quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Jussara Resende - EntreVistas

 


 

Conheci Jussara Resende  entre amigos no facebook.  Quando li um poema de sua autoria em seu perfil. Depois que li o poema, a convidei para esse bate papo. Hoje li o seu conto Sobre goiabas, folhagens e feijão na Revista Poesia Avulsa e levei para o meu perfil no face. A minha relação com Brasília vem de longe, lá de 1968, por isso me aguça querer sempre conhecer mais um pouco dos poetas brasilienses.

 

Jussara Resende é brasiliense, graduada em Comunicação Social e Direito. Faz da cidade de Brasília sua morada poética, construindo, entre calangos do cerrado, bocas de lobo, ipês, vigias de carro e outros elementos sociais, o cenário para seus versos. Inédita em livros, divulga seus poemas e contos nas redes sociais, contando com algumas publicações em revistas eletrônicas. 

 Artur Gomes - Como se processa o seu estado de poesia?

 Jussara Resende - Vejo a poesia como algo que vai além do poema e permeia as artes como um todo. E mais, a vida como um todo. Edgar Morin defende a ideia de que a vida pode ser polarizada entre a prosa (aquilo que fazemos por obrigação e por instinto de sobrevivência) e a poesia, que é o amor que inflama e transfigura a vida. Para ele, viver é viver poeticamente. Meu estado de poesia caminha nessa linha: trabalho e sobrevivo, prosaicamente, na medida do necessário. De resto, vivo: procuro, enxergo, vivencio ou nada faço e, quando sou brindada pelo acaso, escrevo poemas: estes jogos de símbolos e palavras ritmadas, recheados de metáforas, analogias, magias e outras coisinhas mais, devidamente formatados, ou não. E mais uma característica bem especial: a surpresa, misteriosa e agradável, de se começar um poema a partir de uma ideia, um simples verso e quando se vê, está lá o menino-poema vivo, recém-nascido.

 Artur Gomes - Seu poema preferido? Próprio. Ou de outro poeta de sua admiração.

 Jussara Resende - Acho que meu botão do “preferir” segue influências do Raul e vive uma metamorfose (ambulante) constante.  Eu prefiro um poema hoje e, amanhã, amo outro ainda mais. Penso que as leituras trazem muito do processo de comunicação, o que envolve a exatidão do texto que se transmuta com a interpretação dada pelo leitor. E, para além da diversidade de leitores, temos ainda a fato de que somos outro a cada momento, colocando no texto nossas vivências, nossas experiências, nosso sentir. Somos águas fluindo no rio da vida. Cada leitura é uma nova descoberta, com possibilidades de amor, ou não. Amo, sobretudo, ser leitora e guardo um vínculo com vários textos. Mas vou citar o poema Alvará de demolição, da Adélia Prado, que integra o livro A duração do dia, lançado em 2010, e que me encanta a cada releitura, pelo estímulo que causa em mim:

 

Alvará de demolição

(Adélia Prado)

 O que precisa nascer

tem sua raiz em chão de casa velha.

À sua necessidade o piso cede,

estalam rachaduras nas paredes,

os caixões de janela se desprendem.

O que precisa nascer

aparece no sonho buscando frinchas no teto,

réstias de luz e ar.

Sei muito bem do que este sonho fala

e a quem pode me dar

peço coragem.

 

Enquanto transcrevo Adélia Prado, já sou outra – metamorfose em cena – e minha preferência volta-se a mim mesma, que, afinal, não tenho o alcance dela e, portanto, vou destacar um dos meus poemas, para aproveitar o espaço:

 

Semana Santa

(Jussara Resende)

 

Reza a cartilha

de domingo

que o perdão

vai me salvar

talvez não aqui

na terra

 

Mas e daí?!

 

A vida segue

e na segunda

nada muda

não há farra

é só promessa

e muito trabalho

preciso me empenhar!

 

Já na terça

sem esperança

não dá pra parar

nem sequer

pra descansar

e alguém

lá de dentro

de mim

a me gritar:

aguenta o tranco

que amanhã é quarta!

