sábado, 18 de julho de 2020

Nuno Rau - EntreVistas


Meu primeiro contato com Nuno Rau foi através do facebook, em 2019, estava naquele momento envolvido com a produção da primeira edição da Balbúrdia Poética, que foi realizada na La Taberna de Laura, quando ainda estava situada em Copacabana. No face já tínhamos um grande número de amigos e amigas comuns, entre elas Wanda Monteiro que me sugeriu convidar o Nuno que compareceu e além da leitura de vários de seus poemas, nos brindou ainda com uma leitura, de uma sua tradução para um poema de Jorge Luiz Borges. Desde então acompanho diariamente, suas publicações no face e na Revista Mallarmargens, e tenho o grande prazer de contar com um  texto escrito por ele  para a orelha do meu livro  O Poeta Enquanto Coisa, que será lançado pela Editora Penalux ainda este ano.


 Nuno Rau, arquiteto, professor de história da arte, tem poemas em diversas revistas literárias, e nas antologias Desvio para o vermelho, do Centro Cultural São Paulo, Escriptonita, que co-organizou, e 29 de Abril: o verso da violência. Publicou o livro Mecânica Aplicada, poemas, finalista do 60º Prêmio Jabuti e do 3º Prêmio Rio de Literatura. Ministra oficinas de poesia no Instituto Estação das Letras e é coeditor da revista mallarmargens.com

Artur Gomes - Como se processa o seu estado de poesia?

Nuno Rau - Não é uma resposta simples, acho, e ao mesmo tempo é uma inquietação de muitos poetas uma possível resposta a essa questão, talvez pela vontade de trazer o processo ao domínio da mão (ou do pensamento, que é a mesma coisa). O fato é que esse estado de poesia, pra mim, se assemelha a veios subterrâneos de minério, ou talvez seja melhor imaginar lençóis freáticos, esses rios subterrâneos, que são formados pela água da chuva que penetra o solo e vão escoando pelo interior das camadas de solo até encontrarem um local para a expulsão da água, que pode ser uma nascente. As nascentes seriam os poemas, as camadas de terra seriam a nossa mente, com parte consciente (a superfície) e partes inconscientes (o subsolo). De tudo que observei até hoje, os poemas, pra mim, vão se formando deste modo, a realidade enviando estímulos (fatos, problemas, inquietações, admirações, tristezas, alegrias, que são, reunidos, a chuva que forma os lençóis subterrâneos), e a mente parece ir processando até que, por algum motivo, o poema eclode. A partir daí entra a operação de trabalho sobre essa eclosão, que é a carpintaria do poema, é trabalho, porque essa eclosão é como se fosse apenas um pequeno fio. Benjamin disse que “quem pretende se aproximar do próprio passado soterrado deve agir como um homem que escava”; para o poema vale a mesma ideia.

Artur Gomes - Seu poema preferido?

Nuno Rau - Teria que citar mil poemas aqui, tenho toneladas de poemas preferidos. Mas pra resumir a três, de poetas que já não estão presentes: Elegia 1938, de Drummond, um soneto genial de Fernando Pessoa/Álvaro de Campos chamado Regresso ao lar, e o excerto 113 de Childe Harold, o longo poema de Lord Byron. Mas esses são apenas três exemplos de poemas aos quais retorno por afeto, ou para aprender/reaprender.

Artur Gomes - Qual o seu poeta de cabeceira?

Nuno Rau - Minha cabeceira é um baile funk de poetas. Tem os que mencionei acima, Drummond, Pessoa, Byron, e também Borges, Emily Dickinson, Ana C., Waly, Murilo Mendes, Roberto Bolaño, Cacaso, Piva, João Cabral, Jorge de Lima, Sophia Andresen, Jorge de Sena, Helder, é muita gente, eles fazem um barulho enorme principalmente à noite, o batidão dos versos invade a madrugada e só me deixa dormir quando a lua já vai adiantada no seu curso. De todo modo falo aqui só dos poetas mortos, porque se fosse falar dos vivos ia acabar cometendo algum esquecimento imperdoável, e já tenho perdões demais a pedir por aí.

Artur Gomes - Em seu instante de criação existe alguma pedra de toque, algo que o impulsione para escrever?

Nuno Rau  - Qualquer coisa pode ser o estopim de um poema.

