segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

Artur Gomes entrevista Cleber Pacheco


Vampiro Goytacá Canibal Tupiniquim

Retomando o projeto Entre/Vistas que produzi durante o período pandêmico de 2019 a 2022 entrevisto hoje o poeta/escritor Cleber Pacheco


                 OBLIVION

Esqueci os sons das palavras,
como consultar dicionários,
os nomes das borboletas.

Hoje vigoram ruídos,
os mergulhos dos afogados,
a estridência dos espectros.

Será preciso reconstituir
a ingenuidade da ortografia,
os resquícios dos pergaminhos,
a criação do alfabeto.

Só então poderei nomear
as flores fecundadas no silêncio. 

 

Cleber Pacheco - 



Artur Gomes  – como se processa o seu “estado de poesia”?

Cleber Pacheco - É sempre difícil explicar qualquer coisa quando se fala em poesia uma vez que ela possibilita um uso muito próprio da lingua-gem justo porque é algo que se situa além da linguagem. Ainda acredito em inspira-ção. Assim sendo, ela pode brotar de um instante qualquer, do inesperado, de uma imagem, de uma palavra ouvida ao acaso ou até mesmo de acordar à noite para anotar versos que afloram praticamente por si mesmos. Para mim é um estado de atenção, de percepção que encontra, revela ou cria um modo outro de conhecer ou explorar tudo o que existe.  

Artur Gomes  - Seu poema preferido? Próprio. Ou de outro poeta de sua admiração.

Cleber Pacheco - Gosto muito dos clássicos e meu poema preferido é, penso eu, um dos mais impressionantes de todos os tempos: o Inferno de Dante Alighieri. Intensidade, expressividade, densidade, tudo o que diz respeito ao sofrimento humano está ali, além de mitologia, história, política, filoso-fia, religião, etc. Trata-se de um feito im-pressionante.

Artur Gomes  - Qual o seu poeta de cabeceira? 

   Cleber Pacheco -Na verdade não tenho um só. Um deles é Dante, evidentemente, mas gosto muito de Baudelaire, Fernando Pessoa,  Emily Dickinson, Augusto dos Anjos. Varia conforme o momento que estou vivendo.

Artur Gomes - Em seu instante de criação existe alguma pedra de toque, algo que o impulsione para escrever?

   Cleber Pacheco - Tenho muita facilidade para criar projetos de livros. Muitas vezes a partir de um poema percebo que ele pode ser o “mote” para um livro inteiro. Os temas dos livros vêm de um momento de epifania, como se eles tivessem vida própria ou ficassem incubados durantes anos para, subitamente, aflorarem por si mesmos. Não raro acontece de virem ideias para vários livros ao mesmo tempo e uma ideia geral para os poemas vai surgindo. Escrever, para mim, não é algo angustiante. Pelo contrário, é um instante de descobertas e de alegria.

Artur Gomes  -  Livro que considera definitivo em sua obra?

Em poesia posso afirmar que é A Rosa Mística, onde alcancei o equilíbrio entre objetividade e subjetividade.

Cleber Pacheco -Em prosa considero O Terceiro Dia uma das melhores coisas que já fiz, tanto pela densidade quanto pela síntese e expressividade do texto.

Artur Gomes  - Além da poesia em verso  já exercitou ou exercita outra forma de linguagem com poesia?

 Cleber Pacheco - Posso dizer que minha prosa é bastante poética, então já escrevi romances muito ligados a esse tipo de linguagem. A poesia me ensinou a dizer apenas o essencial. Fora isso, nunca tentei utilizar outros meios para expressá-la.

Artur Gomes  - Qual poema escreveu quando teve uma pedra no meio do caminho?

Cleber Pacheco - Creio que o mais contundente deles é um poema que escrevi em inglês intitulado You’re bleeding?  Às vezes escrevo alguns poemas em outros idiomas porque gosto de explorar as possibilidades expressivas de uma outra língua. Este poema específico foi escrito pensando na doença e perda da minha mãe, uma experiência muito difícil para mim. 

