segunda-feira, 11 de maio de 2020

Ronaldo Werneck - EntreVistas

Arte Digital - Ademir Antonio Bacca

Ronaldo Werneck é outro poeta cujo meu primeiro contato vem lá dos anos 80 Mostra Visual de Poesia Brasileira, com Joaquim Branco e Hugo Pontes formava a santíssima trindade mineira,  presente com seus poemas processos, visuais,  experimentais,  nas edições da MVPB.

Durante o tempo em que morou no Rio de Janeiro, foram constantes nossa troca de correspondência via correios. Depois que voltou para Minas e se refugiou no seu berço em Cataguases, passamos um bom tempo sem contatos.

A partir dos anos 2000 passamos a nos encontrar anualmente, em Bento Gonçalves-RJ nas edições do Congresso Brasileiro de Poesia, onde em 2014, foi o poeta homenageado.

Nos encontramos novamente no Rio, duas vezes em 2019, na Balbúrdia Poética, em La Taberna de Laura, em Copacabana  e no Sarau do Anand Rau, em Botafogo.

Tenho quase certeza que estivemos juntos numa reunião com o Françóis Fusco, e Joaquim Branco certa vez em Cataguases, mas ele dirá que "Há Controvérsias".


Artur Gomes - Como se processa o seu estado de poesia?

Ronaldo Werneck – Como na construção de um poema (em) processo. Não é propriamente um “estado”, mas um “país” em constante ebulição. Vem do escuro da noite(a poesia), mas não é sua inimiga: antes, anuncia a manhã, alvorece com o dia. Num permanente entrecruzar de palavras. Um pouco como aquele galo-palavra do João Cabral que, se “sozinho não tece uma manhã”, é com muitas palavras-galo que

“com muitos outros galos se cruzem/ os fios de sol de seus gritos de galo,/ para que a manhã, desde uma teia tênue,/ se vá tecendo, entre todos os galos”. 

Essas palavras-galo: meu estado – perdão, país – de poesia.

Artur Gomes - Seu poema preferido? Próprio. Ou de outro poeta de sua admiração.

Ronaldo Werneck –Um dos muitos poemas que co-meti? (aboutade me lembra um fragmento de um dos poemas de meu livro “Doris Day by Night”: hamlet´stryagain:/ meter ou não me ter).

Talvez o poema mais recente, mais up-to-date: “A Peste Pede Passagem” (está no meu blog: http://ronaldowerneck.blogspot.com/), ou talvez um dos primeiros,

“23/10/168”:

hoje tenho 25 anos
e queria escrever ócio
mas minhas palavras são de aço

hoje tenho 25 anos
e a poesia é difícil
mas o poema é meu ofício

hoje tenho 25 anos
e a poesia me chama
faço o poema como quem ama.

Um poema do(s) outro(s)? São tantos, do tudo-tão- pouco que já li. Difícil destacar um só. Um Maiakóvski cai bem:  

“O poeta/ é o eterno/ devedor do universo/ e paga/ em dor/ porcentagens/ de pena./Mas a força do poeta/ não se reduz só/ a que te lembrem/ no futuro/ entre soluços./ Não!/ Hoje também/a rima do poeta/ é carícia/ slogan/ açoite/ baioneta”.

Um Drummond também:

Admito que amo nos vegetais a carga de silêncio, Luís Mauricio./Mas há que tentar o diálogo quando a solidão é vício”.

Ou um Rimbaud:

Oh! que maquilleéclateOh! que j'aille à lamer!”/... / Toutelune est atroce et tout soleilamer”.
Um Ungaretti no máximo de contenção como naquele definitivo
“Mattina: M´illumino d´immenso”

Quem sabe um  Mallarmé:

“ ...sansprésumer de l’avenirqui sortira d’ici, rien ou presqueun art...”.

Todo aquele João Cabral eternizado por

“Alguns Toureiros: “...  sim, eu vi Manuel Rodríguez,/ Manolete, o mais asceta,/ não só cultivar sua flor/mas demonstrar aos poetas:/como domar a explosão/ com mão serena e contida,/ sem deixar que se derrame/ a flor que traz escondida,/ e como, então, trabalhá-la/ com mão certa, pouca e extrema:/ sem perfumar sua flor,/sem poetizar seu poema”.

Ou talvez, quem sabe?

