quarta-feira, 29 de maio de 2024

O Homem Com A Flor Na Boca

Artur Gomes

O Homem com A Flor Na Boca

Poética, política e memória

 Escrever prefácio para um livro de Artur Gomes é um desafio prazeroso. Desafiante é mergulhar no universo imagético e político que sempre compôs sua poética. Este O Homem Com A Flor Na Boca : Deus Não Joga Dados acrescenta o substrato memorialístico ao seu repertório formando a tríade que sustenta o livro temática e formalmente. Meu primeiro contato com a poesia de Artur se deu nos anos 80 por intermédio de seu livro Suor & Cio, obra cuja temática estava em consonância com as reflexões suscitadas pelas “comemorações” do centenário da Abolição da Escravatura em 1988. A partir daí, acompanhei suas criações tanto impressas quanto performáticas, pois Artur não é poeta apenas de livros e silêncios das salas de estares, livrarias e bibliotecas, mas também dos bares, ruas e praças que são do poeta como o céu é do condor.

 Poucos poetas contemporâneos expressam tão bem as principais bandeiras do Modernismo de 22 quanto esse vate pós-moderno. Sua poesia é política, antropofágica, nonsense, musical, polifônica e sobretudo intertextual, além de dotada de uma brasilidade corrosiva, avessa ao nacionalismo acrítico que se tem espraiado pela ex-terra de “Santa cruz”.

 Neste livro estão todas essas marcas do poeta às quais acrescento o caráter memorialístico. Nele, Artur não apenas rememora antigos poemas por meio de alusões, paráfrases e paródias como traz para seus versos passagens assumidamente biográficas, se apropriando, em alguns momentos, do gênero diário.

 Estão contidos nessas memórias seus vários heterônimos: Gigi Mocidade, Federico Baudelaire, EuGênio Mallarmè, Federika Bezerra, Federika Lispector. Diferente do que ocorre com o poeta português Fernando Pessoa, a heteronímia em Artur não se manifesta menos na autoria do que no tecido ficcional. Suas diferentes personas emergem dos poemas para a realidade das redes sociais, interagem entre si, com o poeta e os leitores.

 É Gigi Mocidade, por exemplo, que carrega a bandeira do espírito subversivo com seu grito “Irreverência ou morte”, já nas primeiras páginas do livro, e a epígrafe de Federico Baudelaire “escrevo para não morrer antes da morte” anuncia a intenção memorialística. Sócrates, no seu diálogo com Fedro na obra de Platão, argumenta que a escrita seria a morte da memória, mas o que seria de todo o repertório literário não fosse essa invenção humana? Quais mentes suportariam tantos signos produtores de imagens cujos sentidos transcendem às vezes a razão? A escrita não se tornou a morte da memória, mas impossibilitou a morte dos poetas eternizados nas páginas dos livros e memórias dos leitores.

 

poema 10

meus caninos

já foram místicos

simbolistas

sócio políticos

sensuais eróticos

mordendo alguma história

agora estão famintos

cravados na memória

 

Nesses oito versos, o autor nos apresenta metalinguisticamente seu percurso poético até este livro que não é uma obra dedicada ao passado. O presente político do Brasil (des) norteia o poeta que não deixa de atacar com sua lira de peçonha os problemas que nunca deixaram de afligir estas paragens desde o suposto grito de Cabral.

 

poema 12

 

tem algo de errado

nessas estatísticas de mortes

dessa pandemia

multipliquem  60.000 X 10

e ainda não vai ser exato

o número de cadáveres

empilhados nos campos de concentração

que dá um nome ao   país

que ainda nem era uma nação

 

A verve surrealista do poeta se manifesta principalmente nos poemas narrativos protagonizados por personagens intertextuais como “macabea” (alusão evidente à conhecida protagonista de A hora da estrela de Clarice Lispector) e alter egos – lady gumes – parodísticos do próprio autor.

 

Em FULINAIMAGEM 14 o tom  de diário se instaura com inscrição de data do acontecimento rememorado e transborda na escrita de si em que se revela o papel que a poesia e o teatro desempenham na escritura de seu trajeto como autor: “a minha relação poesia teatro poesia é visceral vital para o que escrevo como quem encena  a necessidade do corpo como expressão”. Artur Gomes, este homem com a flor na boca, anda a espalhar o veneno agridoce de sua poesia, numa obra em que não há fronteiras entre o artista, o cidadão, o personagem, o eu poético, a obra. Seu livro não é um objeto, mas um produto interno e nada bruto. A obra é sempre muito maior que o livro, pois este, matéria assim como o homem, finda. A obra, esse totem que se pode cultuar no altar da memória, está sempre presente. E é disso que o poeta fala: do tempo presente, do homem presente, da vida presente. Parafraseando Drummond, com O Homem Com A Flor Na Boca, “não nos afastemos, não nos afastemos muito”, vamos de mãos dadas com a poesia de Artur.

