quinta-feira, 4 de setembro de 2025

TransPoÉticas - Coletânea de Poetas Vivos


                GÊNESE

 

Venho de um país

sem origem

 

e após o furo do fuzil

na parede da sala

após a bala perdida

por sorte no ralo da pia

 

e mais ainda: após

a porrada

após esse agora de morte matada

rezo que eu nasça

na próxima linha

 

Pertenço

nem a mim:

aceito a cegueira

de ver

com a mesma potência

de caos e clareza

o não e o sim

a feiura e a beleza

dos outros e a minha

o amor de cacto

e o oásis romântico

 

Alguém me diz curar-se

de tristezas cutâneas

da alergia à vida

no instante em que eu danço

 

Quem dança comigo

confidencia, publica

estar livre de um câncer

Livres

os  corpos ao redor

daqui em diante

 

Entendo de ebó

padê, axoxô

amalá, aberém

nada, porém, de salvar

gentes contentas só

com minha presença

 

Logo eu: um criado

pela ausência

por bloqueios

de lágrimas na cara

bloqueios na conta bancária

e no diploma que fazem

a diferença

 

Um deportado crônico

do sonho

e da realidade

órfão quase

de paternidade

embora um sobrenome

Neto

me acorrente

ao patriarcado

 

Do lado de dentro mais tenso

alongo os músculos

do sentimento melhor

o mais forte e o mais frágil

que contraio

alargo o que julgo pequeno

entre os ligamentos

até me ligar a quem fora

me jura imensa alturas

que não tenho

 

Não ter

parece toda a trajetória

agradeço ao menos por ser

o que me tem

sagrado em carne e osso

enquanto incorporo

o sentido abstrato

da existência nos ritos

de nossa finitude

concreta e contraditória

 

Remédio veneno

um moço igual a todos:

divino diabólico

dadivoso duvidoso tema

de um livro de poemas

escrito pela voz

que me acalma

me atormenta

e me espraia o pensamento

no momento em que também

a desvendo

 

Vedado

a sentenças

me apresento: prazer

não passo de um vento

entre tantos

de pecados ou sem

e a mesma fenda e fome

de que você é refém

eu levo e sangro

sem saber por que me chama

por um nome Santo

 

Igor Fagundes

do livro SANTO

Ventura Editora - 2024

ÀWÚRÉ MI: BÊNÇÃO AO POETA

                                    Will Santorinne

*

                                  Deixa eu me apresentar

                                         Eu acabei de chegar

                                     Depois que me escutar 

                               Você vai lembrar meu nome.

                              Ana Vitória e Rita Lee

Escrevo enquanto preparo a próxima performance. Na fronteira entre o Morro do Adeus, em Ramos e o Complexo do Alemão, em Bonsucesso, ambos no Rio de Janeiro, contraio-me em quedas, tropeços, mortes contínuas. Percorro o chão e desço abaixo do inferno: falo com os mortos. Um grego ainda vivo me recorda uma palavra : catábase. Áfricas devem ter seu tempo próprio. Desconheço-o. Áfricas vêm também de quedas, tropeços, mortes contínuas. Mas sei em iorubá Ikú, a morte que leva o humano depois de arrogar sobrepor-se os poderes dos deuses. Só Olorun sabe a hora de afundar-nos sem volta. Ainda volto. O palco? Experimento-o estreito. No centro, uma cadeira amarrada a tecidos feitos de cordas para escaladas. (Des)equilobro-me, caio, cambalhoto, subo, fico de pé. Danço. Rasgo-me, piro, surto – herói de mim? Pesquiso uma trilha sonora: Pushin`on. Com Marvin Brooks ou na versão mais épica, a instrumental. Na favela, também há epopeias.