O poema das Bacantes em “A Reconstrução” do Mário Faustino (dos poucos que sei de cor, talvez por seguir o lema de sua página “Poesia-Experiência no velho-sempre-novo SDJB, o Suplemento Dominical do Jornal do Brasil: “Repetir para aprender, criar para renovar”. 

Et pour cause:

(...)

E nos irados olhos das bacantes
Finalmente descubro quem procuro.
Não eras tu, Poesia, meras armas,
Pura consolação de minha luta.
Nem eras tu, Amor, meu camarada,
Às costas me levando, após a luta.
Procurava-me a mim, e ora me encontro
Em meu reflexo, nos olhares duros
De ébrios que me fuzilam contra o muro
E o perdão de meu canto. Sobre as nuvens
Defronte mãos escrevem numa estranha,
Antiquíssima língua estas palavras
Que afinal compreendo: toda vida
É perfeita. E pungente, e raro, e breve
É o tempo que me dão para viver-me,
Achado e precioso. Mas saúdo
Em mim a minha paz final. Metade
Infame de homem beija os pés da outra
Diva metade, enquanto esta se curva
E retribui, humilde, a reverência.
A serpente tritura a própria cauda,
O círculo de fogo se devora,
Arrasta-se o cadáver bem ferido
Para fora do palco:
este cevado
Bezerro justifica minha vida.

Artur Gomes - Qual o seu poeta de cabeceira?

Ronaldo Werneck –Fora os já citados, outros e outros, de Murilo Mendes a Octavio Paz, de Eliot a Manuel Bandeira, de Pound a Jorge de Lima, de Camões a e. e. cummings, de Cecília Meireles a Wisława Szymborska– entre os conhecidos,“ou não” (como diz o Caetano). E aqui volto ao fundamental Maiakóvski:

“Eu/ à poesia/ só permito uma forma:/ concisão/ precisão das fórmulas/matemáticas”.
 Ou dele ainda, antecipando cerca de um século atrás este nosso tempo de terraplanistas, terraplenagens & outras sacanagens:

“Quem quiser/ uma prova/ de que a terra é curva,/sentado/ sobre as próprias nádegas,/ resvale!”.

Artur Gomes - Em seu instante de criação existe alguma pedra de toque, algo que o impulsione para escrever?

Ronaldo Werneck – Certa vez um crítico disse que eu era um poeta da imagem. De certa forma, tinha razão. Sou levado muitas vezes pelo que vejo, atento ao mundo à minha volta. E a imagem é sempre muito forte (daí meu fascínio pelas artes plásticas, pela fotografia e, por extensão, pela fotografia em movimento, pelo cinema).

Contradizendo o Evangelho de João, para mim no início era a imagem, o verbo veio depois. E essa “imagem-mater” acaba por se refletir na própria construção espacial de meus poemas, do concretismo ao poema processo. Gertrude Stein afirmou certa vez: “escrevo com meus olhos e não com meus ouvidos ou minha boca”. E confessa ainda que aprendeu a sua arte não apenas com o realismo de Flaubert, como com as pinturas de Cézanne e Picasso (de quem foi amiga).

Para Stein, a escrita se faz pelos olhos – porque o que se compõe em uma obra, para ela, vem sobretudo daquilo que é dado a ver a cada pessoa em sua diferença.  A obra – qualquer obra – é um transplante de olhos: dá a ver de modo único aquilo que unicamente vê quem escreve.

Artur Gomes - Livro que considera definitivo em sua obra?


Ronaldo Werneck – É comum os escritores, poetas principalmente, execrarem seu primeiro livro. Eu vou na contra corrente: acho que a publicação em 1976 de “Selva Selvaggia”, meu livro de estreia, foi de grande importância em minha trajetória. Apesar de todos os seus “tiques de estreante” (mas também com suas pedras-de-toque que perduram), gosto dele até hoje.

Não por acaso, “Selva Selvaggia” foi revisitado em meu livro “Revisita Selvaggia”, de 2005, e ocupa várias páginas de minha obra mais recente, “Momento Vivo”, de 2019. Já estava em “Selvaggia” uma de minhas bandeiras:

“O poema é veículo/ a poesia carga nobre:/suor e insight”.

Artur Gomes - Além da poesia em verso já exercitou ou exercita outra forma de linguagem com poesia?

Ronaldo Werneck– Sim, já publiquei ensaios (sobre o cineasta Humberto Mauro, sobre o romancista Rosário Fusco) e dois livros de crônicas da série “Há Controvérsias” (o terceiro vem por aí, se o coronavírus deixar). Com poesia, é a pergunta? Sim, a poesia acaba tomando de assalto tudo o que escrevo.


