Artur
Gomes
O Homem com A Flor Na Boca
Poética, política e memória
Escrever
prefácio para um livro de Artur Gomes é um desafio prazeroso. Desafiante é
mergulhar no universo imagético e político que sempre compôs sua poética.
Este O Homem Com A Flor Na Boca : Deus Não Joga
Dados acrescenta o substrato memorialístico ao seu repertório
formando a tríade que sustenta o livro temática e formalmente. Meu primeiro
contato com a poesia de Artur se deu nos anos 80 por intermédio de seu livro Suor
& Cio, obra cuja temática estava em consonância com as
reflexões suscitadas pelas “comemorações” do centenário da
Abolição da Escravatura em 1988. A partir daí, acompanhei suas criações tanto
impressas quanto performáticas, pois Artur não é poeta apenas
de livros e silêncios das salas de estares, livrarias e bibliotecas, mas também
dos bares, ruas e praças que são do poeta como o céu é do condor.
Poucos poetas contemporâneos expressam tão
bem as principais bandeiras do Modernismo de 22 quanto esse vate pós-moderno.
Sua poesia é política, antropofágica, nonsense, musical, polifônica e sobretudo
intertextual, além de dotada de uma brasilidade corrosiva, avessa ao
nacionalismo acrítico que se tem espraiado pela ex-terra de “Santa cruz”.
Neste livro estão todas essas marcas do poeta
às quais acrescento o caráter memorialístico. Nele, Artur não apenas rememora
antigos poemas por meio de alusões, paráfrases e paródias como traz para seus
versos passagens assumidamente biográficas, se apropriando, em alguns momentos,
do gênero diário.
Estão contidos nessas memórias seus vários
heterônimos: Gigi Mocidade, Federico Baudelaire, EuGênio Mallarmè, Federika
Bezerra, Federika Lispector. Diferente do que ocorre com o poeta português
Fernando Pessoa, a heteronímia em Artur não se manifesta menos na autoria do
que no tecido ficcional. Suas diferentes personas emergem dos poemas para a
realidade das redes sociais, interagem entre si, com o poeta e os leitores.
É Gigi Mocidade, por exemplo, que carrega a
bandeira do espírito subversivo com seu grito “Irreverência ou morte”, já
nas primeiras páginas do livro, e a epígrafe de Federico Baudelaire “escrevo
para não morrer antes da morte” anuncia a intenção memorialística.
Sócrates, no seu diálogo com Fedro na obra de Platão, argumenta que a escrita
seria a morte da memória, mas o que seria de todo o repertório literário não
fosse essa invenção humana? Quais mentes suportariam tantos signos produtores
de imagens cujos sentidos transcendem às vezes a razão? A escrita não se tornou
a morte da memória, mas impossibilitou a morte dos poetas eternizados nas
páginas dos livros e memórias dos leitores.
poema 10
meus caninos
já foram místicos
simbolistas
sócio políticos
sensuais eróticos
mordendo alguma
história
agora estão famintos
cravados na memória
Nesses oito versos, o autor nos apresenta
metalinguisticamente seu percurso poético até este livro que não é uma obra
dedicada ao passado. O presente político do Brasil (des) norteia o poeta que
não deixa de atacar com sua lira de peçonha os problemas que nunca deixaram de
afligir estas paragens desde o suposto grito de Cabral.
poema
12
tem algo de errado
nessas estatísticas
de mortes
dessa pandemia
multipliquem
60.000 X 10
e ainda não vai ser
exato
o número de cadáveres
empilhados nos campos
de concentração
que dá um nome
ao país
que ainda nem era uma
nação
A
verve surrealista do poeta se manifesta principalmente nos poemas narrativos
protagonizados por personagens intertextuais como “macabea” (alusão evidente à conhecida
protagonista de A hora da estrela de Clarice Lispector) e
alter egos – lady gumes – parodísticos do próprio autor.
Em FULINAIMAGEM 14 o tom de
diário se instaura com inscrição de data do acontecimento rememorado e
transborda na escrita de si em que se revela o papel que a poesia e o teatro
desempenham na escritura de seu trajeto como autor: “a minha relação poesia
teatro poesia é visceral vital para o que escrevo como quem encena a
necessidade do corpo como expressão”. Artur Gomes, este
homem com a flor na boca, anda a espalhar o veneno agridoce de sua poesia, numa
obra em que não há fronteiras entre o artista, o cidadão, o personagem, o eu
poético, a obra. Seu livro não é um objeto, mas um produto interno e nada
bruto. A obra é sempre muito maior que o livro, pois este, matéria assim como o
homem, finda. A obra, esse totem que se pode cultuar no altar da memória, está
sempre presente. E é disso que o poeta fala: do tempo presente, do homem
presente, da vida presente. Parafraseando Drummond, com O Homem Com
A Flor Na Boca, “não nos afastemos, não nos afastemos
muito”, vamos de mãos dadas com a poesia de Artur.