Igor Fagundes é testemunha-poeta. Presencia e presenteia amor. Vejo dança em tudo o que ele escreve. Ritmo até quando digita no laptop a escalada ao poema difícil. Viajo. Mas sem Adeus ao Morro. O Complexo do Alemão se torna um alemão  cabaré, onde europeus se empolgam com meu show, sem ideia do espetáculo diário nada maravilhoso, do Rio de  Janeiro. Pelas ruas do Hemisfério Norte, cruzam-me ciganos, muçulmanos, africanos, brancos. Por onde ando, todos me cumprimentam sem sabe quem sou e o meu nome: “Hi, Master”. De quê? De quem? A saudação inquieta “You`are a Wizard”, completam nas esquinas, pedindo que os acorde da hipnose a que, sem intenção nem consciência, lhes incito. Nada sei disso. O que sei: da fé em Estamira, a catadora de lixo louca lúcida. Fé nas capicuas que abundam no relógio, a cada vez que miro a hora. Fé em Diadorim, tatuagem em minha sombra. Fé em minha gata Szklank. Fé nos outros versos do poema colhido como epígrafe do livro: “em caso de poemas difíceis use a dança /(...)/ poema que nasce do pé / poema de pé no chão / de gente normal, gente simples / gente do Espírito Santo”. Santo é a possibilidade aberta por um poeta: um ser humano, mortal e capaz de ressuscitar, em vida, quando cria. A canção de Ana Vitória e Rita Lee, posta lá no início, assim termina com o  refrão: “Não sei, não sei / Diferenciar você de mim”. Este “você” é,  a partir de agora,  todo o livro a seguir. E káàbó.

*

Santo é um espírito capaz de operar milagres

                                                      sobre si mesmo

                                            Viviane Mosé

 *

O projeto de normatização da vida pressupõe estratégias de desencantamento do mundo e aprofundamento da colonização dos corpos. A colonização (pensada como fenômeno que está até hoje operando suas artimanhas) gera sobras viventes, gentes descartáveis que não se enquadram na lógica normativa do sistema.

Algumas sobras viventes conseguem virar sobreviventes.  Os sobreviventes podem se tornar supraviventes – aqueles que foram capazes de diblar a própria condição de exclusão (as sobras viventes), deixaram de ser apenas reativos ao outros (como sobreviventes) e foram além, inventando a vida como potência (supraviventes).

É na supravivência que o malandro divino e a dona das tabernas e encruzilhadas atuam. Eles trazem em seus corpos a capacidade de se adaptar aos espaços do precário e acabam subvertendo esses próprios espaços ao praticá-los como terreiros de saberes encantados, sacralizando o mundano e profanando o sagrado (...) em interação fantástica com seus cavalos de santo, que operam na mais radical oposição ao projeto colonial. São, por isso mesmo, talhados para o exercício sublime da liberdade. Como tais, incomodam, desafiam, e amedrontam os normatizados na lógica da contenção dos corpos ao insistir, gargalhando, na vida.

                                   Luiz Antonio Simas

 

Igor Fagundes – é carioca de dezembro de 1981, filho de Oxum e crescido no subúrbio de Todos os Santos. Poeta, ator, ensaísta, macumbante. Doutor em Poéticas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professor de seus cursos de graduação e pós-graduação em Dança. Autor de mais de quinze livros, entre poesia, crítica, ensaio e filosofia: Transversais (2000); Sete mil tijolos e uma parede inacabada (2004); por uma gênese do horizonte (2006); Os poetas estão vivos – Pensamento poético e poesia brasileira no século XXI (2008); zero ponto zero (2010); 33 motivos para um  crítico amar a poesia hoje (2011); permanecer silêncio (2011); Convite ao pensar (2014); Poética na incorporação (2016); pensamento dança (2018); Entre pares – Partilhas em Dança e Outros Movimentos (2019); Macumbança (2020); Viral – Dança e Outras Disseminações (2024); tubos de ensaio (2024).


      DE FUMAÇA, A PALAVRA

 

Toda palavra é noite.

Perpetua a angústia do não encontro.

Há sempre perda no contato,

Mesmo que se some à pele o espanto.

 

Toda palavra é prisão e liberdade.

Intervalo entre som e silêncio.

Toda palavra é falta.

Suspiro entre sopro e chama.

 

Toda palavra é não.

Dentes demasiados de dor.

Ainda que belamente perfeita.

Ainda que de adjetivos – cilada, aparência.

 

Toda palavra é falácia.

Nada e maravilha.

Toda palavra é nunca.

O amor por exemplo. Ou como o Deus se pronuncia.

 

(Eis que nenhuma palavra é dia.

A não ser alguma que à esperança mentia.)

 

Toda palavra ornamenta uma lápide

De mistérios e magias.

