domingo, 21 de junho de 2020

Nic Cardeal - EntreVistas



Conheci Nic Cardeal através do face, lendo sua poesia, em postagens diversas, feitas por ela mesmo, ou compartilhadas por outra poetas do “Mulherio das Letras”. Desde as primeiras me chamou atenção na sua poesia, a leveza, e ao mesmo tempo a força da poética na afirmação do ser mulher, feminina, envolta, não apenas pelo existencial, mas por tudo que a cerca, nesses tempos monstruosos. Convidá-la para esse bate papo  foi apenas uma simples questão de tempo, para dar conta de compromissos anteriores.

Nic Cardeal, catarinense radicada em Curitiba/PR, graduada em Direito, é autora de ‘Sede de céu – poemas’ (Penalux, 2019), e aguarda a publicação de seu próximo livro – uns contos e outras crônicas – em fase de costuras e remendos. Já publicou textos em 29 antologias/coletâneas – 24 no Brasil, 4 em Portugal e 1 na Alemanha. É integrante do movimento Mulherio das Letras desde a sua criação em 2016. Seus escritos estão compilados na página no Facebook “Escrevo porque sou rascunho”. Também faz ‘resenhas afetivas’ de livros de autores amigos, na página do Facebook “Minha lavra do teu livro”. Possui textos publicados em revistas/blogs eletrônicos, tais como: ‘Scenarium Plural’, de Lunna Guedes e Marco Antonio Guedes (https://scenariumplural.wordpress.com); ‘Blog do Menalton – Literatura’, do escritor Menalton Braff (blogdomenalton.blogspot.com); ‘Revista Gueto – Artes Literárias’ (https://revistagueto.com); ‘Germina - Revista de Literatura e Arte’ (https://www.germinaliteratura.com.br); ‘Revista Digital Literatura & Fechadura’ (https://www.literaturaefechadura.com.br); ‘Revista Virtual Cultural Carlos Zemek’, a convite da escritora Isabel Furini (revistacazemek.blogspot.com). Atualmente também publica, como autora/colaboradora, a convite da editora Chris Herrmann, na revista eletrônica ‘Revista Feminina de Arte Contemporânea SerMulherArte’ (www.sermulherarte.com). Além disso, está sempre escrevendo suas insuficiências porque, assim como é imensa a sina das palavras, também é profunda a necessidade de dizê-las.


Artur Gomes – Como se processa o seu estado de poesia?
Nic Cardeal – Tenho a sensação de que o melhor ‘estado de poesia’ é o sonho, ainda que estejamos despertos na consciência do mundo material ao nosso redor. Meu ‘respiro’ no mundo é muito mais interno do que na realidade concreta, então sinto que esse ‘estado de poesia’ acontece justamente depois que eu ultrapasso essa linha tênue da realidade e da fantasia, do sonho, do fantástico, lugar em que me entrego aos devaneios do pensamento, da emoção e do sentimento. Creio que melhor adubo para a poesia não há do que esse ‘estado de devaneio’. Acho que esse estado acontece exatamente na “conjunção entre o instante e a eternidade”, como já explicou Gaston Bachelard, no seu livro ‘A intuição do instante’.
Naquela obra ele finaliza dizendo que “a poesia é uma metafísica instantânea”. Dessa afirmação entendo que a meta do poeta é justamente alcançar esse instante metafísico, e então o esculpir na matéria rara da poesia, dando-lhe eternidade por meio das palavras. Assim, a poesia não deixa de ser uma experiência instantânea do metafísico, ela “recusa os preâmbulos, os princípios, os métodos, as provas. Recusa a dúvida. Quando muito, ela tem necessidade de um prelúdio de silêncio”, como também concluiu Bachelard, no mesmo texto.
Isso não significa, de modo algum, que o mundo ao meu redor não me afete ou não influencie no modo como eu lido com esse ‘estado de poesia’. É impossível viver no mundo físico e não se afetar por ele, em todos os seus âmbitos e nuances. Somos almas vivendo experiências humanas e, sendo assim, nossa humanidade é suscetível às influências do meio. Viver, por si só, é um profundo ‘estado de poesia’, é uma dor, mas também é constante surpresa, embevecimento, desencanto, fascinação, enfim, todos os paradoxos possíveis e imagináveis são cultivados nesse terreno fecundo, mas tantas vezes também inóspito, que é a vida.
Artur Gomes – Seu poema preferido? Próprio. Ou de outro poeta de sua admiração.
Nic Cardeal – Não tenho um único poema preferido. São tantos quantos os(as) poetas preferidos(as). Penso que essa preferência tem todo o direito de ser mutante, alternante, uma vez que nós todos somos mutantes, nunca somos os mesmos. Bem por isso o gosto poético também é alterável com o decorrer do tempo, dos anos. Nesse momento pandêmico, por exemplo, tenho me agarrado (com unhas e dentes!) ao poema ‘Carpe Diem’, de Walt Whitman:

