GÊNESE
Venho de um país
sem origem
e após o furo do fuzil
na parede da sala
após a bala perdida
por sorte no ralo da pia
e mais ainda: após
a porrada
após esse agora de morte matada
rezo que eu nasça
na próxima linha
Pertenço
nem a mim:
aceito a cegueira
de ver
com a mesma potência
de caos e clareza
o não e o sim
a feiura e a beleza
dos outros e a minha
o amor de cacto
e o oásis romântico
Alguém me diz curar-se
de tristezas cutâneas
da alergia à vida
no instante em que eu danço
Quem dança comigo
confidencia, publica
estar livre de um câncer
Livres
os corpos ao redor
daqui em diante
Entendo de ebó
padê, axoxô
amalá, aberém
nada, porém, de salvar
gentes contentas só
com minha presença
Logo eu: um criado
pela ausência
por bloqueios
de lágrimas na cara
bloqueios na conta bancária
e no diploma que fazem
a diferença
Um deportado crônico
do sonho
e da realidade
órfão quase
de paternidade
embora um sobrenome
Neto
me acorrente
ao patriarcado
Do lado de dentro mais tenso
alongo os músculos
do sentimento melhor
o mais forte e o mais frágil
que contraio
alargo o que julgo pequeno
entre os ligamentos
até me ligar a quem fora
me jura imensa alturas
que não tenho
Não ter
parece toda a trajetória
agradeço ao menos por ser
o que me tem
sagrado em carne e osso
enquanto incorporo
o sentido abstrato
da existência nos ritos
de nossa finitude
concreta e contraditória
Remédio veneno
um moço igual a todos:
divino diabólico
dadivoso duvidoso tema
de um livro de poemas
escrito pela voz
que me acalma
me atormenta
e me espraia o pensamento
no momento em que também
a desvendo
Vedado
a sentenças
me apresento: prazer
não passo de um vento
entre tantos
de pecados ou sem
e a mesma fenda e fome
de que você é refém
eu levo e sangro
sem saber por que me chama
por um nome Santo
Igor Fagundes
do livro SANTO
Ventura Editora - 2024
ÀWÚRÉ MI: BÊNÇÃO AO POETA
Will Santorinne
*
Deixa eu me apresentar
Eu
acabei de chegar
Depois que me escutar
Você vai lembrar meu nome.
Ana Vitória e Rita Lee
Escrevo enquanto preparo a próxima performance. Na fronteira
entre o Morro do Adeus, em Ramos e o Complexo do Alemão, em Bonsucesso, ambos
no Rio de Janeiro, contraio-me em quedas, tropeços, mortes contínuas. Percorro
o chão e desço abaixo do inferno: falo com os mortos. Um grego ainda vivo me
recorda uma palavra : catábase. Áfricas devem ter seu tempo próprio.
Desconheço-o. Áfricas vêm também de quedas, tropeços, mortes contínuas. Mas sei
em iorubá Ikú, a morte que leva o humano depois de arrogar sobrepor-se
os poderes dos deuses. Só Olorun sabe a hora de afundar-nos sem volta.
Ainda volto. O palco? Experimento-o estreito. No centro, uma cadeira amarrada a
tecidos feitos de cordas para escaladas. (Des)equilobro-me, caio, cambalhoto,
subo, fico de pé. Danço. Rasgo-me, piro, surto – herói de mim? Pesquiso uma
trilha sonora: Pushin`on. Com Marvin Brooks ou na versão mais épica, a
instrumental. Na favela, também há epopeias.
Igor Fagundes é testemunha-poeta. Presencia e presenteia amor.