Artur Gomes  - Revisitando Quintana: você acha que depois dessa crise virótica pandêmica, quem passará e quem passarinho?

Cleber Pacheco - Penso que ainda é cedo para dizer. Só o tempo fará a triagem, determinando quem realmente fica e passa a fazer parte do cânone e quem será esquecido.

Artur Gomes  - Escrevendo sobre o livro Pátria A(r)mada, o poeta e jornalista Ademir Assunção afirma que cada poeta tem a sua tribo, de onde ele traz as suas referências. Você de onde vem, qual é a sua tribo?

Cleber Pacheco - Em termos de literatura brasileira creio que fazem parte da minha tribo os poetas  João Cabral de Melo Neto, Cecília Meireles, Augusto dos Anjos. Aprendi muito com eles, cada um com seu estilo próprio: capacidade de dizer muito com pouco, musicalidade, ritmo, abordagem de questões existenciais. Poetas estrangeiros já citei alguns anteriormente e poderia acrescentar Camões, referência obrigatória para quem escreve poesia em língua portuguesa.

Artur Gomes  - Nos dias atuais o que é ser um poeta, militante de poesia?

Cleber Pacheco - Ser poeta é ser resistência, é uma recusa a entregar-se ao mundo alienado, dormente, “prático”, preocupado apenas com questões imediatas. Ser poeta é sempre ir além do que foi pré-determinado e aceito pela maioria, é um modo único de compreender a existência e de se abrir para possibilidades infinitas.


                 Jean-Michel Basquiat 

                                  *

         Múltiplas Poéticas


NASCIMENTO DA PALAVRA

Elas surgem do nada.
Da solidão, da sombra.
Ou do útero da linguagem?

 

Rubens Jardim
(escrito em fevereiro de 2012 


O Erotismo é uma das bases do conhecimento de nós mesmos, tão indispensável quanto a poesia.

 Anaïs Nin


 Max Ernst (Brühl, Alemanha, 2 de abril de 1891 - Paris, França, 1 de abril de 1976) foi um artista alemão nacionalizado pela França, considerado uma figura fundamental tanto no movimento dadaísta quanto no surrealismo.


 Uma pessoa não é iluminada por imaginar figuras de luz, mas por estar ciente da própria escuridão.


Carl Jung


Estou fazendo este post pra esclarecer dúvidas que ficaram sobre o post anterior. Embora eu falasse nele sobre a morte, alguns amigos queridos acharam que eu falava de amor.
O post anterior foi inspirado no seguinte poema que fala de amor e morte de Federico Baudelaire - eterônimo (penso eu) do Poeta Artur Gomes:

ainda penso nela
quase piro
quase morro
sem ninguém
pra pedir socorro
nem um freudiano por aqui
pra me socorrer
vão me deixar morrer
nem marisa vieira
mayara ou bruna
muito menos jurema
cabloca de iracema
que amparou o dinamite
tanto faz que eu chore
tanto faz que eu pire
tanto faz que eu grite
posso morrer de ócio
posso morrer de cio
posso morrer de gripe
elas não estão nem aí
pro meu palpite
posso cheirar o bem-me-quer
ou mesmo as flores do mal
posso até dançar de buda
nesse próximo carnaval

Federico Baudelaire

leia mais aqui
https://fulinaimagemfreudelerico.blogspot.com/


Estou fazendo este post pra esclarecer dúvidas que ficaram sobre o post anterior. Embora eu falasse nele sobre a morte, alguns amigos queridos acharam que eu falava de amor.
O post anterior foi inspirado no seguinte poema que fala de amor e morte de Federico Baudelaire - eterônimo (penso eu) do Poeta Artur Gomes:

ainda penso nela
quase piro
quase morro
sem ninguém
pra pedir socorro
nem um freudiano por aqui
pra me socorrer
vão me deixar morrer
nem marisa vieira
mayara ou bruna
muito menos jurema
cabloca de iracema
que amparou o dinamite
tanto faz que eu chore
tanto faz que eu pire
tanto faz que eu grite
posso morrer de ócio
posso morrer de cio
posso morrer de gripe
elas não estão nem aí
pro meu palpite
posso cheirar o bem-me-quer
ou mesmo as flores do mal
posso até dançar de buda
nesse próximo carnaval