 

E na quarta

a gente começa

a contar os dias

que ainda faltam

mas sei que a falta

é mais profunda

e o que falta

é bem mais que uns dias

pra vida sustentar

 

Pouco importa...

amanheceu a quinta

a poeira se levantou

o corpo quase cedeu

mas fui trabalhar

 

Na sexta

era pra eu ter

um dinheiro

a receber

mas diz o patrão

que dinheiro

esta semana

não tem não

Mas o que é isso

seu Doutor,

o que faço:

amanhã é sábado

dia de feira

e como explico

à patroa

que sonhava

com a feijoada

pros amigos reunir?

 

No domingo

vestido de terno

e gravata emprestada

vou pro culto

com ela mais as crianças

renovar a fé

pra outra semana

que já vai começar

e ouço o pastor a dizer

que a vida é dura

mas que é preciso prosseguir

E contribuir com dinheiro

pra na fé se sustentar

 

Nem sei mais o que faço

se o que mais tenho

é falta

de dinheiro

e dívida

pra honrar

e menino

pra criar

e vizinho

pra acudir

 

É preciso se iludir

porque se parar

pra pensar

a revolta

vai começar

 

Mas nem ilusão

eu tenho não

nem na pinga

nem na vida

nem na fé

nem no dinheiro

que move este mundo

de meu deus

mas que não se move

um centímetro

para o lado

dos meus.

 

Artur Gomes - Qual o seu poeta de cabeceira?

 Jussara Resende - Tenho uma estante à distância de um braço de minha cama. Não é propriamente na cabeceira, mas serve como tal. Claro que um livro ou outro, e por vezes, vários, passam a noite comigo, assim mais juntinhos, na mesa lateral. Mas são trocados com frequência. Virou hábito diário: um poema logo cedo, pela manhã, e outro, ao dormir. Vitaminas indispensáveis para um viver leve. E como todo corpo que quer se manter saudável, é preciso variar no cardápio. Assim, tomo doses frequentes de Manoel de Barros, Cora Coralina, Fernando Pessoa, Ferreira Gullar, Adélia Prado, Mario Quintana, Cecília Meireles, Jorge Luís Borges, Pablo Neruda e, sobretudo, poetas de Brasília como Marcos Fabrício Lopes da Silva, Vanderlei Costa, Cristiane Sobral, Jorge Amâncio, Noélia Ribeiro, José Sóter, Beth Fernandes, Wélcio de Toledo, Alberto Bresciani, Andre Giusti e Cinthia Kriemler. Minha cabeceira abraça a todos! E nessa salada poética, uso as redes sociais como fonte de acesso a outros poetas e poemas, havendo sempre muita leitura qualificada a se fazer, tanto daqueles que não possuem livros publicados como de outros mais conhecidos até, mas que não os tenho em livros, em casa.

 Artur Gomes - Em seu instante de criação existe alguma pedra de toque, algo que o impulsione para escrever?

 Jussara Resende - A Adélia Prado (olha só, citando-a de novo. Será uma resposta, nas entrelinhas, de ser ela minha poeta de cabeceira?!) tem um verso assim: Fui dormir umas noites tão feliz, que, se soubesse minha força, levitada. Noutras, foi tanta a tristeza, que fiz versos. Eu penso que minha escrita nasce do que me afeta, do que me toca e me abala, tanto no sentido positivo como negativo. Nem tudo o que me afeta vira poema, mas todo poema que escrevo nasce de algo que me alcançou emocionalmente. E isso pode vir de uma questão social, política, familiar, das relações amorosas ou mesmo da simples contemplação de um cenário da natureza. Ao revés do que ocorre no processo de leitura, onde a interação nasce do verbo e desagua na emoção, penso que, quando escrevo, a emoção é quem direciona o verbo. Emoção que me aparece, sempre, intuitivamente e de forma espontânea.

 Artur Gomes - Livro que considera definitivo em sua obra?

