segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Rafael Nolli - EntreVistas

Rafael |\Nolli - foto: Fernando Rabelo 

Conheci Rafael Nolli e uma pouco da sua ótima poesia nas redes sociais, quando criei esse projeto de EntreVistas, convide-o imediatamente, porque encontrei uma série de afinidades em como pensar e escrever poesia e a função do poeta no seu tempo presente.

 e aqui segue o nosso bate papo

Rafael Nolli é natural de Araxá, MG. Professor, formado em Letras e Geografia. Publicou livros de prosa e poesia, com destaque para Isca (poemas, lançado em 2020) e Gertrude Sabe Tudo (obra infanto-juvenil de 2016).

 Em diversas ocasiões fez mediações no projeto Sempre um Papo (entrevistando nomes como Valter Hugo Mãe, Aline Bei, Leila Ferreira, Aroeira).

 É um dos curadores do Fliaraxá (Festival Literário de Araxá), atuando na organização das atividades que se desenvolvem nas escolas da cidade.

Artur Gomes - Como se processa o seu estado de poesia?

 Rafael Nolli - Essa questão me intriga. Já pensei muitas vezes a respeito e sempre que encontro uma resposta para essa pergunta, ela é efêmera e não sobrevive a uma análise mais criteriosa. No geral, tudo tem início com o fascínio por algo. O fascínio por uma situação, por exemplo (da mais corriqueira a mais inusitada); o fascínio por uma palavra que aparece repentinamente, enfeitada, cheia de outras palavras em sua sombra, acenando, pedindo passagem. Uma coisa é certa: vencida essa etapa tem início a lapidação, a reescrita, a maturação. Não me canso de repetir essa frase mais que batida: a escrita é feita com inspiração (100%) e com transpiração (100%). Faltando um desses elemento nada acontece.

 Artur Gomes - Seu poema preferido? Próprio. Ou de outro poeta de sua admiração.

 Rafael Nolli - Tenho uma coleção – imensa – de poemas preferidos. Sempre menciono um trabalho diferente, toda vez que essa questão surge. Hoje, fico com esse poema da Anna Akhmátova (a tradução é de Lauro Machado Coelho):


À Musa  

Quanto, à noite, espero a tua chegada,
a vida me parece suspensa por um fio.
Que importam juventude, glória, liberdade,
quando enfim aparece a hóspede querida
trazendo nas mãos a sua rústica flauta?
Ei-la que vem. Soergue o seu véu,
olha para mim atentamente.
E lhe pergunto: “Foste tu quem a Dante
ditou as páginas do Inferno?”. E ela: “Sim, fui eu”.

 Artur Gomes - Qual o seu poeta de cabeceira? 

 Rafael Nolli - Tenho certeza de que o poeta que mais visitei ao longo da vida foi o Carlos Drummond de Andrade. Porém, sei que ele não está sozinho na cabeceira. Tenho um grupo de poetas que me acompanham a vida toda, que independentemente do momento, da situação, nunca saem do meu radar: em grau maior ou menor de intensidade sempre tenho comigo uma trindade: Carlos Drummond de Andrade, William Carlos Williams, Wislawa Szymborska.

 Artur Gomes - Em seu instante de criação existe alguma pedra de toque, algo que o impulsione para escrever?

 Rafael Nolli - Uma frase de Jean Cocteau responde a essa questão com maestria: “A poesia é uma religião sem esperança”. Creio que seja uma boa síntese desse impulso: escrevo sempre, regularmente, pois a escrita é algo essencial para mim, no entanto, sem grandes esperanças, sem maiores expectativas: vivemos em um país – infelizmente – de tão poucos leitores e de nenhum – nada-nada – interesse político para que esse cenário mude. Talvez seja isso: escrevemos porque não conseguimos não escrever.

 Artur Gomes - Livro que considera definitivo em sua obra?

 Rafael Nolli - Uma das poucas questões que tenho certeza: meu livro definitivo é que que está por vir; é o livro que nesse momento estou escrevendo. Sem essa certeza, seria impossível continuar insistindo, dedicando tempo (e nada é mais valioso do que o tempo).

Artur Gomes - Além da poesia em verso  já exercitou ou exercita outra forma de linguagem com poesia?

 Rafael Nolli - No campo da poesia tenho experimentado de tudo, sempre. Talvez aí, nesse ponto, esteja a beleza da poesia: as possibilidades são imensas, o campo para experimentar é vasto: já escrevi letras de música (um veículo fascinante para a poesia, tão fascinante quanto o poema); já fiz audiolivro com intervenções visuais (meu livro-poema Isca, por exemplo, foi lançado em e-book tal como em formato de vídeo para o youtube, exigindo readequação, remodelagem do texto, etc...). Meu primeiro livro, publicado em 2005, é uma seleção de prosas poéticas.

 Artur Gomes - Qual poema escreveu quando teve uma pedra no meio do caminho?