Federico Baudelaire

leia mais aqui
https://fulinaimagemfreudelerico.blogspot.com/


Este poema me lembrou um outro de Vinícius de Moraes que também fala de amores e morte. A música ideal pra acompanhá-lo seria "Refém da Solidão" de Baden Powel e Paulo César Pinheiro, porém eu preferi rimar Vinícius com ele mesmo e e optei por uma dele com Edu Lobo. O curioso é que ambos são parceiros de Baden e Paulo César Pinheiro.
Pra concluir, posto aqui a música "Refém da Solidão" como forma de fazer justiça e pra lembrar aos amigos que, segundo Fernando Pessoa (o rei dos eterônimos) "o poeta é um fingidor". Eu não consigo ser poeta, contudo fingidor é mais fácil.
Assim sendo, devo dizer que este espaço digital é de comunicação de dramas que me comovem. Ou seja, são meus e me emocionam quase sempre por empatia e não por ontologia.
Os amigos são tão companheiros que nos impelem filosofar.

 

Hélio Gomes 


Albert Holland


deu na telha vou te fazer

um van gog      na orelha

Artur Gomes

O Homem Com A Flor Na Boca

Um Canibal Tupiniquim

 por Fernando Andrade | escritor e jornalista

 Um homem cita um poema de nome. O músico já usou a cítara para musicar este poema pelo nome. Tudo já foi transformado, o poema para canção, a rima comeu a melodia e fez troça e troca de nome. Mas o poema do livro O homem com a flor da boca, da editora Penalux, nos devolve este país, do samba, do riso piada, Leminski, a força do ato canibalista de deglutir o que veio antes da poesia concreta, até a letra da canção de Luiz Tatit. Artur Gomes fez das suas, com tanta fome, comeu a maioria dos poemas que leu na vida e canibalizou e carnavaliza referências, citações, humor de longa estrada, ou beira de bar, trabalhando com gume de faca afiada e o lume de um pôr do sol em Ipanema, lembrando Vinícius.

São poemas bons para musicar tanto na solidão de um violão, quanto, atravessada por uma voz tenor, sax soprano. E não falta sexo, sacanagem, tesão, nas palavras das palavras num atravessamento em plena Quarta feira de cinzas, no resultado do carnaval. O desbunde da bunda, o levante dos órgãos, a gíria, e a menina com fio da linha escrita, carregando anedotas, fábulas e circos. O poeta não faz gênero, ele é macho, e fêmea, Simone, em segundo sexo. São poemas para emprestar ao amigo que está com fone de ouvido se atentar para a prosódia do verso, para quem sabe não copiar e transformar Amor em flor na boca.

 https://www.literaturaefechadura.com.br/2024/01/22/livro-de-poemas-o-homem-com-a-flor-na-boca-canibaliza-a-historia-brazuca-do-verso-em-poemas-tropicalistas/


                          poesia

 

I

chegas a mim

como uma égua assanhada

não quer saber do meu carinho

só quer saber de ser trepada

 

II

 

eu te penetro

em nome do pai

do filho

do espírito santo

amém

 

não te prometo

em nome de ninguém

 

terra

 

amada de muitos sonhos

e pouco sexo

deposito a minha boca

nu teu cio

e uma semente fértil

nos  teus seios como um rio

 

Artur Gomes

Suor & Cio – MVPB Edições - 1985

https://personasarturianas.blogspot.com/


O ator, produtor, videomaker e agitador cultural Artur Gomes acumula uma bagagem de 50 anos de carreira com prêmios nacionais e internacionais em teatro, música, literatura e artes gráficas. Gomes poderia se filiar na tradição literária dos chamados poetas malditos, como comumente e simplistamente nos referimos àqueles autores que constroem uma obra “rebelde” em face do que é aceito pela sociedade, vista como meio alienante que aprisiona os indivíduos em normas e regras. Tais autores rejeitam explicitamente regras e cânones. Rejeição que se manifesta-se também, com a recusa em pertencer a qualquer ideologia instituída. A desobediência, enquanto conceito moral exemplificado no mito de Antígona é uma das características de tais sensibilidades poéticas, que no Brasil já vem de longe com um Gregório de Mattos e ganhou impulso e seguidores com o famoso trio da “parafernália” rebelde: Verlaine, Baudelaire e Rimbaud.

