quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Leonardo Almeida Filho - 5 poemas do livro Tutano

 


Encalacrado

 

Dura é a procura da palavra rara.

Avara sina que se insinuara na incrédula criatura.
Atura, jura, fura a mais profunda escuridão, o breu.


Como fora um monstro estranho,
entranha-se na trilha, esmera-se no brilho turvo e torpe,
prova do estorvo da nervura claro-escura, treva sempre impura do real.

 

Sigo assim, prossigo, muito mais que abrigo amigo.
O âmago mágico, consigo.
Gosto, gasto, gesto, grito e ganho o que persigo
num vasto silo encalacrado: um arsenal.


E o poema acena aquela velha cena,
a vela sempre encena a palavra acesa
que se nos liberta e acerta e aperta a jugular da fera,
e o poeta encerra a dor cruel do trivial.


 

Ogiva

 

      Para Alberto Bresciani

 

Armar um poema requer lógica.

Uma lógica secreta,

de seita, confraria,

e que apenas os poetas,

iniciados nas artes dessa alquimia,

conhecem e arriscam articular.

 

Armar um poema é sempre forma

de amar o poema

que o leitor, ao final,

amando-o também,

tentará eternamente,

e sem sucesso,

desarmar.


 

Tutano

 

        Para Antonio Damasio

 

Há coisas que pedem silêncio,

o mesmo silêncio das pedras no fundo do rio,

dos peixes nos igarapés, da aranha no paiol vazio,

a mudez das rochas e dos musgos.

 

Há coisas que devem permanecer caladas, intocadas,

entaladas na garganta como o choro que se engole

dissimulado, amargo.

 

Há coisas que pedem para serem engasgadas,

para ficarem dentro da gente como tutano,

pulsando por se mostrarem vivas,

não mais que isso.

 

Há segredos que devem morrer sagrados,

ocultos, enterrados, como fossem fósseis

no sítio arqueológico da alma,

sob olhares quase-mortos

e cheios de tristeza e desencanto,

sem dor, lamento ou pranto.

 

Há coisas que exigem silêncio,

mas é sobre essas coisas que o poema berra,

que os versos uivam ,

que as estrofes gritam

para quem as quiser ouvir

e se ensurdecer.


 

Utopia


O desejo aspira
o não-lugar
(não para estar)
para ser.


É como o Outro
que me justifica
e me faz ser,
só porque é
quando está.


A menina abre a geladeira,
pega a coca-cola
em silêncio
e pula do oitavo andar
(não para estar
nem para ser)
porque aspira
o não-lugar.


Agonia de peixes dourados

 Parte do que somos flutua e brilha

mariposa e luminária que se miram
sem qualquer espanto, enfado ou medo.

 

Outra, mergulha e se apaga,
celacanto-vagalume,
opaca, que se afaga na escuridão das fossas,
com terror e desespero.

 

Céu e abismo, poço fundo que se oferece
ao salto inexorável.
Parte de nós se lança corajosamente
no anoitecer que assombra,
nas trevas que assustam,
na rouquidão das trovoadas,
e goza.

 

Outra busca o sol, as estrelas,

a mansidão da noite clara, a luz dos relâmpagos,
e chora porque sabe que quando o bedel
bater à porta,
será tempo de retirar, às pressas, os capachos,
envenenar as maçanetas, secar os aquários
e deixar os peixes dourados se debatendo
em busca de ar.
Será a hora de rastejar e apagar as luzes da casa.

 

Leonardo Almeida Filho (Campina Grande, 1960), professor universitário, escritor, ensaísta, reside em Brasília desde 1962. Mestre em literatura brasileira pela Universidade de Brasília (2002), publicou, em 2008, o seu livro Graciliano Ramos e o mundo interior: o desvão imenso do espírito (EdUnB).  Alguns trabalhos publicados: O livro de Loraine (romance, 1998), logomaquia: um manefasto (híbrido, 2008); contos em Antologia do Conto Brasiliense (2004) e Todas as gerações (2007) e pelo Prêmio SESC de contos Machado de Assis (2011); poesias em Poemas para Brasília (2004) e pelo Prêmio SESC de poesias Carlos Drummond de Andrade (2011). Publicou, com os professores Hermenegildo Bastos e Bel Brunacci, o livro Catálogo de benefícios: o significado de uma homenagem (Hinterlândia, 2010), que aborda o  cinquentenário do escritor Graciliano Ramos. Publicou, pela Editora e-galaxia, Nebulosa fauna & outras histórias perversas (contos).

 

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