terça-feira, 1 de março de 2022

Ademir Assunção




O RETORNO DE BILLY NEGÃO

 

Billy Negão é uma garota

Sem juízo nenhum

Foi amiga do Cazuza, trampava na noite

Jogava seu charme para qualquer um

Mas nunca hesitava, puxava a navalha

Botava otário pra correr

Sob a lua de neon, o sangue escorria

Nas sarjetas do baixo Leblon

Billy Negão é um perigo

Uma bandida, um avião

Uma boneca vadia

Se vira sem nenhum tostão

Billy desfila na passarela

dos malandros lá da Lapa

Reza na igreja dos loucos

E toda noite vai dormir chapada

Mas não marca bobeira, desvia das balas

Não vacila com a milícia

Sai da mira, enrola um beque, dá uma bola

Embola reggae com embolada

Billy Negão não quer treta com ninguém

Mas também não diz amém

Pra pastor ou impostor

Descolada, não suporta parasita

Não dá trela pra fascista

Sai no braço se alguém trisca

Na escola da vida ela é passista

Chama exu e tranca-rua

Bebe pinga e risca à faca

Chupa charuto, não aguenta desaforo

Solta densa baforada

Faz um talho no babaca

Billy só quer viver em paz

Se é homem ou mulher

Que diferença faz?

Billy Negão é um perigo

Uma bandida, um avião

Uma boneca vadia

Se vira sem nenhum tostão

Billy Negão é uma flor

Cheia de dengo e de malícia

Não se entrega pra polícia

Só se entrega por amor

*****

Quiser ver e ouvir como este poema fica num ska suingado, com metaleira de responsa (trombone, trompete e sax), venha ver o show Buena Onda Reggae Club e Ademir Assunção na sexta-feira (11), às 21h, Sesc Avenida Paulista.

https://www.sescsp.org.br/programacao/buena-onda-reggae-club-e-ademir-assuncao/?fbclid=IwAR1nc9haFkS1TErexVLV6Kophb0utWSSexZ0mlMF90fmrRBp7MhgpIskfC8

 

O Anjo do Ácido Elétrico

 

o anjo sujo, esfarrapado
              remela nos olhos
cabeça feita
             bate as asas sob o céu lilás
:
luas se dissolvem
             (comprimidos de sonrisal
na fornalha da noite)
             música que não cessa
minha mão dentro da sua
             veias são nervuras
golfinho saltando
              na pele das costas
vênus vestindo
             um manto de água
a ninfa chapada
             de olhos elétricos
cores girando
             no abismo sem fundo
dança de estrelas
             no teto da sala
dois sóis em cada ontem
             três vozes
na voz de quem cala


A Vertigem do Caos

 

um estranho entre estranhos, nômade
entre escombros, procuro sem
procurar, um não-lugar, o ventre
de látex de uma replicante quase
humana, as ruínas enfim apaziguadas
da bombonera, as águas que refluem
pra dentro da baía de todos
os infernos, ali, onde a eternidade
são os dentes de estanho do último sol
mastigando oceanos como fatias
de pizza, lançadas ao ocaso
do fundo de um naufrágio, ante
a dança misteriosa de um feiticeiro cherokee

 


A Canção dos Peixes

 

submersos
nas funduras

(de onde
alma alguma
retorna)

entre algas
rochas e restos
de naufrágios

cegos
e sem memória

os peixes
cantam
seus blues

canções inaudíveis
de um tempo
sem tempo

que ninguém
(nem coltrane
nem hermeto)
pode ouvir

em lugar algum


A Volta do Anjo Torto

 

no canto da sala a TV ligada
                o pastor gritava
a bolsa despencava
                as contas vencidas
as batatas queimadas
                o dólar subia
o poeta pirava
                “meu deus, como pode
tanta merda enlatada?
                 que gente mais troncha
que vida fodida
                 quer saber
dessa noite não passa
                 ou pulo do empire state
ou me torno um homicida”
                 mas eis que um anjo torto
aquele mesmo, com asas de avião
                  entrou pela porta
um baseado na mão
                 bateu as duas asas
e foi logo dizendo:
                “sai dessa, poeta
para de punheta
                 vive a vida, desencana
come sua mina, segue seu rumo
                  o real é a ilusão virtual
dos que batem a cara contra o muro”


olho o olho que me olha

olho o olho

olho a lua

o olho que me olha olha mas não vê


olho o olho que me olha

olho a rua a lua a rua a rua a rua

eu atravesso a rua
o olho que me olha olha mas não sabe

o quê

olho o olho no espelho

olho de loba

o olho que me olha olha mas não lê

vou olhando olho a olho corpo a corpo

olho ilhas

olho dentro de você ...



TRATO

 

fiz um trato com o vento,

vamos dar um tempo, um

do outro, escapar deste

cenário viciado, e vagar

sem rumo pelas montanhas,

pradarias e pastagens,

sem deixar rastros nem

postagens, antes que eu

esteja morto, condenado

que sou, desde o nascimento

 

você não, você sempre estará

por aqui, mudando de cara,

em movimento, ora rugindo

feroz, destelhando casas,

arrastando vacas, ora brisa

suave, acariciando cabelos

da menina, que caminha pela

praia, quase pronta pra parir,

outra vida, neste redemunho

desse mundo em desalinho

 

fiz um trato com o vento,

você vai por lá, eu por ali,

por deus, por buda, por allah,

pelo nome que tanto faz,

quem sabe a gente volte

a se encontrar, naquela

esquina inesperada, onde

os fantasmas procuram a

paz, e os corvos crocitam

como loucos, antes que eu

 

esteja morto e você bem

posto, no alto, com sua

farda puída, guardando

as muralhas precárias dessa vida

 

fiz um trato com o vento

e tudo o que vi foi um aceno,

em silêncio, breve tremular

nas folhas finas do feno

 

Ademir Assunção

Risca Faca

SELO DEMÔNIO NEGRO – 2021




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