 Jussara Resende - Não tenho uma obra para chamar de minha.  Ao menos não no sentido comumente empregado, até porque não tenho livros publicados e, no meu amadorismo – aquele do amor mesmo, não possuo sequer um projeto nesse sentido.   Posso considerar que minha obra são meus versos, soltos ao vento, sustentados em uma e outra revista eletrônica, na minha conta do Facebook e nas páginas de redes sociais de amigos e poetas do meu círculo, que gentilmente compartilham textos ou fazem leituras dos meus poemas. Adoto temáticas diversas, assim como uso mais de um eu poético, assumindo figuras masculinas ou inseridas em contextos sociais distintos do que vivo. Mas, para responder a este questionamento, precisaria de um feedback de leitores, pessoas que me acompanhassem em minhas publicações para identificar qual texto, ou mesmo temática, poderia ser entendida como definitiva no meu trabalho. Acontece que as publicações em redes sociais são fluidas e os retornos nem sempre palpáveis, mas me arrisco a dizer que tenho uns três poemas que, de certa forma, poderiam ser referência para minha obra. São eles: Carta ao filhoBrasília Não à resistência.  

 Artur Gomes - Além da poesia em verso já exercitou ou exercita outra forma de linguagem com poesia¿

 Jussara Resende - A escrita faz parte da minha formação, desde nova, e nela me sustento profissionalmente, na carreira jurídico-administrativa. Para além do profissional, e no campo do faço-mesmo-com-amor-porque-gosto-e-muito, costumo brincar com palavras e me lançar em escritos de formato e estrutura diferenciadas. Algo meio autodidático, estimulada pelos amplos acessos e por este vasto universo virtual. Além dos poemas, nos quais uso, basicamente, o verso livre, tenho um apreço especial por contos, tendo uns guardados comigo, outros publicados em revistas eletrônicas, como o Osvaldo (Revista Gueto) e o Sobre goiabas, folhagens e feijão (Revista Poesia Avulsa). Ainda assim, e mesmo nos contos, guardo um quê de prosa poética, revelando minha preferência pela poesia. No mais, um romance me habita, em pensamentos e ideias, mas se perde no meu eu ora acomodada, ora apegada pelo encanto dos versos. Um dia, quem sabe, nasce.

 Artur Gomes - Qual poema escreveu quando teve uma pedra no meio do caminho?

 Jussara Resende - Alguns. Ou, muitos. Acho que a pandemia é a mais recente e generalizada pedra no meio do caminho que temos. Dela, e das mudanças de rotina e costumes que tivemos de adotar, fiz vários poemas. Um deles:

 

Num dia qualquer de confinamento

(Jussara Resende)

 

E o vento me soprou

Em sonhos

Numa realidade tal

Que me fez tremer os ossos

De frio

E ruborizar a face

Diante do calor intenso

Da verdade dita:

Não somos nada!

Suspeita há muito remoída

Revelada no quebrar

De fina e cristalina máscara

Por um simples raio de luz do dia

 

Como seguir incerta

Diante da certeza posta?

Me juntar aos cegos

Deste rebanho insano?

Fingir alegrias num mar

De desencantos?

Ou esperar pela noite

E dormir o sono dos mil dias?

 

Talvez assim

Eu acorde num sonho

De outro conto

Outra poesia

Ou num script de um curta

Onde mais do que vida longa

Sejam cultivadas

fraternidades

 

 

Me pesam os passos

Arrastados

Do agora

Feito chumbo

Correntes dos escravos

Escravos modernos

Do mercado

Da informação

– da falta de informação

– das fakes informações

Da ignorância

Dos grandes conhecimentos

Do mundo digital

 

À mingua do humano em nós

Ser humano em processo

De desumanização

Transformação

Quem sabe simples bichos

Como todos os outros

Felizes viveremos

Com e como nossos irmãos

Neste planeta

Guiados pelo extinto

De sobrevivência

E regidos pelas leis

Da santa natureza.

 

Artur Gomes - Revisitando Quintana: você acha que depois dessa crise virótica pandêmica, quem passará e quem passarinho?