Artur Gomes - Qual poema escreveu quando teve uma pedra no meio do caminho?

Ronaldo Werneck – Não que propriamente eu o tenha “escrito”,  na verdade ele foi desenhado. Trata-se do meu poema visual “Libertarde”, início do meu “namoro” (xô, Regina Sem Arte!) com o poema processo. A “pedra”, no caso, era o caminho de Minas e sua bandeira, remetendo ao “Libertas quae sera tamen” (o famigerado “Liberdade que será também” na tradução-adolescente do jovem Vinicius de Moraes).

Foi de início construído de maneira precária, a lápis, com um maço de cigarros servindo de régua/contorno do(s) triângulo(s) e uma moeda que me proporcionou o círculo. O triângulo começava pequeno, dentro do círculo, e ia num crescendo, dialeticamente, como num salto qualitativo, até que ultrapassava o círculo, que se mantinha inalterado em todo o “processo”.

O título (a pedra-de-toque) dava a leitura que se propunha. Não é que deu certo? “Libertarde” foi publicado em 1973 na seção de poesia que o Affonso Romano de Sant´Anna editava no Caderno B, com direito, vejam só, a chamada na primeira página do então prestigiado Jornal do Brasil. Depois estampado várias e várias vezes em publicações daqui e do exterior. E, claro, foi um dos poemas visuais que constava do meu primeiro livro, lançado logo depois.  

Artur Gomes - Revisitando Quintana: você acha que depois dessa crise virótica pandêmica, quem passará e quem passarinho?

Ronaldo Werneck –Ficam os que não foram – para dar uma resposta surrealista. Ou, como no lema de La Pasionara, uma das fundadoras do Partido Comunista da Espanha, durante a Guerra Civil: “;No pasarán!”. Os fascistas, também os de hoje, não passarão! Ficam os que vão tragicamente ficando: Aldir Blanc, Sérgio Sant´Anna (que acaba de “ir” exatamente hoje, enquanto escrevo) e outros e outros  artistas, além dos mais de dez mil mortos no Brasil até agora.

A peste pegou “corona” no bonde de nossa história. Eles passarão? Nós, que ficamos (e vamos?), passarinhos? Triste “sin(t)fonia de perdas e pardais”, como eu já disse num de meus poemas.  

Artur Gomes - Escrevendo sobre o livro Pátria A(r)mada, o poeta e jornalista Ademir Assunção, afirma que cada poeta tem a sua tribo, de onde ele traz as suas referências. Você de onde vem, qual é a sua tribo?



Ronaldo Werneck – “Vem da mata o menino/ de mim das minas claras/ de miniminas raras/ .../ vem da mata o menino/ solta-se das gerais/ de si minas não mais” – escrevia eu em 2012 num poema de meu livro “Cataminas pomba & outros rios”.

Minas é muito forte: depois de mais de 30 anos no Rio de Janeiro pra cá voltei. Pra Cá/taguases, daqui, onde “apareci no mundo” (salve, Ary Barroso!) e onde sempre esteve minha “tribo”, desde os tempos dos suplementos literários que editei com o poeta Joaquim Branco, tempos de concretismo e do poema processo: éramos um dos braços mais atuantes do movimento em Minas Gerais. Movimentos (as tribos do anos 60) não mais existem. Hoje resistimos sós. Como eu, também o Joaquim ainda mora aqui, mas a gente se vê muito raramente (um zap, um telefonema e olhe lá) – porém nossa amizade, melhor, nossa “irmandade”, se mantém como antigamente.

Artur Gomes - Nos dias atuais o que é ser um poeta, militante de poesia?

Ronaldo Werneck –Passo a palavra a Maiakóvski. Nada melhor que ele – sempre ele, e olhe que um século atrás – para responder: 

“Para nós/ a rima/ é um barril./Barril de dinamite./ O verso, um estopim./ A linha se incendeia/e quando chega ao fim/ explode/ e a cidade em estrofe/ voa a mil.//.../ A poesia/ – toda –/ é uma viagem ao desconhecido”.

Artur Gomes - Que pergunta não fiz que você gostaria de responder?

Ronaldo Werneck –A pergunta “que não quer calar” seria “Por que você não gosta do Fernando Pessoa?” A resposta talvez fosse: “Sabe que eu não sei?”.

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