      Já tivemos oportunidade de observar em outras obras do autor, que suas construções poéticas seguem sempre renovadas para cima em matéria de criatividade, elencando uma variada diversidade temática que aborda, sempre em perspectiva ousada e radical, desde o doce e suave sentido do amor, ao cruel da relação amorosa, flertando com o libidinoso, e questões existenciais que expressam indignação, desobediência e transgressão.

 É que, explica ele: “arde em mim / um rio / de palavras / corpo lavas erupção / mar de fogo / vulcão”.  Outra faceta do autor, digna de nota, é a criação de vários heterônimos como sejam Federico Baudelaire, EuGênio Mallarmè ou Gigi Mocidade, talvez a mais irreverente de todos, porque fala a bandeiras despregadas, sem papas na língua. “Muitas vezes a língua pulsa pula para o outro lado do muro outras vezes a língua pira punk nesses tempos obscuros às vezes a língua Dada vai rolando dados nesse jogo duro muitas vezes a língua dark jorra luz nas trevas desse templo escuro”. 

E aqui temos afinal, mais uma obra desse múltiplo e incansável poeta que caminha com uma flor na boca, símbolo universal de amor, de paz e beleza. A ele não importa verdadeiramente por quais meios: “se sou torto não importa / em cada porta risco um ponto / pra revelar os meus destroços / no alfabeto do desterro / a carnadura dos meus ossos”. 

É poética que, para além de perquirir as dores e delícias da condição humana em si, envereda pelo viés de nossa condição social sempre ultrajada. Encontramos um poema que nos pergunta: “quem se alimenta / dessa dor / desse horror / desse holocausto // desse país em ruínas / da exploração dessas minas / defloração desse cabaço // quem avaliza o des(governo / simboliza esse fracasso?” 

Artur Gomes segue sua árdua caminhada, agora com o poderoso concurso da maturidade que lhe chega. Segue emprestando sua voz aos deserdados, aos desnutridos, aos que têm sede, aos que têm fome, ou aos que morrem assassinados nos guetos, nos campos, nas cidades por balas de fuzil, desse país que tarda em referendar a cidadania.

Krishnamurti Góes dos Anjos - Escritor e crítico literário.

Leia mais no blog www.fulinaimagens.blogspot.com



O Homem Com A Flor Na Boca com o livro e a caneta nas mãos - Sarau Cultural - As Multiliguagens no Palácio - Ocupação Poética - Palácio da Cultura - Campos dos Goytacazes-RJ - foto : Antônio Filho

 

Lançamento em São Paulo dia 29 de novembro no Sarau Gente de Palavra - Local: Patuscada - Livraria Bar & Café - Rua Luis Murat, 40

 

absinto

impossível

te sentir mais do que já sinto

 

Artur Gomes

O Homem Com A Flor Na Boca

leia mais no blog

https://fulinaimagens.blogspot.com/




Artur Gomes

O Homem com A Flor Na Boca


Poética, política e memória

 Escrever prefácio para um livro de Artur Gomes é um desafio prazeroso. Desafiante é mergulhar no universo imagético e político que sempre compôs sua poética. Este O Homem Com A Flor Na Boca : Deus Não Joga Dados acrescenta o substrato memorialístico ao seu repertório formando a tríade que sustenta o livro temática e formalmente. Meu primeiro contato com a poesia de Artur se deu nos anos 80 por intermédio de seu livro Suor & Cio, obra cuja temática estava em consonância com as reflexões suscitadas pelas “comemorações” do centenário da Abolição da Escravatura em 1988. A partir daí, acompanhei suas criações tanto impressas quanto performáticas, pois Artur não é poeta apenas de livros e silêncios das salas de estares, livrarias e bibliotecas, mas também dos bares, ruas e praças que são do poeta como o céu é do condor.

