onde
tudo é carnaval
minha madrinha se chamava cecília nunca
soube onde minha mãe a conheceu por muitos anos morou na rua sacramento ao lado
do colégio estadual nilo peçanha primeiro endereço que conheci nesta cidade antes
de estudar no grupo escolar xv de novembro de onde muitas vezes assisti
desfilar a mocidade louca ao lado do meu padrinho benedito que inventou deixa
que eu chuto meu guardião absoluto
Artur
Gomes
Vampiro Goytacá
cidade veracidade
campos 189
transverso
atravesso esta cidade
que me atravessa
em silêncio
ouço o gemido
dos teus ecos
por ruas avenidas e vielas
sinto saudade
dos terreiros de jongo
nas favelas
e as lavadeiras
das pinturas aquarelas
em teus aceiros
fiz meus trilhos
em cada trilha
dos meus traços
no encontro
ao ururau no cais da lapa
teu por do sol
pode ser beijo
ou também tapa
quando olho a catedral
e seu contorno
seres famintos
alimentando o desalento
me solto ao vento
quando penso o infinito
beijo teu rio
o paraíba que me leva
em teu lamento
me concentro em minha reza
Artur Gomes
https://arturgumes.blogspot.com/
goytacá boy
musicado
e cantado por naiman
no cd fulinaíma sax blues poesia - 2002
ando por são paulo meio araraquara a pele índia do meu corpo concha de
sangue em tua veia sangrada ao sol na carne clara
juntei meu goytacá teu guarani
tupy or not tupy não foi a língua que ouvi
em tua boca caiçara
para falar para lamber para lembrar
da sua língua arco íris litoral como colar de uiara é que eu choro como a chuva
curuminha mineral da mais profunda
lágrima que mãe chorara
para roçar para provar para tocar
na sua pele urucum de carne e osso
a minha língua tara
sonha cumer do teu almoço
e ainda como um doido curuminha
a lamber o chão que restou da Guanabara
Artur
Gomes
Juras Secretas
Editora Penalux – 20218
Poética, política e memória
Escrever
prefácio para um livro de Artur Gomes é um desafio prazeroso. Desafiante é
mergulhar no universo imagético e político que sempre compôs sua poética.
Este O Homem Com A Flor Na Boca : Deus Não Joga
Dados acrescenta o substrato memorialístico ao seu repertório
formando a tríade que sustenta o livro temática e formalmente. Meu primeiro
contato com a poesia de Artur se deu nos anos 80 por intermédio de seu livro Suor
& Cio, obra cuja temática estava em consonância com as
reflexões suscitadas pelas “comemorações” do centenário da
Abolição da Escravatura em 1988. A partir daí, acompanhei suas criações tanto
impressas quanto performáticas, pois Artur não é poeta apenas
de livros e silêncios das salas de estares, livrarias e bibliotecas, mas também
dos bares, ruas e praças que são do poeta como o céu é do condor.
Poucos poetas contemporâneos expressam tão
bem as principais bandeiras do Modernismo de 22 quanto esse vate pós-moderno.
Sua poesia é política, antropofágica, nonsense, musical, polifônica e sobretudo
intertextual, além de dotada de uma brasilidade corrosiva, avessa ao
nacionalismo acrítico que se tem espraiado pela ex-terra de “Santa cruz”.
Neste livro estão todas essas marcas do poeta
às quais acrescento o caráter memorialístico. Nele, Artur não apenas rememora
antigos poemas por meio de alusões, paráfrases e paródias como traz para seus
versos passagens assumidamente biográficas, se apropriando, em alguns momentos,
do gênero diário.
Estão contidos nessas memórias seus vários
heterônimos: Gigi Mocidade, Federico Baudelaire, EuGênio Mallarmè, Federika
Bezerra, Federika Lispector. Diferente do que ocorre com o poeta português
Fernando Pessoa, a heteronímia em Artur não se manifesta menos na autoria do
que no tecido ficcional. Suas diferentes personas emergem dos poemas para a
realidade das redes sociais, interagem entre si, com o poeta e os leitores.
É Gigi Mocidade, por exemplo, que carrega a
bandeira do espírito subversivo com seu grito “Irreverência ou morte”, já
nas primeiras páginas do livro, e a epígrafe de Federico Baudelaire “escrevo
para não morrer antes da morte” anuncia a intenção memorialística. Sócrates,
no seu diálogo com Fedro na obra de Platão, argumenta que a escrita seria a
morte da memória, mas o que seria de todo o repertório literário não fosse essa
invenção humana? Quais mentes suportariam tantos signos produtores de imagens
cujos sentidos transcendem às vezes a razão? A escrita não se tornou a morte da
memória, mas impossibilitou a morte dos poetas eternizados nas páginas dos
livros e memórias dos leitores.
poema 10
meus caninos
já foram místicos
simbolistas
sócio políticos
sensuais eróticos
mordendo alguma
história
agora estão famintos
cravados na memória
Nesses oito versos, o autor nos apresenta
metalinguisticamente seu percurso poético até este livro que não é uma obra
dedicada ao passado. O presente político do Brasil (des) norteia o poeta que
não deixa de atacar com sua lira de peçonha os problemas que nunca deixaram de
afligir estas paragens desde o suposto grito de Cabral.
poema
12
tem algo de errado
nessas estatísticas
de mortes
dessa pandemia
multipliquem
60.000 X 10
e ainda não vai ser
exato
o número de cadáveres
empilhados nos campos
de concentração
que dá um nome
ao país
que ainda nem era uma
nação
A
verve surrealista do poeta se manifesta principalmente nos poemas narrativos
protagonizados por personagens intertextuais como “macabea” (alusão evidente à
conhecida protagonista de A hora da estrela de Clarice
Lispector) e alter egos – lady gumes – parodísticos do próprio autor.
Em FULINAIMAGEM 14 o tom de
diário se instaura com inscrição de data do acontecimento rememorado e
transborda na escrita de si em que se revela o papel que a poesia e o teatro
desempenham na escritura de seu trajeto como autor: “a minha relação poesia
teatro poesia é visceral vital para o que escrevo como quem encena a
necessidade do corpo como expressão”. Artur Gomes, este
homem com a flor na boca, anda a espalhar o veneno agridoce de sua poesia, numa
obra em que não há fronteiras entre o artista, o cidadão, o personagem, o eu
poético, a obra. Seu livro não é um objeto, mas um produto interno e nada
bruto. A obra é sempre muito maior que o livro, pois este, matéria assim como o
homem, finda. A obra, esse totem que se pode cultuar no altar da memória, está
sempre presente. E é disso que o poeta fala: do tempo presente, do homem presente,
da vida presente. Parafraseando Drummond, com O Homem Com
A Flor Na Boca, “não nos afastemos, não nos afastemos
muito”, vamos de mãos dadas com a poesia de Artur.
Adriano Carlos Moura
Professor de Literatura – IFFluminense, Campos dos Goytacazes-RJ
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