CARPE DIEM (Aproveita o dia)
(Walt Whitman)

“Aproveita o dia,
Não deixes que termine sem teres crescido um pouco.
Sem teres sido feliz, sem teres alimentado teus sonhos.
Não te deixes vencer pelo desalento.
Não permitas que alguém te negue o direito de expressar-te, que é quase um dever.
Não abandones tua ânsia de fazer de tua vida algo extraordinário.
Não deixes de crer que as palavras e as poesias, sim, podem mudar o mundo.
Porque passe o que passar, nossa essência continuará intacta.
Somos seres humanos cheios de paixão.
A vida é deserto e oásis.
Nos derruba, nos lastima, nos ensina, nos converte em protagonistas de nossa própria história.
Ainda que o vento sopre contra, a poderosa obra continua, tu podes trocar uma estrofe.
Não deixes nunca de sonhar, porque só nos sonhos pode ser livre o homem.
Não caias no pior dos erros: o silêncio.
A maioria vive num silêncio espantoso. Não te resignes, nem fujas.
Valorize a beleza das coisas simples, se pode fazer poesia bela, sobre as pequenas coisas.
Não atraiçoes tuas crenças.
Todos necessitamos de aceitação, mas não podemos remar contra nós mesmos.
Isso transforma a vida em um inferno.
Desfruta o pânico que provoca ter a vida toda a diante.
Procures vivê-la intensamente sem mediocridades.
Pensa que em ti está o futuro, e encara a tarefa com orgulho e sem medo.
Aprendes com quem pode ensinar-te as experiências daqueles que nos precederam.
Não permitas que a vida se passe sem teres vivido.”

Também agora tenho lido muitas vezes o ‘Estatuto do Homem’, de Thiago de Mello:

“(...) Artigo V
Fica decretado que os homens
estão livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar
a couraça do silêncio
nem a armadura de palavras.
O homem se sentará à mesa
com seu olhar limpo
porque a verdade passará a ser servida
Antes da sobremesa (...)”

Artur Gomes – Qual o seu poeta de cabeceira?
Nic Cardeal – O ‘meu poeta de cabeceira’ são os meus poetas de cabeceira. São andantes, alternantes, vão e voltam, substituem-se naturalmente, conforme meu estado de ânimo, meu estado de inspiração, minhas tristezas e alegrias. Nesse momento estou sendo atravessada, mais uma vez, pela poesia de Fernando Pessoa, revisitando Cecília Meireles, Emily Dickinson, revendo Walt Whitman, Thiago de Mello, Manoel de Barros. Descobrindo as maravilhas de Anne Sexton, Silvina Ocampo e Edna St. Vincent Millay, por meio da tradução impecável da também incrível poeta Mariana Basílio. Ando lendo outra vez Carlos Drummond de Andrade, Alejandra Pizarnik, Hilda Hilst, Sophia de Mello Breyner Andresen, João Cabral de Melo Neto, Patti Smith. A minha cabeceira tem sido pequena, tanta é a poesia de que tenho sentido sede!
Artur Gomes – Em seu instante de criação existe alguma pedra de toque, algo que a impulsione para escrever?
Nic Cardeal – A ‘pedra de toque’ de minha produção poética é o próprio instante. Qualquer instante. É tudo muito aleatório, porque a inspiração em mim é aleatória, quase como deitar para dormir, e sonhar. E é sempre repentino esse sonho – tem de haver algo inspirador que me faça ‘acender a luz’.
 Talvez a inspiração seja o grande mistério. A gente nunca sabe quando ela vem, mas é certo, ela sempre vem, se estamos abertos para a palavra. Passo dias, semanas, sem escrever nada. Escrever parece não depender de mim. Acho que a palavra só vem a mim quando está pronta, não importa onde eu esteja.

