quarta-feira, 3 de setembro de 2025

TransPoÉticas - Coletânea de Poetas Vivos




              Bala Na Testa Do Amazonas

- a Cirleudo Cabral Monteza         

Manchineri -

  

As cunhãs dos meus olhos

amavam ver meu curumim

no colo da floresta, o rei

de um ano, bem quininim

 

Sorriso ia luzente de margem

a margem do Rio Purus

guiando da tribo a viagem

nas noites, noite sua luz

 

E bem na calada da sombra

raio-relâmpio de pólvora riscô

a testa do meu bacuri rei:

a bala da fúria furô

 

Foi mboi tu’i, serpente do mal

quem mandô abraçá seu fim.

 

Do Sena Madureira ao Iaco

águas de sangue vestidas

mais um brasileirim vira opaco

pindorama de vida sem vida. 

 

Tessitura de Carapuças

           

Sobre genuína bondade?!…

Sei algumas generosices de fachada

e compaixão tartufa.

Já iniquidade, domino:

cá dentro, no invisível, intolero,

não vou com as caras

(somente  a coroa  venero:

a majestade ignara!...).

 

Possuo a indispensável petulância dos que mostram saber,

e a mais escorregadia artimanha de escamoteamento

- antiquíssimo artifício a me garantir privilégios é a soma

do puxa-saquismo de alto nível com o indiscriminado bombardeamento.

 

Sou o que busca – e encontra sempre! – o pelo do ovo, o chifre do cavalo,

o teu pior defeito (que jamais te será dito na lata): 

Invariavelmente por trás (sine qua non da covardia) minha língua exata

se afia, dá nos dentes à mesa dos poderosos, com justo regalo...

Calunio, juro, perjuro e denuncio, depois esqueço tudo...

Não me contenta denegrir a imagem: apodreço o conteúdo!

 

Trago o cão raivoso no sorriso:

- sou o III Ricardo, Macbeth e Iago,

com todos os ingredientes e adaptadas brasileirices de praxe.

 

Sou o embuste, a farsa, o engano,

o insano, o dano da danação;

o engodo, o lodo, e o lado afiado

do cutelo em tua carne e ossos!

Eu me aposso e bato o martelo!

Eu sou o impune, o que desune,

o desnaturado  pomo e flor da discórdia!

A mixórdia, o frege, o santo herege

que nada protege ou afaga sem a adaga;

sou a cruz e a espada, o impasse,

a bifurcação multiplicada.


Acho imprópria a pena de morte,

parodio João Cabral e decreto

a pena de vida:  “sorte e sina palestina”


Pior que eu, sou quando me enfrento: não me deixo saída!

Sempre me venço – fomento o vulcão – antes que outro bombardeiro lance mão!

(uma vida, quase inteira, na soleira do diário day after)

- o inferno de Dante, Graciliano e Sartre!


A raça pura, a brancura veneradora da escravatura – IV Reich e Ku-Klux-Klan –

eu, o macho, acho, esculacho, rebaixo

e despacho pro além: não deixo para amanhã.

Escalpelo xamãs e tupis. Torturo, esquartejo, taco fogo

e espalho no brejo.

Eu sou a homofobia de palavra e paradigma com requinte rosicler:

Armo tua cama, te puxo o tapete (vermelho);

faço festa, meto o bedelho, espio pela fresta,

mordo o teu fígado e o juízo,

e a primeira pedra atiro sem aviso;

Eu sou o não, meu irmão – o NÃO!;

a inveja, o ciúme, o que aleija o caráter

até que se esfume.

Eu, o Joaquim Silvério das confidências,

proclamo a dependência.

Eu crio a mentira – (inumeráveis fakes) e tu votas em todas

com boa dose de libido reprimida

e ira.

Bula? Vide a mídia.


Aparentemente nada especial, (estou aí... pelas ruas... comum feito milhões...)

amado, odiado, bem e mal visto no mundo,

por espelho e reverso.

Não me confundam comigo: tenho duas caras concomitantes (por segundo).


No final, na penúltima mandriona estrofe,

recoloco o fingimento em dia

subterfúgio de vacina vencida... (e, em off)

outra deslavada demagogia!

Muito íntimo de Kubrick, retorno em concreta magia:

faço contemporânea a velha

odisseia do tempo a 2001sss...

com alaranjada mecânica

atualizada


Já sentiste angústia, tu que ora me lês?

(gargalhada teatral, em si

bemol.)

A gente se vê...

a gente se vê por aí!...


COISA MANDADA

 

A bala perdida na porta

da casa da véia, pro menino achá!

A chama da vida, a menina

dos óio da véia, pro vento apagá!...

 

Quem foi que puxô esse assunto

na frente da véia? Num ouse puxá!

O menino era tudo, era o anjo

da guarda da véia – mió respeitá!

 

Um pente, uma bala na agulha,

é coisa mandada da banda do mal!