Artur Gomes - Livro que considera definitivo em sua obra?

Nuno Rau - Só tenho por enquanto um livro publicado, o Mecânica Aplicada, que saiu em 2017, ainda que tenha mais três livros (quase) prontos na gaveta (no HD), e outros dois ou três em processo. Então não posso dizer que tenho uma obra, seria uma pretensão e um exagero. Aliás, quando vejo amigos e colegas falando de “suas obras”, penso sempre naquele poema de Ricardo Reis/Fernando Pessoa, me identificando muito:

Sim, sei bem/ Que nunca serei alguém/ Sei de sobra/ Que nunca terei uma obra”.

Fora isso, não acredito em coisas definitivas, é tudo sempre provisório, e num contexto contemporâneo nossas importâncias individuais se aproximam do zero – o grande barato é a conversa, a interação com coletivos que nos alimentem.

Artur Gomes - Além da poesia em verso, já exercitou ou exercita outra forma de linguagem com poesia?

Nuno Rau - Além de poesia, gosto muito de fazer letras para canções. Tenho alguns parceiros que me mandam melodias, a melodia é um exercício da forma fixa, como o soneto e a terza rima, e fazer as palavras conversarem com as notas de uma canção, extrair sentido não só das palavras, mas das sílabas ligadas a certas notas, é uma experiência muito interessante pra quem faz. Tenho um ou outro poema em prosa, que é uma outra forma de expressão bem diferente, mas confesso que gosto da expressão que se obtém pela versura, pelo enjambement

Artur Gomes - Qual poema escreveu quando teve uma pedra no meio do caminho?

Nuno Rau - Acho que todo poema é um indício de que houve, ou há, uma pedra no caminho. O leitor é o detetive (para dizer como Bolaño) que poderá desvendar os indícios.  Nesse sentido, todo poema deve ser uma pedra no caminho do leitor também. Me interessam os leitores que percebam que um poema tem que ser lido e relido, e às vezes trelido, para que se percebam dele as várias camadas.

Artur Gomes - Revisitando Quintana: você acha que depois dessa crise virótica pandêmica, quem passará e quem passarinho?

Nuno Rau - Acho que todos vamos passar, e no fundo isso não tem lá grande importância, já que é um dado incontornável. Como disse alguém que não lembro (talvez eu mesmo), a posteridade sempre chega tarde demais, quando chega. Pensar nisso é deixar de explorar todas as possibilidades do presente, e a vida acontece no agora.

Artur Gomes - Escrevendo sobre o livro Pátria A(r)mada, o poeta e jornalista Ademir Assunção, afirma que cada poeta tem a sua tribo, de onde ele traz as suas referências. Você de onde vem, qual é a sua tribo?

Nuno Rau - Não sei se tenho uma tribo, sequer tenho uma geração. O que seria a minha geração é, hoje, um grupo de poetas que têm “uma obra”, porque começaram a publicar e interagir muito antes de mim (e talvez não erre quem disser que são melhores que eu). Me perdi no meio dos embates da vida em canteiros de obras, pranchetas de desenho, esperas de repartições públicas, e entre esses espaços os trajetos em metrôs, ônibus, automóvel sempre com um livro aberto nas mãos; viver é uma aventura complexa, intensa, conturbada, às vezes até violenta, e fiquei ruminando a escrita de forma isolada dos 15 aos 45 anos.

Nessa idade comecei a descobrir que a poesia e a literatura são atividades sociais, na qual a conversa com os pares é uma parte significativa do processo, uma parte que pode ser boa ou ruim, a depender do modo como você a conduz. Mesmo naquele momento, aos 45 (e com uns dois ou três livros organizados no HD), fiquei pisando no terreno devagar, e levei ainda nove anos pra colocar um primeiro volume de poemas na rua. Nesse meio tempo fui desenvolvendo afetos por pessoas, e tenho hoje, acredito, amigos de várias idades, dos que vieram antes de mim, cronologicamente e editorialmente, e dos que vieram depois, mas não vejo esse círculo como uma tribo – e sou menos ainda afeito a milícias de defesa de territórios simbólicos da poesia contemporânea, ou lotezinhos no Alphaville da posteridade. Meu lance é aprofundar os afetos sem qualquer viés utilitário.