 Rafael Nolli - Um dia vi uma senhora, em situação de rua, já de idade avançada, lutando contra dois vira-latas. Aquele momento, sem dúvida, foi uma pedra – incontornável – no meu caminho. Segue o poema:

 

Manda que estas pedras se tornem em pães

 1

a mulher vestida com farrapos

gritava “acuda!” “acuda!”

enquanto dois cães

prestes a atacá-la

ladravam ferozmente                                       

se movimentando em círculos

como se tivessem uma estratégia

& não fossem uma pilha de nervos

guiados pela fome

 

2

o pão em sua mão

dormido de tantos e tantos dias

desatando a fúria da matilha

 

as pombas no fio de alta tensão

– prevendo as migalhas (espólios da 

guerra) –

esperavam a hora de agir

 

3

“Acuda!” “Acuda!” a mendiga gritava

já completamente dominada:

as costas de encontro com a parede

um cão agarrado à barra da saia

outro, babando de raiva, rosnando

cobrindo a retaguarda

 

Mas ninguém acudia:

suas vidas não dependiam daquele pedaço de pão

e m b o l o r a d o

Artur Gomes - Revisitando Quintana: você acha que depois dessa crise virótica pandêmica, quem passará e quem passarinho?

 Rafael Nolli - Creio que seja preciso um maior distanciamento histórico para dar uma resposta mais apurada, pois nesse momento estamos no olho do furacão, sem possibilidades de ver muito além. Estou escrevendo uma série de poemas sobre a pandemia. Esse se chama “Constatação”:

 

cada casa é uma trincheira

que se defende de um inimigo invisível

 (talvez seja o vizinho

ou nós mesmos – algo nos diz)


e, rua por rua, a guerra é perdida

pelo avanço de exército nenhum

 

Mas prefiro ficar com o Quintana: eles passarão.

 Artur Gomes - Escrevendo sobre o livro Pátria A(r)mada, o poeta e jornalista Ademir Assunção, afirma que cada poeta tem a sua tribo, de onde ele traz as suas referências. Você de onde vem, qual é a sua tribo?

Rafael Nolli - Na juventude, adorava ver a ligação espiritual (ou a possível ligação espiritual) que estabelecia uma linhagem de poetas-profetas místicos, onde São João da Cruz, William Blake, Walt Whitman, Arthur Rimbaud,  e Allen Ginsberg se conectavam (e no meio disso tudo se encontravam Patti Smith, Raul Seixas e Jim Morrison, com suas vozes e bandas). Mas, desde sempre, sabia que essa não era a minha tribo. Posso dizer que minha tribo (no sentido espiritual) é aquela dos poetas sem biografia, que passaram a vida trabalhando nos mais corriqueiros ofícios e que escreviam poemas nos finais de semana (engasgados, atarefados): Wallace Stevens, Drummond, José Paulo Paes, William Carlos Willians. No sentido mais direto, sou da tribo dos poetas que se formaram nos blogs, que se organizaram nesses espaços e descobriram ali como funciona o mundo literário. Mais ainda: sou da tribo da Turma de Araxá (nome, aliás, de uma tribo indígena): aquela turma que vejo na rua, encontro em saraus; nos esbarramos em eventos, nos encontramos – esporadicamente – para conversar. São muitos, esses poetas: Líria Porto, Flávio Otávio, Lisa Alves, Cássio Amaral, Heleno Álvares, Geraldo Neto, etc.

 Artur Gomes - Nos dias atuais o que é ser um poeta, militante de poesia?

 Rafael Nolli - É óbvio que a poesia é política, como tudo no mundo é político (negar isso é uma posição política: talvez a pior de todas, pois isenta o poeta dos compromissos urgentes, imediatos da vida). Há uma pandemia em andamento no país, em um momento de gestão desastrosa; há um governo que demonstra, desde sempre, uma repulsa, um ódio, uma aversão não só com os artistas, mas pela arte em si. Fingir que nada disso está acontecendo, se negar a ver a realidade, é de uma pequenez retumbante. Não basta estar escrevendo, publicando; a questão é muito mais profunda, é preciso – urgentemente – estar se posicionando. Nada mais constrangedor para um poeta, para um escritor, que um monte de palavras, descoladas da realidade, dentro de um livro (a capa pode até ser bonita) guardado na estante.

 Artur Gomes - Que pergunta não fiz que você gostaria de responder?

 Rafael Nolli - Tenho pensado muito sobre a publicação de poemas em livros físicos (tal como a publicação de poemas em e-books e nas redes sociais). Pensado muito sobre o tamanho do público leitor, que parece ser um pouco menor que o número de poetas – o que é uma tragédia, convenhamos. No entanto, esse é mais um assunto daqueles, que entristece: livros de poemas com tiragem de 500 exemplares, no máximo 2000 (dois mil exemplares!)? Em um país continental com 210 milhões de habitantes? Triste essa realidade. Fica a esperança que bons ventos soprem e as coisas mudem.


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Um comentário:

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