  

                                   Adriano Carlos Moura

Professor de Literatura – IFFluminense, Campos dos Goytacazes-RJ –

disponível em

www.editorapenalux.com.br/loja


A Rosa Vermelha do Povo

para Drummond, Darcy Ribeiro, Brizola e Oscar Niemayer in Memória


a rosa de Hiroshima ainda fala

a rosa de Hiroshima ainda cala

Frida e seus cabelos de aço


Picasso pintou Guernica

e quando os generais de Franco

lhe perguntaram:


- foi você quem fez isso:?

ele prontamente respondeu

 - não, foram vocês que fizeram.

 

Cartola um dia me disse

que as rosas não falam

simplesmente as rosas exalam

o perfume que roubam de ti


Agora trago a Rosa do Povo

para os dias de hoje nesse Templo escuro

 quem poderá viver nesse presente?

quem poderá prever nosso futuro?

nem Zeus nem o diabo que os carregue

 

eu quero um reggae um arte lata

a vida é muito cara nada barata

eu sou Drummundo Curumin - no fundo

 Tupã Rebelde não pede arrego

poesia é pra tirar o teu conforto

poesia é pra bagunçar o teu sossego


educação gramatical

 

ela tem um travessão

atravessado

na frente da palavra quero

me diz: espera

não por falta de desejo

tenho medo de dois pontos:

os seus olhos os seus beijos

pra onde você quer me levar

de tudo que a exclamação possa engendrar

 

respondo:

 

coloco vírgulas ponto e vírgulas

reticências qualquer outro sinal

abro parênteses

(os meus poemas nunca vão ter ponto final)


Bolero Blue

 

beber desse conhac em minha boca

para matar a febre nas entranhas

entre dentes - indecente é a forma

que te como bebo ou calo

e se não falo quando quero

na balada ou no bolero

não é por falta de desejo

é que a fome desse beijo

furta qualquer palavra presa

como caça indefesa

dentro da carne que não sai

 

Teatro do  Absurdo

 

o quarteto da hipotenusa

versus o quadrado do quarteto

da hipotenusa a musa no quadrado

do retrato fosse apenas fotografia

mas não sendo hipotenusa

somente musa algaravia

uma palavra mais que estrada

sendo musa multivia

me levou nessa jornada

para fora da bahia

todos os santos mar aberto

no abismo a fantasia

de querer musa entretanto

muito mais que poesia

 


A flor dos meus delírios

tem cheiro de poesia

relâmpagos de Iansã

incêndio no meio dia

 

Netuno em polvorosa

me disse em verso e prosa

que ela vem com o frescor da maresia

e eu serei o seu Ogum

anjo da guarda e companhia

 

hoje mesmo distante

essa preamar me incendeia

ondas espumas explodem na areia

tempestades trovoadas ventania

e nem sei se estando perto

calmaria

 

 tirar leite das pedras

plantar flores no deserto

talvez seja esta a minha sina

colher a lírica

na argamassa do concreto


                                                                      metáfora

 

meta dentro
meta fora
que a meta desse trem agora
é seta nesse tempo duro
meta palavra reta
para abrir qualquer trincheira
na carne seca do futuro 
meta dentro dessa meta
a chama da lamparina 
com facho de fogo na retina 
pra clarear o fosso escuro

 

6 outubro - 2022

 

a mulher dos sonhos

voltou ontem

sedenta faminta insaciável

esgotou-me

à última gota

 

mesmo vazio

me senti um tanto cheio

nem foi delírio loucura

porque vi no meu e-mail

o nome da criatura


Em 1995 no Centro Cultural Maria Antônia, na USP, em cia da minha querida amiga Silvia Passareli, assisti uma encenação de Cacá de Carvalho, com texto de Pirandello que me pegou da medula ao osso. A plateia era de 40 pessoas apenas e Cacá circulava entre nós com a sua energia pulsante magnética. O texto era um fragmento de uma trilogia que ele deu o nome de O Homem Com A Flor Na Boca. E a ele, Cacá de Carvalho, dedicamos este livro.

 

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