Artur Gomes - Nos dias atuais o que é ser um poeta, militante de poesia?

Nuno Rau - A pergunta é muito interessante, porque toca na questão da escrita poder ser (ou não) contemporânea de seu próprio tempo, e isso é muito menos óbvio do que pode parecer. Do que observo, há muita escrita por aí que não expressa qualquer relação com sua contemporaneidade. Fico com Agamben, que diz que a contemporaneidade é uma relação singular com o próprio tempo, entre aderência e afastamento, ou uma dissociação em paralelo a um anacronismo.

Quem coincide muito com sua própria época não é contemporâneo porque, por isso mesmo, não consegue ver em perspectiva. Ele fala também, citando um poema de Osip Mandel'stam, que o poeta deve fazer colidirem o tempo de sua vida individual com o tempo histórico. Pra mim a poesia seja talvez isso, essa conversa cheia de atrito entre o micro de nossas vidas e o macro da História.

A História, as camadas dos tempos históricos, seus apagamentos, suas fissuras, seus traumas me interessam muito. Isso pra mim define a poesia que me interessa. A questão das formas fixas, a contemporaneidade das formas fixas, pra mim esse é o ponto quando se fala delas como uma das possibilidades à mão de quem escreve: como escrever um soneto de tal forma que ele seja absolutamente contemporâneo?  Mas ando cada vez mais tentado a assumir que não existem formas fixas, nenhuma forma é fixa realmente, a depender de como utilizemos.

Quanto a ser militante de poesia, penso que não seja necessário a um poeta se lançar nesse embate, que por vezes traz sequelas, embora seja útil para o campo que haja quem milite. Pra mim, que compreendi a potência da poesia enquanto prática social, num sentido amplo, é muito enriquecedor poder criar zonas de contato e zonas de afeto com outras pessoas que escrevem. Isso pode aumentar ou diminuir a perspectiva que Agamben menciona. Cabe a cada um fazer suas escolhas, dentro de suas perspectivas de mundo e suas susceptibilidades.

Artur Gomes - O que representa para você a Revista Mallarmargens?

Nuno Rau - Mallarmargens tem muitos sentidos pra mim, e acho que a palavra sentido seja, provavelmente, a palavra com que mais me embato, a mais difícil. Que sentidos seriam esses? O primeiro é o fato de que firmamos, nesses mais de oito anos de estrada, a marca de uma revista plural, democrática, inclusiva. Quando começamos, das revistas que tinham projeção nacional (ou ao menos destas as que eu conhecia), só a Cronópios e a Germina tinham essa linha, não se limitando pelas premissas estéticas dos editores, nem por zonas de contato (a Diversos Afins já existia, mas, por limitações minhas eu não conhecia). Só que Cronópios tinha acabado. Então entramos num momento em que havia uma necessidade de espaço que as demais não atendiam, em face de uma imensa produção de qualidade rodando em blogs e no Facebook. Foi nesse contexto que publicamos desde a menina de 15 anos que mandou poemas de uma potência inacreditável, completamente desconhecida, até membros da ABL, passando por todos os tipos de poéticas e por todas as gerações.

Nossa única baliza era e é qualidade, o que nos impõe um exercício diário de perceber a qualidade para além de nosso entendimento da poesia, de nossas premissas estéticas particulares. Uma coisa bacana é que depois de nós surgiram e surgem outras revistas que têm a mesma pegada, ótimas revistas, e sempre nos alegra quando alguém aponta no horizonte de publicações, a poesia precisa disso.

O outro sentido é a prática do coletivo, somos sempre um coletivo, há sempre negociações, podem haver atritos, mas vamos aprendendo com todos os eventos. Há que ter alguém que puxe pra si a responsabilidade da palavra final, em alguns momentos, mas o ideal é quando o coletivo interage de forma plena. Um terceiro sentido importante da revista é que estamos num lugar privilegiado de observação da produção contemporânea, por tudo que recebemos, lemos, pelas interações que fazemos, e isso apura – ou assim espero, sempre – o olhar crítico. Existem muitos outros sentidos, ainda.

Artur Gomes - Que pergunta não fiz que você gostaria de responder?

Nuno Rau - O mundo faz algum sentido?  Não.

Fulinaíma MultiProjetos
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 EntreVistas – www.arturgumes.blogspot.com/

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