Vejo dança em tudo o que ele escreve. Ritmo até quando digita no laptop a
escalada ao poema difícil. Viajo. Mas sem Adeus ao Morro. O Complexo do Alemão
se torna um alemão cabaré, onde europeus
se empolgam com meu show, sem ideia do espetáculo diário nada maravilhoso, do
Rio de Janeiro. Pelas ruas do Hemisfério
Norte, cruzam-me ciganos, muçulmanos, africanos, brancos. Por onde ando, todos
me cumprimentam sem sabe quem sou e o meu nome: “Hi, Master”. De quê? De
quem? A saudação inquieta “You`are a Wizard”, completam nas esquinas,
pedindo que os acorde da hipnose a que, sem intenção nem consciência, lhes
incito. Nada sei disso. O que sei: da fé em Estamira, a catadora de lixo louca
lúcida. Fé nas capicuas que abundam no relógio, a cada vez que miro a hora. Fé
em Diadorim, tatuagem em minha sombra. Fé em minha gata Szklank. Fé nos outros
versos do poema colhido como epígrafe do livro: “em caso de poemas difíceis use
a dança /(...)/ poema que nasce do pé / poema de pé no chão / de gente normal,
gente simples / gente do Espírito Santo”. Santo é a possibilidade aberta por um
poeta: um ser humano, mortal e capaz de ressuscitar, em vida, quando cria. A canção
de Ana Vitória e Rita Lee, posta lá no início, assim termina com o refrão: “Não sei, não sei / Diferenciar você
de mim”. Este “você” é, a partir de
agora, todo o livro a seguir. E káàbó.
*
Santo é um espírito capaz de operar milagres
sobre si
mesmo
Viviane Mosé
*
O projeto de normatização da vida pressupõe estratégias de
desencantamento do mundo e aprofundamento da colonização dos corpos. A colonização
(pensada como fenômeno que está até hoje operando suas artimanhas) gera sobras
viventes, gentes descartáveis que não se enquadram na lógica normativa do
sistema.
Algumas sobras viventes conseguem virar sobreviventes. Os sobreviventes podem se tornar supraviventes
– aqueles que foram capazes de diblar a própria condição de exclusão (as sobras
viventes), deixaram de ser apenas reativos ao outros (como sobreviventes) e
foram além, inventando a vida como potência (supraviventes).
É na supravivência que o malandro divino e a dona das tabernas e encruzilhadas atuam. Eles trazem em seus corpos a capacidade de se adaptar aos espaços do precário e acabam subvertendo esses próprios espaços ao praticá-los como terreiros de saberes encantados, sacralizando o mundano e profanando o sagrado (...) em interação fantástica com seus cavalos de santo, que operam na mais radical oposição ao projeto colonial. São, por isso mesmo, talhados para o exercício sublime da liberdade. Como tais, incomodam, desafiam, e amedrontam os normatizados na lógica da contenção dos corpos ao insistir, gargalhando, na vida.
Luiz
Antonio Simas
Igor Fagundes – é carioca de dezembro de
1981, filho de Oxum e crescido no subúrbio de Todos os Santos. Poeta, ator,
ensaísta, macumbante. Doutor em Poéticas pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ) e professor de seus cursos de graduação e pós-graduação em
Dança. Autor de mais de quinze livros, entre poesia, crítica, ensaio e
filosofia: Transversais (2000); Sete mil tijolos e uma parede
inacabada (2004); por uma gênese do horizonte (2006); Os poetas
estão vivos – Pensamento poético e poesia brasileira no século XXI (2008);
zero ponto zero (2010); 33 motivos para um crítico amar a poesia hoje (2011); permanecer
silêncio (2011); Convite ao pensar (2014); Poética na
incorporação (2016); pensamento dança (2018); Entre pares –
Partilhas em Dança e Outros Movimentos (2019); Macumbança (2020);
Viral – Dança e Outras Disseminações (2024); tubos de ensaio
(2024).
DE
FUMAÇA, A PALAVRA
Toda
palavra é noite.
Perpetua
a angústia do não encontro.
Há sempre
perda no contato,
Mesmo que
se some à pele o espanto.
Toda palavra
é prisão e liberdade.
Intervalo
entre som e silêncio.
Toda palavra
é falta.
Suspiro entre
sopro e chama.
Toda palavra
é não.
Dentes demasiados
de dor.
Ainda que
belamente perfeita.
Ainda que de adjetivos – cilada, aparência.
Toda palavra é falácia.
Nada e maravilha.
Toda palavra é nunca.
O amor por exemplo. Ou como o Deus se pronuncia.
(Eis que nenhuma palavra é dia.
A não ser alguma que à esperança mentia.)
Toda palavra ornamenta uma lápide
De mistérios e magias.
