sábado, 25 de julho de 2020

Bernardo Caldeira - EntreVistas


Conheci Bernardo Caldeira na noite de 7 de novembro de 2019, no auditório do Liceu de Humanidades de Campos onde foi realizado o XXI FestCampos de Poesia Falada. Ele participou  do Festival como intérprete da poesia Casulo em Chamas, de Nayara Valle. Era uma noite de muita chuva, e os dois entraram na sala completamente molhados. Foram 3 dias plenos de poesia, e a partir daí esse casal de mineiros mora no meu coração.

Bernardo Caldeira, natural de Belo horizonte, onde reside, é graduado em Psicologia e Pós-graduado em Filosofia. Tem dois livros de poesia publicados: Vozes do Silêncio (Benvinda, 2016) e Estilhaços (Urutau, 2019). Atua como psicanalista, professor, baterista e tradutor.

Artur Gomes - Como se processa o seu estado de poesia?

Bernardo Caldeira - Eu não saberia explicar muito bem, até porque me parece que é justamente essa coisa – que as pessoas costumam chamar de estado de poesia ou inspiração – aquilo que há de propriamente místico na criação poética: não é possível saber muito sobre de onde, como ou porque ela vem. No meu caso, não sou desses que sentam e escrevem quando bem entendem, já cientes do que querem fazer; as palavras são caprichosas comigo e têm seu próprio tempo de me visitar. Mas de repente alguma coisa acontece e elas surgem, meio que naturalmente, como um vento sussurrando em meu ouvido. Naturalmente, não se trata de algo passivo, é preciso apontar a antena da raça na direção desse sinal, meio terrestre, meio alienígena. Claro que muitas vezes a mensagem escapa, por vários motivos, quer porque não conseguimos traduzí-la, quer porque ela nos pega no contrapé – sem lápis, no meio da rua, cruzando o sinal. Aí ela passou e ficamos a caçar borboletas. O poema tem que ser pego no pulo.

Artur Gomes - Seu poema preferido? Próprio. Ou de outro poeta de sua admiração.

Bernardo Caldeira - Me parece que qualquer um que diga que tem um poema preferido, seja próprio ou de outro, empobrece sua experiência poética, pois nenhum poema em particular é capaz de abranger por inteiro o escopo inesgotável da poesia. De modo que o que se pode ter são poemas, no plural, aos quais se retorna com maior ou menor frequência, seja para fruição, para alento, para estudo, etc. Nesse caso, eu diria que sempre retorno aos meus cânones particulares – como "Tabacaria", de Álvaro de Campos; o poema XVIII de "Canto de Mim Mesmo", de Walt Whitman; "Platão ou o porquê", Wislawa Szymborska, entre muitos outros.

Quanto a um poema meu, a título de exemplo, tenho tido afeição pelo "Névoa Negra", que dediquei à Amanda Audi e ao Glenn Greenwald, ambos da revista Intercept, num contexto bem específico.

Reproduzo, pois ele é curto:

Enquanto atônito eu vejo
o sol dia a dia morrer
pergunto-me: que horas a noite
começa? O azul desbota
sobre nossas cabeças
e como uma névoa negra
aos poucos a escuridão
se decanta. Mas onde se encontra
a lápide da luz, a inscrição inequívoca
do seu suicídio? No corpo de Vênus?
Não pode ser: quando ele nasce
o céu ainda é verde
e me engana. A cada segundo
pergunto ao poente: é noite?
é noite? – tentando prever
o presente. Enquanto velo
o ponteiro, eu pisco os meus olhos
e ao abrí-los, a noite se fez
em silêncio.

Artur Gomes - Qual o seu poeta de cabeceira? 

Bernardo Caldeira - Seguindo o mesmo princípio da resposta anterior, não posso dizer que eu tenho um só poeta de cabeceira; tenho aqueles que sempre andam comigo – talvez eu deva dizer que eu é que ando com eles – e aos quais sempre retorno; além dos citados acima, gente como Drummond, Bandeira, Brecht, Maiakóvski, Rilke, Rumi, Akhmátova, Meireles, Hilst, Horácio, Li Bai também estão frequentemente na minha cabeceira.

Artur Gomes - Em seu instante de criação existe alguma pedra de toque, algo que o impulsione para escrever?

Bernardo Caldeira  - Uma pedra de toque é um instrumento para se testar ligas metálicas, usado especialmente para saber se o material em questão é ouro e auferir sua quilatagem. Portanto, tem mais a ver com avaliar o que já foi criado do que propriamente com a criação. Nesse sentido, minhas pedras de toque são bastante rudimentares; não sou crítico, sou poeta.

