição, múltiplo, plural, sem hierarquização ou centralização. Talvez por isso eu tenha me identificado tanto.

Artur Gomes - Nos dias atuais o que é ser um poeta, militante de poesia?

Divanize Carbonieri - Acho que a/o poeta é uma pessoa comum, como todas as outras. Alguém que também tem uma vida cotidiana, que precisa pagar contas, essas coisas. Não entendo a/o poeta como alguém especial, distante da realidade prosaica de todos os dias. Mas a/o poeta também é alguém que tem uma certa função social (outras pessoas têm outras), que, a meu ver, é desnaturalizar o que está naturalizado, lançar luzes sobre o que passa batido, alargar a linguagem para além de sua função informativa, referencial, arranhar o inatingível. Claro que outros tipos de artistas também se caracterizam por isso. A arte tem essa importância: mostrar algo que, sem ela, não seria visto.

Artur Gomes - Que pergunta não fiz que você gostaria de responder?

Divanize Carbonieri - Não consigo pensar em nenhuma. Acho que sua entrevista foi bem abrangente.


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