 Poucos poetas contemporâneos expressam tão bem as principais bandeiras do Modernismo de 22 quanto esse vate pós-moderno. Sua poesia é política, antropofágica, nonsense, musical, polifônica e sobretudo intertextual, além de dotada de uma brasilidade corrosiva, avessa ao nacionalismo acrítico que se tem espraiado pela ex-terra de “Santa cruz”.

 Neste livro estão todas essas marcas do poeta às quais acrescento o caráter memorialístico. Nele, Artur não apenas rememora antigos poemas por meio de alusões, paráfrases e paródias como traz para seus versos passagens assumidamente biográficas, se apropriando, em alguns momentos, do gênero diário.

 Estão contidos nessas memórias seus vários heterônimos: Gigi Mocidade, Federico Baudelaire, EuGênio Mallarmè, Federika Bezerra, Federika Lispector. Diferente do que ocorre com o poeta português Fernando Pessoa, a heteronímia em Artur não se manifesta menos na autoria do que no tecido ficcional. Suas diferentes personas emergem dos poemas para a realidade das redes sociais, interagem entre si, com o poeta e os leitores.

 É Gigi Mocidade, por exemplo, que carrega a bandeira do espírito subversivo com seu grito “Irreverência ou morte”, já nas primeiras páginas do livro, e a epígrafe de Federico Baudelaire “escrevo para não morrer antes da morte” anuncia a intenção memorialística. Sócrates, no seu diálogo com Fedro na obra de Platão, argumenta que a escrita seria a morte da memória, mas o que seria de todo o repertório literário não fosse essa invenção humana? Quais mentes suportariam tantos signos produtores de imagens cujos sentidos transcendem às vezes a razão? A escrita não se tornou a morte da memória, mas impossibilitou a morte dos poetas eternizados nas páginas dos livros e memórias dos leitores.

 

poema 10

meus caninos

já foram místicos

simbolistas

sócio políticos

sensuais eróticos

mordendo alguma história

agora estão famintos

cravados na memória

 

Nesses oito versos, o autor nos apresenta metalinguisticamente seu percurso poético até este livro que não é uma obra dedicada ao passado. O presente político do Brasil (des) norteia o poeta que não deixa de atacar com sua lira de peçonha os problemas que nunca deixaram de afligir estas paragens desde o suposto grito de Cabral.

 

poema 12

 

tem algo de errado

nessas estatísticas de mortes

dessa pandemia

multipliquem  60.000 X 10

e ainda não vai ser exato

o número de cadáveres

empilhados nos campos de concentração

que dá um nome ao   país

que ainda nem era uma nação

 

A verve surrealista do poeta se manifesta principalmente nos poemas narrativos protagonizados por personagens intertextuais como “macabea” (alusão evidente à conhecida protagonista de A hora da estrela de Clarice Lispector) e alter egos – lady gumes – parodísticos do próprio autor.

 

Em FULINAIMAGEM 14 o tom  de diário se instaura com inscrição de data do acontecimento rememorado e transborda na escrita de si em que se revela o papel que a poesia e o teatro desempenham na escritura de seu trajeto como autor: “a minha relação poesia teatro poesia é visceral vital para o que escrevo como quem encena  a necessidade do corpo como expressão”. Artur Gomes, este homem com a flor na boca, anda a espalhar o veneno agridoce de sua poesia, numa obra em que não há fronteiras entre o artista, o cidadão, o personagem, o eu poético, a obra. Seu livro não é um objeto, mas um produto interno e nada bruto. A obra é sempre muito maior que o livro, pois este, matéria assim como o homem, finda. A obra, esse totem que se pode cultuar no altar da memória, está sempre presente. E é disso que o poeta fala: do tempo presente, do homem presente, da vida presente. Parafraseando Drummond, com O Homem Com A Flor Na Boca, “não nos afastemos, não nos afastemos muito”, vamos de mãos dadas com a poesia de Artur.