Num dente-de-alho, atravesse u’a agulha

escondida pra quebrá o mal

 

O menino era o mimo, o arrimo

da véia, o reizinho do lar!

Quem foi que falô do presunto

lá junto da véia? Num ouse falá!

 

A bola, pelada no meio da rua,

menino preto, menino, olha o risco de gol!

Aponta – olha o ponta caindo na sua,

menino, olha o tiro, meu fio, olha o gol!

A bala, a bola, a pelada abala

o menino, a poça na frente do gol

é rubra, é negra, é a bola, a bala, o gol...

a poça... acabou!

 

A vó tem sete saias e vem de otras baías, otras freguesia

dessas e de otras bandas do coração de aruanda pra quebrá as ingrisia.
Na escravatura, nóis era os ventre,

berço primero e  destino a procriá e desmamá antes da hora;

nóis era as teta, as ama de leite dos rebento tudo que dava na fazenda:

branco, preto ou índio... fosse o que fosse, tanto faz... da casa grande ou da senzala,

nóis era mãe e sempre vai sê... das criançada rancada de nóis;

nóis, do destino dos próprio rebento, ficava sabeno pelos orixás! Saravá!...     

Na última saia tem mironga, que a viage é dura e longa,
e a vó trouxe arruda, água benta e a energia das baforada

pra que os santos nos acuda a fugentá as alma penada.

Nóis gosta de doce, sinhá e sinhô... nóis gosta de doce... cocada branca...

e queria fazê pra nossos fio...

mais num podia; nóis nem sabia o paradeiro das criançada.

Com seu patuá, benjoim e a figa de guiné,
vovó veio de angola presa nos ferro das argola

e se solta pra salvar seus filhos de fé!

Saravá, meu Pai Oxalá... que nóis é de paz, que nóis é de paz!...

E o que é que tem, o que importa

o neto da véia na conta geral?...

Mais um, menos um... bola sete

noves fora...

qualquer de menoridade penal...

 

Eu sô u’a vó e sô muitas vós...

E nenhuma de nós inventô nem bala, nem bomba.

Vida, foi só o que nóis inventô!

Vó Arruda, Benedita e Cachimba

Cambina do Congo e Catarina

- me dá tua sina, menina!

Catarina D’Angola e d’Aruanda;

Cigana e Emília,

- eu já fui tua filha, minha filha!

Vó Gracinda Africana, Jacira, Josefa, Joana...

Logo avisa a Vó Luiza:

- já foste meu filho e já foste minha bisa!

Nos mundo onde tudo gira,

gente já foi, é e será tudo nos reinado de tudo!

Vó Maria Antônia, Maria Conga, Maria Preta da Bahia...

- ô, meu fio do Santo Pai, eu já fui tua fia

na terra das Marias e dos ais!...

Maria Quitéria, Maria Rita, Rosa, Redonda,

Maria Chica, Cândida e do Rosário...

- Vô tá sempre te amaparano nas trilha dos calvário!

Raimunda, Rita e Severina, Teresa do Congo e Zeferina,

- me dê um doce bem doce, sá menina, te espero lá na esquina.

Anastácia, Benta e Benedita,

Isaura, Juliana e Zefina,

Vó Nana, Vó Rita e Rosa de Angola,

Sabina e Severina,

Nóis é tudo uma e um,

Tudo a mesma sina

no reino de Olorum!

Saravá!

 

Nas terras dos barros, lamas e lodos,

chibata que chibata um, chibata todos,

Bala que mata um menino

escreve o próprio destino!

E quem vê aquele fio do Pai, morto na vala,

sabe se é da casa grande ou da senzala.

Saravá, que o infinito nunca se finda, kaô Xangô,

e o eterno nunca se acaba, dizem os babalaôs.

Na terra dos teus e dos meus,

quem acarinha u’a criança,

acarinha a face de Deus!

Saravá, meu Pai, saravá!


VASSOURA DE OUTONO

 

Pende frontalmente esse tronco

                             de mulher a varrer o outono

                                                       da calçada.

-       Uma cerimônia de décadas...


Sabe-se lá quantas nervuras, outrora verdes,

já flutuaram seus corpos em coreografias,

dos ramos às fibras de seu fiel instrumento...

(diário, permanente, sacro rito doméstico.)


Duas tetas, estreladas,

                        choram no côncavo peito,

                                                       murchas de idos filhos

-       longes filhos...  -  

desmamados... para onde?...


(Felizes os rebentos... seriam?

Teriam completado os estudos?... Formaram-se doutores?...

Casaram-se?...

E os netinhos... tão lindos... tão sonhados?!...)


O que poderia saber sobre ela,

eu, que somente passei  meu caminho

diante da firme carícia da piaçava no cimento?

Mais adiante, a boca-de-lobo, em silêncio, agradece:

-       “Água há de passar sem que eu engasgue.”

(sem que o quarteirão se entupa, se desespere de enchentes,

se afogue...)