Daí, a incompletude – sua infinita largueza.
Daí, a poesia implícita em cada uma:
Barro e cimento. Pedra-viva.
Toda Palavra diz-se cedo.
O adeus por exemplo. Ou como o morto se anuncia.
Tanussi Cardoso
José Salgado Maranhão sobre "EU e outras consequências, Ed. Penalux,
de Tanussi Cardoso:
"Um livro
irretocável, maduro, diverso em seus matizes, embora uno em sua sintaxe
reconhecível. O poeta Tanussi Cardoso, cuja obra, desde o início, já
procura depurar o estilo, agregando ao coloquial a palavra aberta ao
significante, neste seu "EU e Outras Consequências",
firma o traço e toma posse do caminho escolhido, com total domínio da carruagem
da poesia." José Salgado Maranhão, poeta.
POÉTICA
De onde veio isto, eu vou lá buscar.
Se tiver o mapa, fica mais fácil.
Zona intermediária entre a razão
E o desconhecido, nono sentido.
Irmão da bruma, da noite cerrada,
poucas estrelas no céu como guias.
Vou!
Com um voo às cegas, fraco radar,
Um pouco forçado é o que me espera.
Embarquei em terra, saltei pelo espaço.
Se fosse um sonho, quem interpretava?
Eu já não sei mais sobre ida nem volta.
De repente, eu chego. Olha eu de novo
No mesmo lugar.
Ricardo Silvestrin
Do livro Casa de Origami
Editora BESTIÁRIO
2025
Os filósofos são seres doídos. Dói demais pensar na doideira
do mundo e na própria. Todo munda nasce com pelo menos uma doidice. Em maio ou
menor grau somos todos doidos. Trazemos nossas doideiras vestidas no corpo. Ou na
mala dessa viagem. E o que fica... e os que ficam... pelo caminho, varremos
doídos. Depois seguimos. Doidos varridos
*
Sei que está difícil, mas pense num dia possível. Um dia próximo do doméstico. Com bicho perto e desejo de ser planta. Memória recolhendo recortes descartados. Livro aberto no poema de Gullar e cheiro de tangerina entrando pela janela. Um dia em que não se precise esperar pelo melhor porque ele já chegou.
Armando Liguori Junior
Do livro Ser Leve Leva Tempo
Desconcertos Editora - 2022
TROPEÇOS
Quase nunca é sol
quando amanheço
Para expiar virtudes
desfio o meu terço.
A solidão
sem começo.
Pra que cantar na chuva
se entristeço?
Educação do estranhamento
vem do berço?
Isso de forjar a própria vida
tem seu preço.
Antônio Mariano
do livro havia pássaros em mim
SELINHO EDITORIAL - 2024
espiã confessa
pedra que voa
depois que choveu pedra em São Francisco do Itabapoana no
final de 2024, por ficarem sem saber se gelo ou granizo, alguns moradores da
localidade do Macuco, resolveram instalar uma comissão popular de inquérito
para apurar as causas do acidente.
Sabedores de que o significado da palavra Ita/bapoana é pedra
que rola sobre o leito do rio, é bem possível que as “pedras” revoltadas
com suas condições de viverem submersas podem ter sofrido gigantes mutações e
serem transformadas em pedras que voam, incentivadas pelas bruxarias e
alquimias desenvolvidas por alguns personagens do livro “Itabapoana Pedra
Pássaro Poema”.
diante de tudo
que tenho falado
despido lido escrito
ser porta bandeira
não é uma missão
apenas por ter incorporado
a Mocidade Independente
de Padre Olivácio
em Ouro Preto
tem mais angu nesse caroço
cabeça nesse prego
não nego
estou metida nessa trama
dos pés aos fios de cabelo
em cada uma das nervuras desse osso
debaixo dos lençóis de cada cama
tem segredos e mistérios
que sendo revelados
deixariam qualquer país em alvoroço
em vampiro goytacá
canibal tupiniquim
somos serAfim
todas nós somos
vampiras
numa página a gente transa
noutra página a
gente pira
Gigi Mocidade
Ex-Rainha da Bateria da Mocidade Independente de Padre Olivácio - a Escola de Samba Oculta no Inconsciente Coletivo
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