 

Adriano Carlos Moura

Professor de Literatura – IFFluminense, Campos dos Goytacazes-RJ – Poeta, Ator, Dramaturgo


Os Tortes Tecem Considerações 

O ator, produtor, videomaker e agitador cultural Artur Gomes acumula uma bagagem de 50 anos de carreira com prêmios nacionais e internacionais em teatro, música, literatura e artes gráficas. Gomes poderia se filiar na tradição literária dos chamados poetas malditos, como comumente e simplistamente nos referimos àqueles autores que constroem uma obra “rebelde” em face do que é aceito pela sociedade, vista como meio alienante que aprisiona os indivíduos em normas e regras. Tais autores rejeitam explicitamente regras e cânones. Rejeição que se manifesta-se também, com a recusa em pertencer a qualquer ideologia instituída. A desobediência, enquanto conceito moral exemplificado no mito de Antígona é uma das características de tais sensibilidades poéticas, que no Brasil já vem de longe com um Gregório de Mattos e ganhou impulso e seguidores com o famoso trio da “parafernália” rebelde: Verlaine, Baudelaire e Rimbaud.

       Já tivemos oportunidade de observar em outras obras do autor, que suas construções poéticas seguem sempre renovadas para cima em matéria de criatividade, elencando uma variada diversidade temática que aborda, sempre em perspectiva ousada e radical, desde o doce e suave sentido do amor, ao cruel da relação amorosa, flertando com o libidinoso, e questões existenciais que expressam indignação, desobediência e transgressão. É que, explica ele: “arde em mim / um rio / de palavras / corpo lavas erupção / mar de fogo / vulcão”.  Outra faceta do autor, digna de nota, é a criação de vários heterônimos como sejam Federico Baudelaire, EuGênio Mallarmè ou Gigi Mocidade, talvez a mais irreverente de todos, porque fala a bandeiras despregadas, sem papas na língua. “Muitas vezes a língua pulsa pula para o outro lado do muro outras vezes a língua pira punk nesses tempos obscuros às vezes a língua Dada vai rolando dados nesse jogo duro muitas vezes a língua dark jorra luz nas trevas desse templo escuro”. 

E aqui temos afinal, mais uma obra desse múltiplo e incansável poeta que caminha com uma flor na boca, símbolo universal de amor, de paz e beleza. A ele não importa verdadeiramente por quais meios: “se sou torto não importa / em cada porta risco um ponto / pra revelar os meus destroços / no alfabeto do desterro / a carnadura dos meus ossos”. É poética que, para além de perquirir as dores e delícias da condição humana em si, envereda pelo viés de nossa condição social sempre ultrajada. Encontramos um poema que nos pergunta: “quem se alimenta / dessa dor / desse horror / desse holocausto // desse país em ruínas / da exploração dessas minas / defloração desse cabaço // quem avaliza o des(governo / simboliza esse fracasso?” Artur Gomes segue sua árdua caminhada, agora com o poderoso concurso da maturidade que lhe chega. Segue emprestando sua voz aos deserdados, aos desnutridos, aos que têm sede, aos que têm fome, ou aos que morrem assassinados nos guetos, nos campos, nas cidades por balas de fuzil, desse país que tarda em referendar a cidadania.

Krishnamurti Góes dos Anjos - Escritor e crítico literário.

 

 


 e ela vai pintando

 o homem com a flor na boca

 com seus pincéis de aquarela

 poema que só é possível

pelas lentes dos olhos dela



mini conto  

as formigas trepam devagarinho

como carregassem folhas gigantes 


A Rosa Vermelha do Povo

para Drummond, Darcy Ribeiro, Brizola e Oscar Niemayer in Memória

 

 a rosa de Hiroshima ainda fala

a rosa de Hiroshima ainda cala

Frida e seus cabelos de aço

 

Picasso pintou Guernica

e quando os generais de Franco

lhe perguntaram:

 

 - foi você quem fez isso:?

ele prontamente respondeu

 

 - não, foram vocês que fizeram.