Uma sensação (minha ou dela?)

de que, se larga a ferramenta,

espatifa-se a face ao chão.

Mas ela não larga: prossegue, sustenta,

determinada, a higiene da fachada.

                                                        (Tudo precisa ser limpo – tudo na vida!...)


Quem estaria à sua mesa no próximo domingo?

Frango, maionese, macarronada,

serena mousse de maracujá, as peras merengadas, aprendidas na TV...

-       ... tantos sabores!... –

                      para que bocas?...

E tem mais:

haveria o próximo domingo?...

 

Sua mão esquerda é mais triste:

duas alianças.

-       ouro funde-se em ouro

                  de eternas bodas de mel,

                  na mística, alquímica joalheria,

de aqui e do além: um só largo anel!

-       um homem é ressuscitado

                  diuturnamente em seu apenas dedo

anular esquerdo!

            

Ah, como passam as estações

sem dar conta alguma de sua irredutível vassoura!

E como – com que dor!... –

seus olhos acusam o vento e a beleza das árvores

diante da casa!...


FUTURO DO PRETÉRITO

 

      Poderia ter  feito isto ou aquilo -  não fiz;

      ter ido para ali ou alhures – não fui;

      amado esta ou aquela – não amei.

      Agora, diante do poema, o próximo verso

      é outro impasse.

 

      (Dia difícil este: vinte e cinco horas

      houvesse, não bastariam para dar conta

      do que não dei.)

 

      Hoje, encontro-me em saudades de um tempo de qualquer coisa

      ter sido, menos isto: o acúmulo de não ser.

      Abandonei-me em alheios

      colos, lares, caminhos... na compulsão pelo agradamento.

      As opiniões penetraram-me como bisturis

- instrumentos de lobotomia -

      e o meu pensar e sentir são confusos a ponto de não perceber

      o que é um e o que é outro.

 

      Eu, o desconexo, sou minha cruz e espada.

 

      Há mesmo, de fato, o sim no lugar do não

      e seu vice-versa.

      (Ambidestro mutilado e invertido – o dos pés pelas

mãos a plantar bananeiras

      - deparo-me constante com bifurcações multiplicadas.)

      Estrábico mental, escolho a escolha d’outrem:

      o que me escolherem.

 

      Não é raro pôr-me a rir de mim, à farta,

      distanciado, como se eu não fora.

 

 

Um clown – trágico, diria – mas um clown.

(Um Carlito – sem a devida genialidade criadora

de Sir. Charles Chaplin, é claro.)

 

Este meu jeito (patético) e sotaque servem-me

de somente disfarce

         para que não percebam quem não sou.

 

      Ontem sonhei-me hoje,

      e amanhã sonhar-me-ei com anteontem,

      antes de meu desaparecimento,

      assim, quase inexplicável.   


Ademir Martins - Nos palcos e salas de aula ministrando cursos há 50 anos, como dramaturgo, ator, diretor, poeta, compositor e em seus trabalhos como ator,  "Óxenti... Romi Xinaidi?!" (de Fernando Limoeiro); "Nossa Vida em Família" (de Oduvaldo Vianna Filho); "Forrobodó" (de Vladimir Capella e José Geraldo Rocha); "Calabar - O Elogio da Traição" (de Chico Buarque e Rui Guerra);  "O Menino Marrom" (Adaptação e Direção do conto homônimo de Ziraldo); "Arlequim, Servidor de Dois Amos" (de Carlo Goldoni); "A Encomenda" (de Fernando Limoeiro); "A Cantora Careca" (de Eugène Ionesco);  "A Morte do Imortal" (de Lauro Cesar Muniz);  "O Despertar da Primavera", (de Frank Wedekind); “Álibi – enfim Sós” (dramaturgo);  "Woyzeck" (de Georg Büchner);  "A Grande Imprecação Diante dos Muros da Cidade" (de Tankred Dorst); "O Seu Dom" (show musical de lançamento do CD homônimo da cantora Fernanda Fróes no Tom Brasil); "Possibilidades" (show com a cantora Milena Lizzi,),  “Macaé Conta Carukango)” (dramaturgia e direção)...

Participou de vários workshops ministrados por mestres contemporâneos, tais como José Ângelo Gaiarsa, Augusto Boal e Yves Lebreton. Em seus trabalhos, ministrou aulas de "Interpretação" e "Prática de Montagem"; foi Coordenador do Instituto de Artes e Ciências de São Paulo (INDAC; atualmente leciona  no Curso Técnico em Artes Cênicas da Escola Municipal de Artes Maria José Guedes (EMART) junto à Secretaria Municipal de Cultura de Macaé/RJ, foi professor e co-fundador e  diretor artístico do Núcleo de Dança Portadores de Alegria.

 

·      Possui diversos prêmios como dramaturgo, poeta, ator, e diretor e coreógrafo.

 

 

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