 Jussara Resende - Tomara eles passem – e rápido – e nós continuemos passarinhos. Nós, humanos portadores de humanidade. Há outros, aos montes, desumanizados. Apesar da gravidade da situação, do ponto de vista epidemiológico, não acredito que socialmente teremos grandes mudanças. Infelizmente, no Brasil e na América Latina, esta pandemia agrava ainda mais o abismo social em que vivemos, fruto de uma política que valoriza sobremaneira o capital, e esse, sim, o maior mal, um mal com o qual muitos parecem ter se acostumado, cegos sociais. Não resolvo o mundo, mas tento me enganar achando que posso e sigo fazendo o que dizem ser “a minha parte”. Quiçá tudo isso faça sentido e que a ação de cada um possa efetivamente ter a força do conjunto. É preciso acreditar e nutrir esperanças, de uma forma racional, o que envolve enxergar os horrores e, mesmo em meio a ele, conseguir exercitar virtudes como honestidade, resiliência e generosidade. Ainda somos humanos!

 Artur Gomes - Escrevendo sobre o livro Pátria A(r)mada, o poeta e jornalista Ademir Assunção, afirma que cada poeta tem a sua tribo, de onde ele traz as suas referências. Você de onde vem, qual é a sua tribo?

 Jussara Resende - Eu sou de Brasília e sigo vivendo aqui desde que nasci, tirando um acidente de percurso de um ano e meio em que morei no interior de São Paulo. Viajo muito e me agradam as metrópoles e, também, as cidades pacatas do interior, assim como o contato com a natureza (somos todos natureza, inclusive nas cidades grandes, mas uso, aqui, o sentido mais generalizado do termo: os rios, cachoeiras, mato, cerrado, montanha, pedra etc). Passei minha infância e adolescência viajando, em férias, para o interior de Minas Gerais, onde era inserida na rotina mais simples e tranquila de parentes que viviam até mesmo em fazendas. Penso que de uns dez anos para cá eu iniciei o que se possa chamar de um retorno às origens, e me pego por vezes escrevendo sobre cenários rurais. Ainda assim, minha tribo é bem urbana. Minha escrita transita em temas que vão desde as relações afetivas à filosofia do cotidiano, marcada pela composição urbanística de Brasília, pela seca invernal do cerrado, pelas distâncias físicas que dão um ar de distanciamento social que, na minha opinião e vivência, não corresponde à realidade. Acho que transito bem por diferentes tribos, dentro da grande tribo-ilha que é Brasília. E tenho me encontrado mais, ultimamente, em bares, saraus e eventos literários ou revisitando e frequentando velhos e bons amigos jornalistas e publicitários. Ainda que, desde o início da pandemia, estamos todos privados desses sociais – reclusos no mundo virtual, pelo qual, confesso, guardo certa sensação de estranheza. Acho que, passado estes tempos pandêmicos, podíamos lançar uma campanha de distanciamento social virtual!!!!!

 Artur Gomes - Nos dias atuais o que é ser um poeta, militante de poesia?

 Jussara Resende - É, sobretudo, acreditar no humano que há em nós; é fechar os olhos, sem deixar de enxergar a realidade, e se deixar levar pelo imaginário, pelos ideais, pela crença de que há uma razão maior para tudo isto que chamam vida (e não falo de algo exotérico, espiritual ou divino, não é preciso ao menos acreditar nisso); é não se deixar cegar, muito menos se calar; é não se tornar pedra, rebanho, peça vegetativa buscando uma qualidade de vida para usufruir na aposentadoria; é tudo isso e muito mais; é tudo o mais e nada disso; é o que se acredita deva ser: e que assim seja, intenso e vivo.

 Artur Gomes - Que pergunta não fiz que você gostaria de responder?

 Jussara Resende - Confesso estou bem feliz de ter chegado até aqui, com a prazerosa sensação de que batemos um bom e amigável papo. Sem mais, por ora! 

 

                                                          Fulinaíma MultiProjetos

www.goytacity.blogspot.com

portalfulinaima@gmail.com

(22)99815-1268 – whatsapp

EntreVistas

www.arturgumes.blogspot.com


Nenhum comentário:

Postar um comentário

cidade veracidade

onde tudo é carnaval minha madrinha se chamava cecília nunca soube onde minha mãe a conheceu por muitos anos morou na rua sacramento ao la...