Muitas vezes percebo somente a ideia, para então, em um tempo futuro, organizar as partes, os elementos, o texto e o contexto. Por isso mesmo não tenho uma meta diária de escrita. Tudo o que me desconcerta também me acrescenta – o estado interno ‘fervente’ da dúvida, do medo, da busca, do desespero, do maravilhamento do amor – tudo isso desconcerta – e acrescenta. Eu sou um punhado de ‘mins’ que se desconcertaram com o passar dos anos. Penso que a escrita é justamente um modo de me organizar diante desse caos interno, acho que é isso o que acaba por me salvar. Tudo é muito confuso em mim, não sou nada organizada no mental. Enfim, acho que a escrita em mim se resume a isso:

NA GARGANTA

Se me perguntares outra vez por que escrevo
gritarei contigo todo o meu poema reduzido:
Escrevo porque preciso
- tenho a alma entalada na garganta
e um coração refém dos meus ouvidos –
isso é tudo.

(Nic Cardeal, in: Sede de céu, Guaratinguetá, SP: Penalux, 2019, pág. 111)

Ou, seguindo Clarice Lispector, “estou escrevendo porque não sei o que fazer de mim” (em ‘Um sopro de vida’).

Quem sabe, então, a ‘pedra de toque’ seja também a própria vida, nos seus cheios e nos seus vazios. Coisas de fora ou de dentro. Às vezes tudo junto. Algo que vejo por aí, algum livro lido, algum pensamento perdido. Ou, um acontecimento social, político, que me cause indignação, comoção, e eu sinta necessidade de expressar minha angústia, minha revolta, tristeza, desolação. 

Artur Gomes – Livro que considera definitivo em sua obra?

Nic Cardeal – Não há um definitivo, mesmo porque, até hoje só publiquei um livro solo (Sede de céu - poemas, Penalux, 2019), apesar de escrever desde muito jovem. Tenho participações em várias antologias, mas somente ano passado encontrei atrevimento suficiente para a primeira publicação individual. ‘Sede de céu’ é apenas a primeira folha de uma árvore que segue teimando em se prolongar por muitos anos. Então, que as estações se renovem e me permitam o florescer da poesia...

Artur Gomes – Além da poesia em verso, já exercitou ou exercita outra forma de linguagem com poesia?

Nic Cardeal – Bem, estou com um livro em prosa poética praticamente pronto, que deveria ter sido publicado também em 2019, porém, devido a alguns contratempos com a finalização da ilustração da capa, acabei optando por colocá-lo para hibernar, e está assim desde janeiro de 2020. Inclusive, tenho a intenção de alterar o título original e substituir alguns textos, pois já os sinto ultrapassados. Ele está composto de crônicas curtas e alguns poucos contos. Também tenho outro livro de poemas já em fase de organização e, além disso, tenho alguns textos infanto juvenis prontos, à espera de coragem para a publicação. Depois da pandemia (esperemos que haja um depois!), é muito provável que eu retome esses projetos.

Artur Gomes – Qual poema escreveu quando teve uma pedra no meio do caminho?