 

 Cartola um dia me disse

que as rosas não falam

simplesmente as rosas exalam

o perfume que roubam de ti

 

Agora trago a Rosa Vermelha do Povo

para clarear esse Templo escuro

 

quem poderá viver nesse presente?

quem poderá prever nosso futuro?

nem Zeus nem o diabo que os carregue

 eu quero um reggae um arte lata

a vida é muito cara nada barata

eu sou Drummundo Curumin - no fundo

 

 Tupã Rebelde não pede arrego

poesia é pra tirar o teu conforto

poesia é pra bagunçar o teu sossego

 

                           educação gramatical

 

ela tem um travessão

atravessado

na frente da palavra quero

me diz: espera

não por falta de desejo

tenho medo de dois pontos:

os seus olhos os seus beijos

pra onde você quer me levar

de tudo que a exclamação possa engendrar

 

respondo:

 

coloco vírgulas ponto e vírgulas

reticências qualquer outro sinal

abro parênteses

(os meus poemas nunca vão ter ponto final)

 

                                       Bolero Blue

 

beber desse conhac em minha boca

para matar a febre nas entranhas

entre dentes - indecente é a forma

que te como bebo ou calo

e se não falo quando quero

na balada ou no bolero

não é por falta de desejo

é que a fome desse beijo

furta qualquer palavra presa

como caça indefesa

dentro da carne que não sai


Teatro do  Absurdo

 

o quarteto da hipotenusa

versus o quadrado do quarteto

da hipotenusa a musa no quadrado

do retrato fosse apenas fotografia

mas não sendo hipotenusa

somente musa algaravia

uma palavra mais que estrada

sendo musa multivia

me levou nessa jornada

para fora da bahia

todos os santos mar aberto

no abismo a fantasia

de querer musa entretanto

muito mais que poesia

 

 

 

 

A flor dos meus delírios

tem cheiro de poesia

relâmpagos de Iansã

incêndio no meio dia

 

Netuno em polvorosa

me disse em verso e prosa

que ela vem com o frescor da maresia

e eu serei o seu Ogum

anjo da guarda e companhia

 

hoje mesmo distante

essa preamar me incendeia

ondas espumas explodem na areia

tempestades trovoadas ventania

e nem sei se estando perto

calmaria

 

 

 tirar leite das pedras

plantar flores no deserto

talvez seja esta a minha sina

colher a lírica

na argamassa do concreto

 



metáfora

 

meta dentro
meta fora
que a meta desse trem agora
é seta nesse tempo duro
meta palavra reta
para abrir qualquer trincheira
na carne seca do futuro 
meta dentro dessa meta
a chama da lamparina 
com facho de fogo na retina 
pra clarear o fosso escuro

 

 

 6 outubro - 2022

 

a mulher dos sonhos

voltou ontem

sedenta faminta insaciável

esgotou-me

à última gota

 

mesmo vazio

me senti um tanto cheio

nem foi delírio loucura

porque vi no meu e-mail

o nome da criatura

 

 Em 1995 no Centro Cultural Maria Antônia, na USP, em cia da minha querida amiga Silvia Passareli, assisti uma encenação de Cacá de Carvalho, com texto de Pirandello que me pegou da medula ao osso. A plateia era de 40 pessoas apenas e Cacá circulava entre nós com a sua energia pulsante magnética. O texto era um fragmento de uma trilogia que ele deu o nome de O Homem Com A Flor Na Boca. E a ele, Cacá de Carvalho, dedicamos este livro.

 

 chamaram-me  atrevido

o fonema entrou pelos ouvidos

como um raio de Iansã

                         Eva nem percebeu

                     a serpente no espelho

                         a mordida na Maçã 


  

Deus não joga dados

Mas a gente lança

tenta –

em arte tudo se inventa

 

 Eu tenho flores

com a língua atravessada em cada canto da boca

 


 Dê Líricas

 

bebo teus olhos atlânticos

e tua voz portuguesa

como quem bebe no Tejo

saudades de Lisboa

 

caminho com os teus passos

em direção ao poema do desassossego

Florbela Espanca Alberto Caieiro Fernando Pessoa 

 

ressignificar eis o verbo

no poema do absinto

o sentido mais concreto

ou mesmo o abstrato

na argamassa do absurdo 

 

 

Baudeléricas Bordelíricas

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