Daí, a incompletude – sua infinita largueza.

Daí, a poesia implícita em cada uma:

Barro e cimento. Pedra-viva.

 

Toda Palavra diz-se cedo.

O adeus por exemplo. Ou como o morto se anuncia.


                                   Tanussi Cardoso


José Salgado Maranhão sobre  "EU e outras consequências, Ed. Penalux, de Tanussi Cardoso:

 "Um livro irretocável, maduro, diverso em seus matizes, embora uno em sua sintaxe reconhecível. O poeta Tanussi Cardoso, cuja obra, desde o início, já procura depurar o estilo, agregando ao coloquial a palavra aberta ao significante, neste seu "EU e Outras Consequências", firma o traço e toma posse do caminho escolhido, com total domínio da carruagem da poesia." José Salgado Maranhão, poeta.

       POÉTICA

 

De onde veio isto, eu vou lá buscar.

Se tiver o mapa, fica mais fácil.

Zona intermediária entre a razão

E o desconhecido, nono sentido.

 

Irmão da bruma, da noite cerrada,

poucas estrelas no céu como guias.

Vou!

Com um voo às cegas, fraco radar,

Um pouco forçado é o que me espera.

Embarquei em terra, saltei pelo espaço.

Se fosse um sonho, quem interpretava?

 

Eu já não sei mais sobre ida nem volta.

De repente, eu chego. Olha eu de novo

No mesmo lugar.

 

Ricardo Silvestrin

Do livro Casa de Origami

Editora BESTIÁRIO

2025

Os filósofos são seres doídos. Dói demais pensar na doideira do mundo e na própria. Todo munda nasce com pelo menos uma doidice. Em maio ou menor grau somos todos doidos. Trazemos nossas doideiras vestidas no corpo. Ou na mala dessa viagem. E o que fica... e os que ficam... pelo caminho, varremos doídos. Depois seguimos. Doidos varridos

 *

Sei que está difícil, mas pense num dia possível. Um dia próximo do doméstico. Com bicho perto e desejo de ser planta. Memória recolhendo recortes descartados. Livro aberto no poema de Gullar e cheiro de tangerina entrando pela janela. Um dia em que não se precise esperar pelo melhor porque ele já chegou. 

Armando Liguori Junior

Do livro Ser Leve Leva Tempo

Desconcertos Editora - 2022

 TROPEÇOS

 

Quase nunca é sol

quando amanheço

 

Para expiar virtudes

desfio o meu terço.

 

A solidão

sem começo.

 

Pra que cantar na chuva

se entristeço?

 

Educação do estranhamento

vem do berço?

 

Isso de forjar a própria vida

tem seu preço.

 

Antônio Mariano

do livro havia pássaros em mim

SELINHO EDITORIAL - 2024

espiã confessa

pedra que voa

 

depois que choveu pedra em São Francisco do Itabapoana no final de 2024, por ficarem sem saber se gelo ou granizo, alguns moradores da localidade do Macuco, resolveram instalar uma comissão popular de inquérito para apurar as causas do acidente.

Sabedores de que o significado da palavra Ita/bapoana é pedra que rola sobre o leito do rio, é bem possível que as “pedras” revoltadas com suas condições de viverem submersas podem ter sofrido gigantes mutações e serem transformadas em pedras que voam, incentivadas pelas bruxarias e alquimias desenvolvidas por alguns personagens do livro “Itabapoana Pedra Pássaro Poema”.

 

diante de tudo

que tenho falado

despido lido escrito

ser porta bandeira

não é uma missão

apenas por ter incorporado

a Mocidade Independente

de Padre Olivácio

     em Ouro Preto

tem mais angu nesse caroço

cabeça nesse prego

não nego

estou metida nessa trama

dos pés aos fios de cabelo

em cada uma das nervuras desse osso

debaixo dos lençóis de cada cama

tem segredos e mistérios

que sendo revelados

deixariam qualquer país em alvoroço

                                                    

em vampiro goytacá

canibal tupiniquim

somos serAfim

todas nós somos

vampiras

numa página a gente transa

noutra página a     gente pira 

 

Gigi Mocidade

Ex-Rainha da Bateria da Mocidade Independente de Padre Olivácio - a Escola de Samba Oculta no Inconsciente Coletivo


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