Nic Cardeal – Na verdade, sinto que a maior parte dos meus poemas é escrita a partir de pedras encontradas no caminho, às vezes no meio, outras, na beira, na calçada, nas rotas de fuga do caminho. A pedra que precisa ser ultrapassada, desviada, para evitar o tropeço ou a queda, a pedra no sapato, na garganta, que tranca a passagem do sangue até o coração. Eu diria que os poetas, e os escritores de literatura de um modo geral, são genuínos catadores dessas pedras, depois as lapidam e delas fazem poemas, contos, crônicas, romances.

No meu caso, acho que uma ‘boa’ pedra no meu caminho, e que é constante em muitas das minhas poesias, é o tema da infância, das lembranças da infância. Há também o tema da efemeridade da vida, da curiosidade com o ‘além da morte’, sinto sempre isso muito presente no meu texto, seja na poesia ou na prosa. Não por acaso Clarice Lispector já dizia que “as palavras nada têm a ver com as sensações. Palavras são pedras duras e as sensações delicadíssimas, fugazes, extremas” (in: ‘Para não esquecer’, Rio de Janeiro/RJ: Rocco, 1999).

 Artur Gomes – Revisitando Quintana: você acha que depois dessa crise virótica pandêmica, quem passará e quem passarinho?

Nic Cardeal – Bem, sou uma eterna otimista, apesar de constantemente me debruçar sobre um quase interminável mar de tristezas... Por isso quero crer que ‘quem passará’ serão todos aqueles que não conseguem compreender e exercitar o verdadeiro sentido de humanidade, de inclusão, solidariedade, respeito, ética, honestidade, em todos os âmbitos. Que passem os fascistas, os racistas, os violentos, os coléricos, os odiosos, os excludentes...

‘Quem passarinho’? Todos os que resistem no voo, na liberdade de ser, na pluralidade de viver, ainda que timidamente. Todos aqueles que acreditam no amor, na ternura, na humanidade, num mundo pacífico, solidário e inclusivo. Todos os pequenos – aos olhos brutos do gigantesco monstro do capitalismo!

Artur Gomes – Escrevendo sobre o livro Pátria A(r)mada, o poeta e jornalista Ademir Assunção, afirma que cada poeta tem a sua tribo, de onde ele traz as suas referências. Você de onde vem, qual é a sua tribo?

Nic Cardeal – Eu venho do interior de Santa Catarina (Brusque). Até os cinco anos morei no sítio, casa de madeira despintada, sem energia elétrica, só luz de velas e lampião de querosene, fogão a lenha, banheiro fora de casa, de madeira, atravessando o ribeirão. Penúltima filha de uma tribo de nove, mãe professora e pai topógrafo prático. Depois que nos mudamos para o centro da cidade (por insistência de minha mãe com meu pai), passei a freqüentar a escola e me tornei presença assídua na biblioteca, junto de minhas irmãs mais velhas.

Lia de tudo, desde os clássicos da literatura infantil e juvenil mundial (irmãos Grimm, Hans Christian Andersen, Lewis Carroll, Carlo Collodi, James Barrie, Mark Twain, Robert Louis Stevenson, Laura Ingalls Wilder...), até os nacionais, passando por Monteiro Lobato, Mario Quintana, José Mauro de Vasconcelos, entre tantos outros. A partir da adolescência, encantei-me com Cecília Meireles, Clarice Lispector, Hermann Hesse, J. R. R. Tolkien, Charles Dickens, João Guimarães Rosa, Fernando Pessoa, Virginia Woolf, Florbela Espanca, Carlos Drummond de Andrade, Manoel de Barros, Henry David Thoreau, Walt Whitman. A partir do momento em que comecei a trabalhar, já na adolescência, enquanto cursava o ensino fundamental e depois o médio, assinei o Círculo do Livro, e então eu podia escolher meus próprios tesouros.