Quanto ao impulso criativo, ele surge de vários lugares distintos, uma palavra que ressoa, um poema que convoca, uma notícia, um pensamento, uma sensação... o que quer que me toque é uma pedra de toque.

Artur Gomes - Livro que considera definitivo em sua obra?

Bernardo Caldeira - Em primeiro lugar, não tenho uma obra; tenho dois livros publicados, Vozes do Silêncio (Benvinda, 2016) e Estilhaços (Urutau, 2019) – o primeiro eu tendo a renegar, por exceção de um poema ou dois, literalmente. Em segundo lugar, acho "definitivo" uma palavra muito pesada; nada é definitivo. Prefiro dizer que há livros que marcam.

Artur Gomes - Além da poesia em verso  já exercitou ou exercita outra forma de linguagem com poesia?

Bernardo Caldeira - Bem antes de começar a escrever poemas, tive um impacto enorme com a obra de Joyce, especialmente o Finnegans Wake, na medida em que ela levava a até suas últimas consequências o disparate completo que é a linguagem. A partir desse encontro, durante algum tempo escrevi textos que emulavam uma escrita automática e associativa mais na vertente da pura materialidade sonora e visual da palavra e da sintaxe do que da virtualidade espiritual da semântica; isso porque, como aprendemos com Freud, o significado é sempre da ordem do engodo religioso, da ontologia – e eu queria captar o real "livre do pecado do sentido" (como certa vez versei) que eu supunha manifestar-se na escrita de Joyce. Porém, com o tempo compreendi que tampouco era ao fazer do sentido um pecado que eu tocaria o real; e foi assim que cheguei à poesia, como um ateu fervoroso convertido em místico porque acreditava demais na inexistência de Deus.

Artur Gomes - Qual poema escreveu quando teve uma pedra no meio do caminho?

Bernardo Caldeira - O poema drummondiano me parece dizer, justamente, que ninguém escreve um poema se não há uma pedra no meio do caminho: algo que se interpõe entre o poeta e o mundo – um espanto, um amor, uma dor –, na medida em que o mundo é a ordem natural das coisas. Quando ousamos perturbar o universo ("Do I dare disturb the universe?", como canta o pássaro Eliot) a flor do poema se abre no meio da própria pedra.

Artur Gomes - Revisitando Quintana: você acha que depois dessa crise virótica pandêmica, quem passará e quem passarinho?

Bernardo Caldeira - Ao que tudo indica, mais cedo ou mais tarde, os próprios passarinhos passarão. Mas não aposto todas as minhas fichas nisso. O mundo tem lá suas reviravoltas.

Artur Gomes - Escrevendo sobre o livro Pátria A(r)mada, o poeta e jornalista Ademir Assunção afirma que cada poeta tem a sua tribo, de onde ele traz as suas referências. Você de onde vem, qual é a sua tribo?

Bernardo Caldeira - Não tenho tribo; não pertenço sequer aos que não têm tribo. Sou marxista nesse aspecto: não faço parte de clube que me aceita (Marx aqui é Groucho, bem entendido).

Artur Gomes - Nos dias atuais o que é ser um poeta, militante de poesia?

Bernardo Caldeira - Acho que talvez seja insistir para que a palavra seja um meio de transformar o mundo, e não de reiterá-lo; fazer dela um instrumento de potência, mais do que um instrumento de poder.

Artur Gomes - Que pergunta não fiz que você gostaria de responder?

Bernardo Caldeira - Não sei. Mas aconteceu que enquanto respondia a estas perguntas acabei fabricando um poema, que dedico a você – pois, sem elas, eu jamais o teria feito; de modo que você é seu coautor, e deve por isso ser creditado. Segue:

MAPA
Para Artur Fulinaíma

Eu venho de muitos lugares.
Sou feito de entroncamentos
e bifurcações. Não sou um caminho
sou todo um mapa: venho
de todos os lados, vou
para todas as direções.
Vejo tribos pela estrada –
a nenhuma pertenço; tampouco sou parte
do rebanho das ovelhas desgarradas.
Percorro aldeias como
um visitante de outro mundo – eu
que não tenho mundos, tenho somente
um coração. Dos povos que encontro
eu colho os frutos e deixo sementes
para todos aqueles que amei. Porém
o sol me acorda e eu sigo em frente –
levando nos pés as raízes
que pelos cantos da Terra
eu criei.



Fulinaíma MultiProjetos
(22)99815-1268 – whatsapp
EntreVistas

Nenhum comentário:

Postar um comentário

O Homem Com A Flor Na Boca

O ator, produtor, videomaker e agitador cultural   Artur Gomes   acumula uma bagagem de 50 anos de carreira com prêmios nacionais e internac...