Adriano Carlos Moura
Professor de Literatura – IFFluminense, Campos dos
Goytacazes-RJ –
disponível em
www.editorapenalux.com.br/loja
A Rosa Vermelha do Povo
para Drummond, Darcy Ribeiro, Brizola
e Oscar Niemayer in Memória
a rosa de Hiroshima ainda fala
a rosa de Hiroshima ainda cala
Frida e seus cabelos de aço
Picasso pintou Guernica
e quando os generais de Franco
lhe perguntaram:
- foi você quem fez isso:?
ele prontamente respondeu
- não, foram vocês que fizeram.
Cartola um dia me disse
que as rosas não falam
simplesmente as rosas exalam
o perfume que roubam de ti
Agora trago a Rosa do Povo
para os dias de hoje nesse Templo
escuro
quem poderá viver nesse presente?
quem poderá prever nosso futuro?
nem Zeus nem o diabo que os carregue
eu quero um reggae um arte lata
a vida é muito cara nada barata
eu sou Drummundo Curumin - no fundo
Tupã Rebelde não pede arrego
poesia é pra tirar o teu conforto
poesia é pra bagunçar o teu sossego
educação gramatical
ela tem um travessão
atravessado
na frente da palavra quero
me diz: espera
não por falta de desejo
tenho medo de dois pontos:
os seus olhos os seus beijos
pra onde você quer me levar
de tudo que a exclamação possa
engendrar
respondo:
coloco vírgulas ponto e vírgulas
reticências qualquer outro sinal
abro parênteses
(os meus poemas nunca vão ter ponto final)
Bolero Blue
beber desse conhac em minha boca
para matar a febre nas entranhas
entre dentes - indecente é a forma
que te como bebo ou calo
e se não falo quando quero
na balada ou no bolero
não é por falta de desejo
é que a fome desse beijo
furta qualquer palavra presa
como caça indefesa
dentro da carne que não sai
Teatro do
Absurdo
o
quarteto da hipotenusa
versus
o quadrado do quarteto
da
hipotenusa a musa no quadrado
do
retrato fosse apenas fotografia
mas
não sendo hipotenusa
somente
musa algaravia
uma
palavra mais que estrada
sendo
musa multivia
me
levou nessa jornada
para
fora da bahia
todos
os santos mar aberto
no
abismo a fantasia
de
querer musa entretanto
muito
mais que poesia
A flor dos meus delírios
tem cheiro de poesia
relâmpagos de Iansã
incêndio no meio dia
Netuno em polvorosa
me disse em verso e prosa
que ela vem com o frescor da maresia
e eu serei o seu Ogum
anjo da guarda e companhia
hoje mesmo distante
essa preamar me incendeia
ondas espumas explodem na areia
tempestades trovoadas ventania
e nem sei se estando perto
calmaria
tirar leite das pedras
plantar
flores no deserto
talvez
seja esta a minha sina
colher
a lírica
na
argamassa do concreto
metáfora
meta dentro
meta fora
que a meta desse trem agora
é seta nesse tempo duro
meta palavra reta
para abrir qualquer trincheira
na carne seca do futuro
meta dentro dessa meta
a chama da lamparina
com facho de fogo na retina
pra clarear o fosso escuro
6
outubro - 2022
a
mulher dos sonhos
voltou
ontem
sedenta
faminta insaciável
esgotou-me
à
última gota
mesmo
vazio
me
senti um tanto cheio
nem
foi delírio loucura
porque
vi no meu e-mail
o
nome da criatura
Em 1995 no Centro Cultural Maria Antônia, na USP,
em cia da minha querida amiga Silvia Passareli, assisti uma encenação de Cacá
de Carvalho, com texto de Pirandello que me pegou da medula ao osso. A plateia
era de 40 pessoas apenas e Cacá circulava entre nós com a sua energia pulsante
magnética. O texto era um fragmento de uma trilogia que ele deu o nome de O
Homem Com A Flor Na Boca. E a ele, Cacá de Carvalho, dedicamos este livro.
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