Enfim, lia muito, de tudo. Adorava as aulas de Português, gostava muito de escrever redações. Lembro que no terceiro ano do antigo ‘primário’ fui a primeira colocada em um concurso de redações, e ganhei uma linda coleção de livros ‘clássicos da juventude’. Isso me deu ainda mais motivação para prosseguir com a escrita. Na adolescência escrevia muito mais, mas escondia praticamente todos os escritos, que permaneciam engavetados. Uns e outros eram publicados em jornais mimeografados da cidade natal, nos idos de 1974/78, como o ‘Cogumelo Atômico’, e depois o ‘Flama’. Meu primeiro texto em livro foi publicado em 1983, em uma compilação intitulada ‘Antologia do varal literário’, organizada pelo poeta Alcides Buss (Florianópolis/SC: Ed. da UFSC, 1983).

Depois disso segui escrevendo, mas nunca publicava, continuava deixando tudo escondido. A vontade de publicar foi recuperada depois que encontrei o movimento ‘Mulherio das Letras’, em 2016. A partir daí tenho participado de diversas antologias de poesia e de prosa. Também já participei de quatro antologias em Portugal e uma na Alemanha. Meu primeiro autógrafo foi em 2018, durante a ‘37ª Semana Literária SESC & XVI Feira do Livro Editora UFPR’, em Curitiba/PR, no lançamento da antologia ‘Um girassol nos teus cabelos – poemas para Marielle Franco – 50 vozes por Marielle’ (Belo Horizonte: Quintal Edições/Organização Mulherio das Letras, 2018, Curadoria: Cidinha da Silva, Eliana Mara e Marilia Kubota), da qual faço parte. Dizem que o primeiro autógrafo a gente nunca esquece. De fato, é emocionante e, de igual modo, difícil de esquecer, principalmente para quem, como eu, começou a publicar individualmente assim tão tarde, já depois dos 50!

Por isso eu digo: escrevam! Escrevam muito! Escrevam sempre! O aprendizado da escrita ocorre com a prática. E, claro, com muita leitura. E a gente nunca está, de fato, pronta. Não existe isso de ‘autor perfeito’. A evolução literária é contínua. Eu ainda me sinto no início da caminhada pela palavra, em permanente aprendizado da escrita. Sinto que é a escrita que me exercita e não eu a ela. Às vezes penso em escrever por um caminho e, quando chego ao final, o texto seguiu outro rumo. A bússola não sou eu quem alinha. Existe um mistério nessa coisa de palavras, quem sabe uma espécie de costura, arremate, remendos de sentidos. Vou seguindo a linha. Às vezes os nós são desatados e tudo se descostura. Faz parte desse aprendizado de dizer os sentidos, as emoções, as reações, a vida...

É gratificante o amor pela palavra, pela literatura, pela poesia, porque, como já disse o poeta Alcides Buss, “(...) a poesia nos mostra a nós mesmos, estimulando-nos à autenticidade (...). Vale a pena. Eros contra Tanatos, a poesia mesmo quando fere, fere vitalmente. Por isto, por aquilo e muito mais. Uma imagem do poeta mexicano Octavio Paz: “o poema é um caracol onde ressoa a música do mundo” (...)”.

Artur Gomes – Nos dias atuais o que é ser uma poeta, militante de poesia?

Nic Cardeal – Nos dias atuais, nesses tempos obscuros em que o fascismo volta a se impor no mundo, penso que a arte e a literatura têm papel social importantíssimo! A poesia, a arte como um todo, não só pode, como deve militar causas, defender oprimidos, minorias, ter papel inclusivo em uma sociedade  jamais excludente. Como já disse Desmond Tutu, “se você é neutro em situações de injustiça, você escolhe o lado do opressor”. Acho que esse pensamento diz tudo!

No entanto, em tempos tão sombrios, confesso que até a poesia custa. Mas há que resistir à desolação, ao desespero, à vontade de parar, de abandonar o barco. Ainda bem que escrever é visceral, não se consegue alcançar o estancar da sangria da palavra por vontade própria. Uma vez, perguntada sobre o que é poesia para mim, eu disse isto (num poema que escrevi em 2018):

FERIDA ABERTA

O poeta perguntou ao ‘Divino Deus das Palavras de Dentro’:
– O que é poesia?
– Poesia é uma ferida aberta – as palavras são as linhas que costuram a ferida.
– Como costurar sem agulha?
– Você é a agulha.

(Nic Cardeal, in: Sede de céu, Guaratinguetá, SP: Penalux, 2019, pág. 155)

Quando escrevi esse texto eu pensava justamente nisso, se de fato a criatividade me é inerente ou não, se sou uma genuína militante da poesia. Aí tive essa impressão, como se a poesia fosse a ferida aberta que eu vejo, ou sinto, ou absorvo do mundo, e ela pode, inclusive, estar em mim, na minha alma, em meu coração, ou na minha pele. Então eu preciso, por necessidade de sobrevivência mesmo, pegar a palavra (linha) e costurar essa ferida (poesia). No caso, portanto, eu sou a agulha que, com a linha, costura a ferida. Mas não sem dor – nunca sem dor!


Artur Gomes – Que pergunta não fiz que você gostaria de responder?

Nic Cardeal – Adorei todas as perguntas feitas. Talvez seja apenas importante frisar que, para as mulheres, as dificuldades do caminho na literatura são sempre maiores do que para os homens. Então sempre gosto de lembrar que desde 2016 as mulheres brasileiras têm levantado uma ‘bandeira’ importante, um movimento que só faz crescer – é o Movimento ‘Mulherio das Letras’, que reúne mulheres não somente escritoras, poetas, mas também todas aquelas dedicadas a outras vertentes artísticas, como ilustradoras, designers, pintoras, compositoras e/ou cantoras, editoras, acadêmicas etc.

Além de ser um movimento, é um incrível ‘alimento’ que nos fortalece, não nos deixa enfraquecer diante das agruras destes tempos difíceis, sombrios. É um grupo literário nacional, com intenção de agregar, revelar, auxiliar mulheres ligadas à literatura. Como já disse uma das idealizadoras e organizadoras do grupo, a premiada escritora Maria Valéria Rezende, “a ideia é que seja uma forma de congregação de autoras, completamente livre e sem hierarquia.”

O Mulherio é um “coletivo feminista literário formado por mulheres diretamente interessadas na expressão pela palavra escrita ou oral”, como registrado nas regras e dicas da página no Facebook, e esse “coletivo é apartidário, mas não é apolítico. Somos unidas na luta pela participação ativa da mulher na literatura nacional, levando em conta os momentos políticos e nossa inserção política na sociedade”.

A importância de um movimento como esse é fantástica, e isso já sentimos na pele, nós que estivemos em João Pessoa/PB (Primeiro Encontro Nacional Mulherio das Letras, em 2017), no Guarujá/SP (Segundo Encontro Nacional Mulherio das Letras, em 2018), e/ou em Natal/RN (Terceiro Encontro Nacional Mulherio das Letras, em 2019), de uma forma ou de outra, pois muitas das nossas inquietações, diante da histórica exclusão das mulheres nos tradicionais espaços literários, têm sido sanadas ao longo destes poucos anos de existência do movimento.

Seja por meio de publicações independentes,  exclusivamente de autoria feminina, seja pelo aumento da participação feminina em concursos literários nacionais e/ou estrangeiros, seja nos debates e discussões acerca do papel da mulher escritora no âmbito educacional e político, nestes obscuros tempos.

 Além disso, já temos o movimento ‘Mulherio das Letras’ em Portugal, na Europa e nos Estados Unidos, todos representados por mulheres brasileiras lá residentes, e que têm tomado frente em encontros literários naqueles países. Há uma ideologia aí inerente, mas há também, e principalmente, uma prática constante: queremos alcançar visibilidade e, fundamentalmente, igualdade entre todos nós, mulheres e homens, no meio literário.

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